Doc. N° 2297
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
111 - 2008/1
Arquitetura e mística do Sufismo Leituras do monumento mundial da saudade e do amor eterno
Taj Mahal. Trabalhos da A.B.E. 2007
A.A.Bispo
Agra. Taj Mahal. Trabalhos da A.B.E. 2007. Fotos A.A.Bispo A consideração de edificações com referências estilísticas à arquitetura muçulmana no Brasil deu-se até hoje sobretudo no contexto de obras do ecleticismo historicista e orientalista de fins do século XIX e início do séculoXX, em particular sob a perspectiva unilateral e pouco diferenciada do assim-chamado estilo mourisco.
Na literatura específica, surgem em geral negativamente como expressões singulares e aberrantes, concretizações de fantasias de novos-ricos, testemunhos de gosto duvidoso. Marcaram exoticamente a Avenida Paulista e ruas de outros bairros de São Paulo, do Rio de Janeiro e de algumas outras cidades. Algumas vezes o visitante se surpreende com edifícios orientalizantes inesperadamente exuberantes, tais como o do pavilhão "neo-mourisco" do Instituto Osvaldo Cruz, em Manguinhos, no Rio de Janeiro.
Grande parte de edifícios e moradias desse epocal fenômeno histórico-artístico foi demolida, perdendo o país um conjunto de construções em geral de alto nível qualitativo quanto à construção, à ornamentação e ao valor de materiais empregados. Uma reorientação culturológica dos estudos histórico-arquitetônicos, ampliando a perspectiva exclusivamente histórico-artística convencional, abre caminhos não apenas para uma reconsideração dessas obras em grande parte já perdidas. Sobretudo o estudo intercultural de obras arquitetônicas do mundo islâmico oferece novos rumos para análises e considerações teóricas e estéticas.
Atualidade da discussão de uma arquitetura de luz
No Ano Oscar Niemeyer de 2007, veio à discussão, nas reflexões referentes às obras do arquiteto, entre outros aspectos, a questão da luz na arquitetura e do conceito de "arquitetura de luz". Também foram salientadas as relações entre o movimento, a dança, o gesto, a coreografia e as concepções arquitetônicas. Muitas dessas reflexões se basearam nos trabalhos anteriores e eventos da A.B.E. referentes às relações entre a Arquitetura e a Música. Nas considerações referentes às obras do arquiteto, houve e há, naturalmente, a preocupação de que as análises se realizem adequadamente de forma contextualizada, ou seja, dentro do desenvolvimento histórico-cultural brasileiro. Houve e há, assim, sempre a tendência de se procurar vínculos com o Barroco e a Natureza. Tais considerações, porém, nem sempre correspondem ao estado atual dos conhecimentos relativos às concepções intrínsecas ao Barroco e, muito menos, aos vínculos do sistema de concepções a êle intrínsecas com a Natureza.
Haveria, porém, a possibilidade de outros tipos de aproximação que auxiliasse a reflexão de elos entre a luz, a dança e a música da arquitetura? Haveria a possibilidade de que tais reflexões teóricas auxiliassem o diálogo intercultural? Seria possível que a análise mais aprofundada e sensível de expressões arquitetônicas de outras culturas fornecessem não apenas elementos para considerações comparativas mas sim para uma percepção mais diferenciada da própria história cultural?
Taj Mahal
A consideração do Taj Mahal, Rausa-i Mumtas-Mahal (Mausoleu dos escolhidos do palácio), no estado indiano de Uttar Pradesh, se justifica, no estudo da história das artes e da arquitetura do Brasil pelo fato de ser esse monumento por muitos considerado como a mais bela obra arquitetônica do globo.
Do ponto de vista etnológico ou do estudo das culturas, salienta-se sempre o seu valor emblemático para a Índia.
Entretanto, reflexões sobre o Taj Mahal se revelam como de significado muito mais transcendente. Poucas são as obras da história da arquitetura mundial que possuem tantas conotações poéticas, perceptíveis para culturas e religiões distintas. O Taj Mahal surge como monumento de amor profundo, de suspiro tornado pedra, símbolo de saudade.
