Doc. N° 2301
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
112 - 2008/2
Definição ampla de bens culturais e revalorização da vida quotidiana na política patrimonial em metrópoles do Mercosul Confeitaria Ideal de Buenos Aires e Confeitaria Colombo do Rio de Janeiro
Buenos Aires, Trabalhos da A.B.E. 2008
A.A.Bispo
Café no centro (1); Confeitaria Ideal (2-3-4), Buenos Aires Trabalhos da A.B.E.,2008. Fotos A.A.Bispo O debate concernente ao patrimônio inclui cada vez mais intensamente questões relativas a uma necessária ampliação do repertório daquilo que deve ser considerado como bem cultural a ser protegido. Generaliza-se a consciência de que não apenas monumentos e edifícios representativos devem ser vistos como bens patrimoniais de cidades e nações. Também a atenção a conjuntos de edificações, praças e logradouros públicos no seu todo não esgota as possibilidades de percepção e valorização de bens. Um direcionamento culturológico do debate patrimonial vem levando à consideração cada vez maior de bens intangíveis e de edificações e logradouros que, mesmo sem especial significado arquitetônico, desempenham papel relevante na vida cultural e na identidade de cidades e bairros. Um certo distanciamento da visão dirigida à obra de arte e arquitetura e uma maior sensibilidade para situações e contextos na dinâmica da vida cultural quotidiana desperta a consciência para a necessidade de apoio a estruturas e instituições que contribuem a uma maior qualidade de vida urbana. Essa ampliação do enfoque de bens patrimoniais implica em questões teóricas e práticas uma vez que introduz dimensões relativas a ambientes e qualidades "atmosféricas" de difícil determinação, de situações de maior fragilidade decorrentes de funções e usos na dinâmica do dia-a-dia, levantando problemas de critérios de escolha e adequação de medidas para uma conservação patrimonial que não destrua justamente as qualidades que fazem de espaços bens culturais vivos. Essa consciência do valor de bens não-monumentais para a vida urbana não é recente. Em estudos histórico-culturais já vem sendo considerada há décadas na descrição e na análise da vida de cidades e bairros. Faz parte também há muito de textos literários e ensaios de cunho nostálgico que evocam situações já não mais existentes. Nos últimos anos, porém, constata-se em várias metrópoles latinoamericanas tendências mais concretas de recuperação de áreas em fase de deterioração através do fomento ou até mesmo da recriação de atmosferas e de centros de vida social e cultural. Tais tendências, que revalorizam núcleos velhos de cidades e que procuram aumentar a qualidade de vida dos habitantes, insuflando nova vida em ruas e logradouros até então abandonados ou tornado estéreis, podem ser observadas em cidades de diferentes países. No caso do Brasil, devem ser mencionados os esforços de revitalizacão de áreas centrais do Rio de Janeiro e de São Paulo. As questões que aqui se levantam não são apenas locais e regionais. Apresentam também dimensões supra-regionais e até mesmo supra-nacionais. À luz da nova abertura proporcionada pelo Mercosul, cumpre considerar reciprocamente aportes e ações relativos às diferentes situações metropolitanas dos países integrantes, resultado que são de processos e necessidades similares.
Projeto "Cafés e Bares Notáveis" de Buenos Aires
Particular atenção merece nesse sentido os esforços da Subsecretaria de Patrimônio Cultural da Secretaria de Cultura do Govêrno da Cidade de Buenos Aires pela criação de uma "Comissão de Proteção e Promoção de Cafés, Bares, Bilhares e Confeitarias Notáveis da Cidade de Buenos Aires". Dessa comissão fazem parte o Secretário da Cultura, Dr. Gustavo López, a Subsecretária de Turismo, Lic. Marcela Cuesta, a Subsecretária do Patrimônio Cultural, Arq. Sílvia Fajre, a Diretora Geral do Patrimônio, Ar. Nani Arias Incollá, a Secretária Geral da Comissão pela Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural da Cidade de Buenos Aires, Lic. Leticia Maronese, além de representantes da Legislatura e de Associações de Hoteis, Restaurantes, Confeitarias e Cafés. Os objetivos do projeto e os trabalhos desenvolvidos nos últimos anos foram publicados no caderno de título Restauración y puesta en valor de los Bares Notables de Buenos Aires - Intervenciones 2002-2004 (Buenos Aires: Secretaria de Cultura - Gobierno de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, 2005; ISBN 987-98718-8-X).
