Doc. N° 2306
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
112 - 2008/2
Resenha
Elena Pájaro Peres, A Inexistência da Terra Firme. A imigração galega em São Paulo 1946-1964. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp/Imprensa Oficial do Estado, 2003. 424 págs. ISBN 85-314-0751-6 (Edusp)//85-7060-170-0 (Imprensa Oficial do Estado)
A.A.Bispo
Conteúdo: I. A imigração volta à cena II. Tempo de privação, tempo de inconformismo: A Sociedade espanhola do pós-guerra III. A inexistência da terra firme IV. A dispersão invertida V. Considerações finais A publicação é apresentada por Maria Luiza Tucci Carneiro, orientadora do trabalho de mestrado da autora na área de História Social (2000). Nas suas palavras, salienta que Elena Pájaro Peres pode ser inserida entre os historiadores de excelência formados pelo Departamento de História da Universidade de São Paulo. Neste seu trabalho, por ser filha de pai galego e mãe brasileira, teria conseguido captar fragmentos de uma realidade difícil de ser reconstruída por quem "não é de dentro". Essa intimidade com o seu objeto de pesquisa garantiu-lhe critérios de observação participante. Teria transformado seus escritos "em memória coletiva aberta à dialética da lembrança e do esquecimento". A obra seria, antes de mais nada, "expressão do sentido de pertencimento e do compromisso intelectual da autora com a comunidade de seus ancestrais, matrizes de sua inspiração e protagonistas desta história" (pág. 20). No Prefácio, Nicolau Sevcenko, da Universidade de São Paulo, faz singularmente uma avaliação da obra levando em consideração edifícios ideológicos. Após tecer considerações relativas à emigração como experiência dramática, refere-se a Karl Marx: este, ao enunciar o clamor pela união de todos os trabalhadores, avaliara que as fronteiras nacionais poderiam ser convenientes para setores da burguesia, mas irrelevantes para o sistema capitalista como um todo. Um dos méritos da obra seria o de dirigir a atenção para "uma comunidade pouco articulada e carente de uma cultura política mais elaborada, e para um fluxo migratório encetado após o período heróico de consolidação da classe operária como agente histórico autônomo e autoconsciente (...)" Embora colocando entre aspas, o prefaciador formula frases que podem sugerir concepções altamente questionáveis: os imigrantes galegas que vieram para o Brasil após a Guerra seriam "rurais" demais, "atrasados" demais, "desorganizados" demais e "autodeterminados" de menos. A autora estudaria, assim, menos uma categoria social ou política homogêna, integrada por um papel histórico unívoco, mas sim antes "uma coletividade de seres humanos vulneráveis e sensíveis, assinalada por atitudes e destinos díspares" (págs. 25e 26). Quanto ao método, a autora teria afrouxado o contrôle sobre a narrativa, compartilhando interpretações, arriscando assim a "inteligibilidade monológica dos processos que em estuda" (...). A textura complexa do seu trabalho sugeririam - evocando versos de Octavio Paz - um trabalho de elaboração criativa a partir de fragmentos, de ruínas, quase que como oposto de História (pág 26).
Na sua própria Introdução, Elena Pájaro Peres, após expor os motivos do seu trabalho - o de compreender o movimento imigratório galego para São Paulo em meados do século XX salientou a falta de necessária consideração da diversidade sócio-cultural da Espanha e as incongruências entre visões encontradas na literatura e aquelas constatadas em relatos de imigrantes. Expõe e comenta os caminhos seguidos para a consecução do trabalho, tanto com relação às fontes escritas e respectivos acervos como nas entrevistas. O que buscou foi não colecionar depoimentos, "mas sim interagir com essas lembranças, interpretando-as e tentando inseri-las no contexto em que foram produzidas e ao qual se referem" (pág. 43) No primeiro capítulo, a autora trata de dois ítens: "Momento de Euforia: Rumo ao Brasil do Futuro" e "Proverbial Hospitalidade? A Política Imigratória Brasileira e os Discursos sobre o Imigrante". No segundo capítulo, dedica-se aos temas "Uma Mescla Perturbadora: Escassez e Ânsia por Consumir, Fixidez e Desejo de Mobilidade" e "O Esgarçamento do Mundo Rural Galego". No terceiro capítulo, dois são os pontos tratados: "A Experiência do Deslocamento" e "Fragmentos do Cotidiano Galego em São Paulo". No quarto capítulo, a autora considera os temas "O Desejo da Ordem: Associações Espanholas em São Paulo" e "Imigração e Projetos Políticos Nacionais: A Construção da Diáspora Galega". Uma das partes da obra com maior densidade de informações é