No Brasil, em livro trazido por imigrantes no início do século, lia-se uma descrição de uma viagem "à mais bela obra arquitetônica do mundo" e uma frase do Comte de Gabriac, que afirmava que até mesmo São Pedro no Vaticano daria impressão "de um quartel pesado em comparação com essa obra magna da arquitetura". Tudo o que a fantasia de um poeta pudesse imaginar seria pouco perante essa construção. (Egon Kunhardt, Reise zum schönsten Bauwerl der Welt, in: Rund um die Erde: Moderne Weltreisen, ed. Theodor Andersen, Berlin: W. Herlet s/d, 219 ss.,224)
Histórico
Em 1629, Ardschumand Banu Begam, também chamada de Mumtaz-i Mahal, mulher do Shah Jahan (Dscjajan +1666), faleceu ao dar à luz o seu 14° filho, com 36 anos de idade. Ela era sobrinha da imperatriz Nur-Dschahan, tendo casado em 1615 com o imperador Schahdschahan (1628-58). Como conselheira e esposa, era cognominada de "Jóia dos Palácios". Segundo a tradição, o soberano, depois de ter-se sentido inconsolado durante dois anos, decidiu construir um mausoléu digno da falecida e do amor que por ela sentia, ao mesmo tempo uma construção sem precedentes em todo o mundo. O mausoléu, edificado entre 1631 e 1648, foi terminado em 1651. Foi construído pelos irmãos Ahmad Nadir-Ul-Asar e Hamid.Supõe-se que no local já existia um palácio, do século XIV.
O mausoléu, em estilo safawidico-pérsico, é emoldurado por duas mesquitas em arenito vermelho, a mesquita dos mortos e a casa dos peregrinos, edificadas sobre terraços de arenito. Estes se localizam entre a margem sul do Schamna e o jardim geométrico de fronte ao mausoléu. A entrada do areal é feita hoje por um grande portal de arenito e mármore. É encimado por 22 cúpulas enfileiradas, representando o número de anos que teria levado a sua construção.
Paisagismo e arquitetura de luz
O edifício, construído sobre uma plataforma, é alcançado, a partir do portal central por caminhos que ladeiam um canal. Os efeitos de reflexão na água duplicam por assim dizer a construção, criando uma simetria na verticalidade. O amplo jardim sugere uma visão do Paraíso. A arquitetura de luz se manifesta nas diferentes visões que se tem da obra nas várias horas do dia. Em noites de lua cheia, o monumento deixa perceber de forma especial o equilíbrio de suas proporções.
Segundo a tradição, o imperador pretendia construir uma outra construção paralela, do outro lado do rio Yamuna, dessa vez de mármore negro. Esses planos, porém, não puderam ser realizados pela falta de meios financeiros. A construcão do Taj Mahl arruinou em grande parte a economia do Estado, levando a que o soberano fosse deposto pelo seu próprio filho, Aurangzeb.
Trabalho multinacional
A sua construção e decoração foram obras de operários e artistas provenientes de várias partes do mundo. Nela atuaram engenheiros turcos, calígrafos persas e paisagistas do Kashmir, além de ca. de 20000 operários. A cúpula do mausoléu, coroando o plano otogonal de 55 metros de diâmetro, atinge a altura de 58m. É ladeado por torres em forma de minarete de 50 metros de altura, levemente inclinados para fora. O mármore empregado foi proveniente de Makrana, no Rajasthan, cuja qualidade e pureza superariam aquelas do mármore de Carrara.
Também artistas europeus trabalharam na obra. O Grão-Mogul contratou Geronimo Veroneo, de Veneza, e Austin de Bordeaux para trabalhos decorativos. Foram empregados na decoração diamantes, granadas, turquesas, safiras e onix. Preciosas decorações de mármore entalhado de pedras preciosas tornaram-se um característico da ornamentação do período imperial mogul.
Sob o edifício central encontram-se os túmulos de Mumtaz Mahal e do imperador. Os sarcófagos postiços, acima dos reais, são protegidos por uma grade de mármore. Concepções estéticas do monarca marcaram a obra. Ao lado de escritos do Corão. surgem relêvos florais e faixas com desenhos geométricos. Os desenhos, em entalhes de pedras semi-preciosas , foram realizados tão cuidadosamente que não se percebem encaixes.