No prólogo da obra, Gustavo López expõe o conceito de patrimônio cultural que fundamentou os trabalhos de intervenção. O patrimônio cultural é compreendido como uma construção social, um labor coletivo em cujo processo intervem o conjunto da sociedade. Abandona-se uma visão estática do que se considerava acervo cultural da cidade. A noção de diversidade traria em si a possibilidade de entender de outra maneira a identidade urbana, de descobrir uma pluralidade de referentes e símbolos que portam e expressam de forma mais rica e mais dinâmica essa mesma identidade. Trata-se de uma resignificação do patrimonial e de sua importância para a cidade e seus habitantes. Isso levou a um conjunto de políticaas culturais que correspondem ao objetivo de detectar, por em valor e preservar o patrimônio cultural de Buenos Aires. Planejou-se um conjunto de programas e ações lideradas pelo Estado mas que inclui uma participação crescente de diversos setores da sociedade.
"Desde la gestión pública nos propusimos trabajar no sólo con el patrimonio tangible sino también el intangible, como nuestra lengua, nuestra música; no sólo con los testimonios de nuestro pasado sino también con manifestaciones culturales actuales. Buscamos, en definitiva, una definición más amplia para los bienes culturales" (op.cit. 6)
Assim, ao lado dos grandes monumentos e obras arquitetônicas de grande valor artístico, claramente reconhecidas como bens patrimoniais, começou-se a tarefa de revalorização de outro tipo de construções com forte carga simbólica para os habitantes e para a identidade dos bairros. Os velhos bares, confeitarias e bilhares são vistos aqui como espaços de alta significação para os portenhos que elegeram "sus mesas y sus estaños para el encuentro fortuito o la cita de amigos, para la reflexión solitria, para la charla colectiva y ruidosa." (loc.cit.)
A Arq. Silvia Fajre, em texto de título "Proteger a los Bares es una prioridad", salienta que desde o início do "Programa de Revitalização dos Cafés Notáveis", em 2001, o seu objetivo-guia foi o de difundir, proteger e oferecer programação cultural nos bares da cidade. Com mais de 10.000 visitantes por ano, os Cafés Notáveis requerem um constante trabalho de proteção da edilidade, difusão e valorização. Às vezes trata-se apenas de um pequeno auxílio - restauração de um vitral, de parte do piso, de uma fachada - que incentiva os respectivos proprietários a redescobrir os valores de seus estabelecimentos. Desde o princípio, assim, as intervenções foram resultado de um trabalho cooperativo entre o poder público e o setor privado. Por cada investimento do Estado os proprietários se comprometeram a continuar com o processo de restauração e programar recitais e concertos.
A Diretora Geral do Patrimônio, Arq. Nani Arias Incollá, no seu texto "Conservando el Patrimonio Cotidiano", após traçar um panorama histórico do debate patrimonial, expõe o projeto dos Bares Notáveis. O Govêrno da Cidade de Buenos Aires sancionou a lei 35 de Bares Notáveis que estabelece no seu primeiro artigo a criação da Comissão de Proteção e Promoção dos Cafés, Bares, Bilhares e Confeitarias Notáveis, definindo, no seu segundo artigo, o que se compreende como notável: "Se considerará como notável (...) aquele bar, bilhar, ou confeitaria relacionado com fatos ou atividades culturais de significação; aquele cuja antiguidade, desenho arquitetônico ou relevância local lhe outorguem um valor próprio". No artigo 7, indica que os seus objetivos "serão instrumentados propiciando a conservação de desenhos e materiais no edifício e no mobiliário, sem que se modifiquem ou se mudem as relações sociais pré-existentes que se desenvolveram nos ditos locais." (op.cit. 8-9)
O primeiro passo foi o da realização de um levantamento do estado de conservação de cada edifício, tanto do seu exterior como de seu interior e equipamento. Paralelamente, realizou-se uma pesquisa histórica, fotográfica e planimétrica. Cada intervenção foi estudada previamente por uma equipe técnica, confeccionando-se a documentação, o projeto de intervenções e as especificações técnicas. Premissas foram que as intervenções fossem mínimas, que a autenticidade das peças componentes fossem respeitadas, que os novos elementos fossem registrados, que as peças repostas fossem compatíveis com as originais e que as intervenções fossem revertíveis. Partiu-se do pressuposto que o "inadecuado manejo y la indiferencia hacia el patrimonio cultural provoca una pérdida de identidad y un sentimiento de desarraigo".
