Doc. N° 2293
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
111 - 2008/1
Sabedoria védica e Ocidente e Consciente: Aspectos da história cultural recente Matança de animais como problema básico da cultura
30 anos da morte de A.C.Bhaktivedanta Swami Prabhupada (1896-1977)
Reflexões em Bharatpur. Trabalhos da A.B.E. 2007/08. Programa "Cultura e Natureza"
A.A.Bispo
Há publicações e correntes de pensamento de cunho religioso e filosófico-religioso que não costumam ser consideradas em estudos da história cultural, filosófica e científica. Fazem parte de uma literatura considerada de cunho não-científico ou legitimado acadêmicamente de reflexão e que é vista como não merecedora de citação em estudos especializados.
Entretanto, o interesse por essa literatura marginalizada acadêmicamente cresce na medida em que o interesse dos estudiosos se dirigem à história comparada das religiões e, sobretudo, aos estudos culturais e de processos interculturais.
Isso se dá sobretudo a partir de uma sensibilização maior por determinados questionamentos colocados por tendências mais recentes da reflexão teórica, seja da história das mentalidades em contextos internacionais seja dos cultural studies.
As dificuldades com que se defrontam esses estudos são consideráveis. A produção literária ou de divulgação não foi em geral conservada nas bibliotecas públicas e universitárias e os materiais se encontram dispersos em centros dos respectivos movimentos religiosos e filosóficos, nem sempre de fácil acesso. No estudo da história-cultural do relacionamento entre a Índia e o Ocidente, porém, em particular, no caso, com o Brasil, a consideração dessas fontes e das correntes de pensamento respectivas é de inquestionável importância. Não é possível tentar-se uma reconstrução diferenciada de desenvolvimentos históricos, de recepção de idéias, de influências recíprocas e de suas conseqüências sem levantamentos e estudos mais aprofundados de fontes e da prática nesses círculos.
Tal observação vale também para uma época relativamente recente da história do relacionamento intercultural; essa fase foi inaugurada pela difusão de correntes do pensamento indiano no Ocidente em fins dos anos sessenta e início da década de setenta.
O movimento indo-euro-americano na história das idéias e da cultura se revela, em visão retrospectiva, como de significado muito maior do que se poderia supor numa primeira aproximação. Estilos, formas e práticas de vida, do pensar e do agir influenciaram as mais diversas correntes culturais, musicais e artísticas e tiveram as suas expressões próprias também no Brasil. Há hoje vários centros, pousadas e clínicas no Brasil de orientação filosófico-religiosa que organizam cursos e seminários e desenvolvem atividade editorial. O levantamento de fontes e os estudos se encontram aqui em estado particularmente incipiente e isso representa um impecilho para o desenvolvimento dos estudos interculturais relacionados com o Brasil nos seus elos com os demais países americanos e com a Europa.
Não parece ser possível, ainda, obter uma visão panorâmica, abrangente e ao mesmo tempo diferenciada do desenvolvimento das últimas décadas; em fase inicial se encontra a detectação de linhas principais e das estruturas das rêdes sócio-culturais, de seus principais nomes e, assim, das correntes de pensamento que uniram determinadas esferas ou expressões culturais da Índia com o Brasil na sua inserção em contextos europeus e americanos.