O edifício central tem plano octogonal, coroado pela grande cúpula. Especial menção deve ser feita à solução artística da passagem do corte quadrangular da construção à cúpula redonda. É decantada poéticamente como um fruto dulcíssimo, como um botão que desponta de uma árvore que se eleva acima de seus criadores. Estes jazem voltados para o Ocidente, a Mekka, tendo os pés ao Sul, a cabeça ao Norte. Os textos murais, em artística caligrafia, dirigidos aos quatro pontos cardeiais expressam a fé na ressurreição do fim dos tempos e na entrada no Paraíso.
Taj Mahal e a mística do sufismo
Dara-Shikoh (1615-1659), o filho mais velho de Shah Jahan e Mumtaz Mahal, tinha um grande interesse pela mísitca, em particular pela Qadiryya. Ele tinha sido introduzido nessa ordem, juntamente com a sua irmã mais velha - Jahanara - por Molla Shah Badakhshi, sucessor de Mian Mirs. Este era o principal representante dessa corrente, de Lahore, representada sobretudo por Mian Mir. Este viera de Sind juntamente com a sua irmã, Bibi Jamal também mística.
Devido a sua propensão à mística, Dara-Shikoh dedicou-se à literatura e à caligrafia, estudando e descrevendo a vida de antigos sufis. A sua obra Safinat al-auliya, biografias de santos, foi considerada como uma complementação do Fusus de Ibn 'Arabis e de outras obras clássicas. Esse príncipe procurou um denominador comum para o Islamismo e o Hinduismo, sobretudo através de um idioma místico comum, disso tratando em disputações com sábios hindús. Foi nada menos do que o tradutor das Upanishadas em língua persa. Para êle esta teria sido a obra citada no Corão como um livro oculto (Sura 56/78) e comparável com a Tora, os Salmos e o Evangelho. O francês Anquetil Duperron traduziu para o latim essa obra, publicando-a em 1801; auxilioua a divulgação do pensamento islâmico na Europa e influenciou filósofos idealistas.
O seu irmão mais jovem, 'Alamgir Aurangzeb, aproveitando-se de uma doença de seu pai, Shah Jahan, aprisionou-o e perseguiu a Dara-Shikoh, fazendo-o matar em 1659. Tornou-se o último monarca do império Moghul (1659-1707)
Simbologia poético-mística geométrica e vegetal
O termo taj (persa), coroa, designa o barrete ou o chapéu do Derwish, ao lado da grande túnica (khirqa) importante elemento de sua iniciação e da caracterização. A forma do taj varia de ordem para ordem. É constituído de número simbólico de partes, 12 relativamente aos 12 imanes, 9 ou 7. O seu significado simbólico pode ser compreendido pela importância da cabeça nas concepções do sufismo. A cerimônia do recebimento do taj desempenha papel central na iniciação, dia solene e festivo da comunidade sufista, quando o noviço presta juramento (bai'a).
O místico via em toda a beleza da Criação uma manifestação da fonte de todas as belezas. O rubim, coração das pedras, representaria o sangue derramado transformado em jóia; a esmeralda, capaz de cegar cobras, era vista como imagem da força do guia místico, capaz de ofuscar os infiéis. O sol representaria a glória divina, capaz de ser vista no prisma de todas as coisas criadas. A brisa simbolizaria a misericórdia que faz crescer ramos e botões em grande dança, e a tempestade seria uma imagem da cólera divina que destrói árvores sêcas, sem o líquido do amor.
Todas as flores no jardim eram consideradas na tradição poética mística como uma língua que entoava louvores a Deus e cada folha como um livro no qual se poderia ler a Sabedoria divina. A lília louvaria a Deus silenciosamente com 10 línguas, a violeta na modéstia do seu traje azul-escuro a modéstia de um Sufi, depondo a sua cabeça em meditação. As tulipas vermelhas com manchas negras no coração simbolizariam o sentimento que nasce do coração queimado do amante ou também o hipócrita de coração negro. O narciso olharia o Criador com olhos molhados como o amante que pensa nos olhos semicerrados do amado. O jacinto seria similar aos cachos de cabelos do amado.
O jardim islâmico, assim, imagem do Paraíso, rodeando mausoléus, monumentos da saudade mística, pode ser lido no seu sentido oculto, por detrás das aparências externas. O paisagismo ganha, assim, uma dimensão transcendente. Seria um objeto digno de maiores estudos analisar as relações dessa interpretação mística da Natureza com imagens poéticas da mística ocidental e de suas sobrevivências na tradição cultural.
Os trabalhos terão prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).