Dentre os locais considerados pelo projeto, salienta-se a Confeitaria Ideal, situada no bairro San Nicolás, construida em 1928/30. Hoje apresentando sinais de decadência, essa confeitaria foi local emblemático da vida social portenha pela passagem do século. A sala de chá propriamente dida encontrava-se no andar térreo, no primeiro andar havia um salão de dança, hoje sala de tango. Tanto a fachada exterior do edifício como o seu interior apresentam profusa ornamentação. Os materiais empregados são de alta qualidade, salientando-se trabalhos em bronze e mobiliário Thonet. Dez colunas com estuque marmorizado definem o espaço, marcado por um palco que foi no passado utilizado por uma orquestra feminina.
Ideal de Buenos Aires e Colombo do Rio de Janeiro
Nos trabalhos da A.B.E. comparou-se a Confeitaria Ideal de Buenos Aires com a Confeitaria Colombo do Rio de Janeiro. Esta última, visitada várias vezes por ocasião de eventos, apresenta muito melhor estado de conservação. Muito mais antiga do que a Ideal, a Colombo foi fundada em 1894 pelos portugueses Joaquim Borges de Meirelles e Manoel José Lebrão. No decorrer dos tempos, a Colombo passou por várias reformas. De 1899, época da primeira instalação elétrica, introduziram-se pinturas de inspiração em Pompéia, de Humberto Rizzoli. Em 1900, introduziram-se vitrines de cristal, de seis metros de altura. De 1913 data a sua exuberante decoração art nouveau. O seu espaço interior, em quatro andares e três amplos salões, e a sua decoração com espelhos belgas emoldurados em jacarandá e bancadas em mármore italiano, são mais grandiosos e opulentos do que os da Ideal.
A história da Colombo é também muito mais significativa do que a da Ideal. Registram-se a passagem por ela de vultos ilustres, tais como o rei Alberto da Bélgica, em 1920, e a rainha Elizabeth da Inglaterra, em 1968. Foi freqüentada por escritores e artistas de renome, entre êles Machado de Assis, José do Patrocínio, Guimarães Passos, Luis Murat, Emílio de Menezes, Pedro Rabelo, Lima Barreto, políticos, entre êles Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, foi centro de grupos de intelectuais, entre êles da Sociedade dos Homens de Letras, fundada por Olavo Bilac, em 1914. Apesar dos trabalhos de restauração desenvolvidos na Confeitaria Ideal e que procuraram superar o estado de abandono então constatado, essa situação parece perdurar alguns anos após as intervenções. Restaurações e revalorizações de edifícios e instalações não podem suprir uma falta de vida causada por mudanças funcionais no contexto urbano. Tudo indica que uma revitalização da Ideal exigiria, na verdade, uma revalorização correspondente do seu entorno, em particular da rua em que se localiza. Entretanto, considerando-se o caso da Colombo, também situada hoje em rua central, de grande movimento e de comércio popular, capaz porém de manter quase que de forma insular a sua posição como local de vitalidade e de tradição, poder-se-ia supor que o mesmo seja possível para a Ideal. Uma revitalização comercial deveria ser marcada, no caso, não por um rebaixamento de nível de seus serviços, mas por promoções acompanhadas por empreendimentos culturais compatíveis com as ambições impostas pelo espaço arquitetônico e sua decoração.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).