a referente às Associações Espanholas em São Paulo, integrante do capítulo IV (A dispersão invertida). Percebe-se aqui o vasto conjunto de dados que conseguiu levantar em pesquisas realizadas em associações de São Paulo. O texto "Casa de Galícia" destaca-se pelo seu estilo de relato informativo de outras partes do trabalho, surgindo quase que como um núcleo ou ponto de partida para reflexões e interpretações. A autora parte de uma apresentação da Casa da Galicia, Hogar Español. Essa instituição, fundada em 1955, no Dia da Galícia, 25 de julho, festa de Santiago, por Federico Valeiro Caramés, sob a presidência de honra do industrial Castor Delgado Pérez, entendia-se como uma entidade apolítica, impregnada de amor à Galícia, a seu folclore, à sua literatura e a seus costumes. Tinha o seu centro na Rua São Joaquim, na Liberdade, até 1971, transferindo-se então para o bairro do Pari (Rua Cachoeira) e, no mesmo ano, para a antiga sede do Centro Democrático Español. Possuiu uma sede de campo em Itapecerica da Serra. Voltando atrás na ordem da exposição cronológica dos fatos, a autora salienta o papel desempenhado pelo coral galego "Lembranza y Agarimo" a partir de 1953, e que considera "a mais importante associação especificamente galega fundada na cidade de São Paulo após a Segunda Guerra" (op.cit. 311). Em 1972, com outras sociedades, formou o Centro Español de São Paulo, integrado posteriormente na Sociedade Hispano Brasileira (1976). Esse significado da prática coral na organização dos imigrantes e na manutenção (e transformação) da identidade galega mereceria um estudo mais pormenorizado, podendo representar um ponto de partida para uma investigação histórica de orientação culturológica mais sistemática. No seu texto, a autora não se resume certamente a uma mera exposição de fatos. Preocupa-se sobretudo em detectar o papel político desempenhado pelo Centro na época franquista, nem sempre livre de incoerências. Considera as relações da Casa de Galicia com outras entidades, tais como o Centro Catalán, a participação ou não de seus membros em eventos, tais como a recusa a participar do Congresso de Emigración Gallega em Buenos Aires, em 1956, a participação no III Congreso de la Emigración Española a Ultramar (1965), no Congreso de la Emigración Gallega a Ultramar (Orense 1968), IV Congreso de la Emigración Gallega (La Coruña 1971) e a publicação de um próprio jornal mensal, o Alborada, a partir de 1958, ao lado do recebimento de outras publicações específicas (Prensa Hispano-Brasileira; Revista Hispano-Americana; El Ideal Gallego; Faro de Vigo). Cita referências que encontrou nas atas a respeito de programas radiofônicos dedicados aos imigrantes espanhóis, salientando-se sobretudo La Voz de Galícia, financiado pela Casa de Galicia e pela Consijeria de Galícia (até 1966). A autora não deixa de manifestar por várias vezes comentários de cunho crítico: "A leitura das atas deixa claro que, na maior parte do tempo, a associação estava preocupada com assuntos bastante triviais, como a organização das festas, a punição de sócios, o escalonamento do trabalho, as brigas internas por dispotas de poder (...). Poucas menções eram feitas à situação do imigrante em geral, ou aos problemas da imigração." (pág. 319) Uma atenção particular dedica a autora também ao Centro Español y Repatriación de Santos, constituído em 1956 pela união de duas outras entidades mais antigas: a Sociedad de Repatriación (1902-) e o Centro Español (1895). Da sua exposição ganha-se a impressão da importância da biblioteca da instituição para estudos culturais. A autora considerou em particular as memórias registradas em impressos publicados anualmente como prestação de contas, além dos periódicos recebidos. Salienta as memórias correspondentes aos anos da Guerra Civil Espanhola (1936-9) e o teor nacionalista nelas existente. Aliás, também aqui percebe-se a atenção especial da autora à posição política das organizações. Assim, tratando do Centro Español de Santos, menciona a adesão da entidade à causa nacionalista nos anos da Guerra Civil e a "recorrência à hispanidade e aos altos valores dos espanhóis de Santos" (pág. 322). O estudo da documentação das associações de São Paulo e de Santos permitiriam constatar uma aproximação do governo espanhol, sobretudo a partir da década de sessenta, fato que corresponderia a intuitos da Espanha. "O desejo de ordenar, controlar, tragar para os canais oficiais qualquer iniciativa que transpirasse espontaneidade e que resvalasse, mesmo que suavemente, em oposição ao regime, levava ao investimento nesses centros de imigrantes, incentivados a reunir-se sob uma única instituição, disciplinada em prol da 'hispanidade'." (pág. 325) Sob esse pano de fundo, a autora procura tornar compreensível que "a grande maioria dos imigrantes" tenha ficado alheia a essas organizações que decidiam "sobre a imagem da imigração a ser veiculado e sobre o discurso a ser proferido". Aliás, a distância da autora com relação a uma história da imigração escrita a partir dessas organizações é manifestada expressamente. Frases que fecham o capítulo já se encontram no seu início, demonstrando o cuidado construtivo da autora em tecer reflexões em torno do núcleo central informativo. De abertura, partindo de uma expressão colhida oralmente, confronta o leitor o caráter agitado da vida do imigrante em São Paulo, o que teria impedido uma maior eficácia das associações: "A ingerência pretendida sobre suas vidas, o controle desejado, o aplainamento das diferenças mostrou-se comumente ineficaz". (pág. 310) Essa constatação ou convicção da autora é elevada a princípio teórico e metodológico do trabalho historiográfico: "Qualquer tentativa de elevar a história dessas instituicões à categoria de índice da história dos próprios imigrantes soa como falsa e arbitrária. Elas significam apenas um lado dessa história e tentaram reiteradamente obscurecer, com seus discursos, a larga distância que as separavam daqueles que julgavam representar." (pág. 310) O importante, no caso, seria ler nas entrelinhas dos documentos dessas associações. Perceber-se-ia, assim, "de como as manifestações espontâneas, livres do discurso da identidade, surgiam a cada momento, insurgindo-se contra o controle institucional estabelecido" (pág. 311).
Após considerar, nesse capítulo, as associações espanholas em São Paulo, a autora dedica-se às relações entre a imigração e os projetos políticos nacionais sob o aspecto da construção da diáspora galega. O texto aqui, embora seguindo logicamente ao anterior, apresenta um caráter antes de ensaio com reflexões interpretativas de artigos de periódicos, em particular da revista "Mundo Hispânico". A autora considera o escopo do Instituto Español de Emigración com relação ao "projeto de entrecruzamento entre emigração e hispanidade" (pág. 336) e outros aspectos institucionais da política franquista referente à imigração. Considera em particular, com conotações críticas, o conceito de galeguidade, que ter-se-ia convertido em palavra de ordem para "intelectuais preocupados com a descaracterização cultural" e o de "diáspora", que se transforma no oposto e ao mesmo tempo em condição necessária para que desponte a galeguidade. (pág. 339). A autora termina expressando a sua convicção: "A galeguidade oficial termina por contar a história da emigração galega em seu sentido inverso, buscando entusiasticamente reverter a dispersão e aglutinar os erradios (...) o sexto elemento, o estranho, o que não se encaixa, o divergente sempre vem para intrometer-se, (...) denunciando a existência do diverso (...) A emigração aponta muito mais para a ruptura, a mudança, o movimento, a recriação de tradições do que para a integração, a permanência e o imobilismo (...)" (pág. 340)
Nas "Considerações Finais", Elena Pájaro Peres parte de uma advertência relativa à responsabilidade do intelectual, citando Michel Maffesoli. Esta residiria em responder pelos outros, talvez mesmo em responder em lugar dos outros e, para isso, o intelectual teria de escutá-los. Ao escutar o outro, o intelectual deveria tentar empreender um diálogo, buscando uma compreensão mútua que não ignore o seu próprio pertencimento a essa história. "E reconhecer essa participação em um sentido comum implica em desviar-se de pretensões explicativas e submergir no fluxo da história, tendo como certo que também para nós não há terra firme de onde se possa discursar." (pág. 346) Os fragmentos de entrevistas que seguem a essas palavras permitem que se perceba a labilidade de situações e a ambigüidade de sentimentos dos imigrantes. Entretanto, parece predominar no todo um tom por demais encomiástico da nova terra que necessitaria ser analisado e comentado. Esse tom pode manifestar uma das faces do processo integrativo, o de um certo exagero de qualidades do novo mundo com que se identificam como instrumento de auto-afirmação. A escolha desses fragmentos poderia, porém, refletir a própria posição da autora, também imersa nesse processo, embora já numa fase já posterior. A citação desses fragmentos de entrevistas não substitui porém uma análise mais pormenorizada e reflexões teóricas mais sistemáticas.