A. C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada
Um dos nomes que devem ser considerados numa perspectiva teórico-cultural é o de A. C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada (1896-1977), uma vez que os seus ensinamentos, difundidos em vários países da Europa e da América trataram também explicitamente de conceitos de ciência e de cultura. As suas obras, publicadas em várias línguas e difundidas pelo Bhaktivedanta Book Trust, desde 1972, - no Brasil a partir de 1975-, fizeram-no autor dos mais lidos no âmbito da mais recente literatura religioso-filosófica da Índia no Ocidente. Nascido em Calcutá, foi orientado por Srila Bhaktisiddhanta Sarasvati Gosvami a partir de 1922, um estudioso de assuntos de espiritualidade que chegou a fundar numerosos institutos de estudos védicos (Gaudiya Mathas). Teria sido a pedido de seu orientador que se dedicara à difusão do saber védico no Ocidente. Escreveu um comentário do Bhagavad-gita e editou, a partir de 1944, uma revista quinzenal que teve continuidade através das décadas, sendo prosseguida pelos seus discípulos e publicada em diversos idiomas. Recebeu o título de Bhaktivedanta em 1947, concedido pela Sociedade Gaudiya-Vaisnava. Viveu alguns anos na cidade de Vrndavana, centro religioso sede de um templo histórico (Radha-Damodara). Em 1959, deu início à sua obra maior, uma tradução comentada dos 18000 versos do Srimad-Bhagavatam (Bhagavata Purana). Nessa época lançou também o seu livro Easy Journey to Ohter Planets. (Satsvarupa dasa Goswami. Prabhupada. He Built a House in Which the Whole World Can Live. Der Mensch der Weise. Sein Leben. Sein Vermächtnis. Vaduz: The Bhaktivedanta Book Trust 1984)
Em 1965, viajou pela primeira vez aos Estados Unidos. No ano seguinte, fundou a International Society for Krishna Consciousness (ISKCON), base de uma rêde internacional de centros, institutos, templos e comunidades agrícolas. Em 1968, fundou New Vrindaban como comunidade experimental védica em West Virginia. Em 1972, seguiu-se a fundação da escola Gurukula em Dallas, introduzindo no Ocidente o sistema védico de educação; logo surgiram instituições semelhantes em outras cidades dos Estados Unidos e da Europa. Como centro internacional do movimento e dos estudos védicos em dimensão global escolheu-se Sridhama Mayapur, em Bengala. Ao lado do centro de Vrndávana, esse instituto foi planejado para tornar-se um polo de irradiação internacional, abrigando interessados e estudiosos do Ocidente.
A difusão de obras literárias do movimento no Brasil é apontada como tendo-se iniciado em 1975, com a revista Volta ao Supremo. O primeiro livro foi Além do Nascimento e da Morte. Lançou-se o Bhagavad-gita Como Ele É, e Primeiro Canto do Srimad Bhagavatam obras consideradas como fundamentais nesse movimento de difusão da filosofia védica.
Alguns aspectos do pensamento de Phrabhupada
Uma particular consideração neste contexto deve ser dada aos conceitos referentes à Ciência. Trata-se, fundamentalmente, de uma posição crítica com relação à conceituação científica ocidental. Em reflexões encetadas em 1973, Prabhupada questionou explicitamente essa conceituação. Para êle, o universo da ciência e da tecnologia estaria edificado sobre bases falsas. Toda a construção desse edifício de pensamento estaria fundamentada na idéia de que a vida ter-se-ia originado da matéria. Ele não poderia admitir que essa teoria não fosse questionada. Segundo a tradição de pensamento que representava, a vida não viria da matéria, mas esta é que seria originada da Vida. A Ciência ocidental se basearia, assim, numa teoria errônea. Por essa razão, todos os seus aportes e suas conseqüências estariam errados, e a Humanidade sofreria com isso. Somente com a correção dessas bases teóricas é que o Homem poderia vir a ser feliz. Seria necessário, portanto, desafiar os cientistas e refutar as suas teorias. Caso contrário, elas desviaram toda a sociedade. O proceder cientificamente significaria observar, formular uma hipótese e demonstrá-la. Os cientistas ocidentais fariam apenas observações mas não poderiam demonstrar as hipóteses - e tal situação não teria sentido.
Questão fundamental que permite o entendimento dessa posição basicamente crítica era a da origem da matéria. No pensamento baseado na tradição védica, o caminho ascendente (indutivo) na obtenção de conhecimentos não poderia dar resultados por basear-se em informações obtidas pelos sentidos; somente o caminho descendente (dedutivo) poderia fornecer conhecimentos sólidos.
Ter-se-ia, assim, nessa tradição, uma crítica de natureza por assim dizer creacionista do evolucionismo, como posteriormente difundida também por representantes de outras religiões. Segundo os ensinamentos de Phrabhupada, Darwin teria falado da evolução das espécies da vida, não teria porém levado em consideração a evolução espiritual. Na sua crítica, Darwin não atentara às dimensões espirituais na sua evolução das formas mais simples às mais desenvolvidas de vida (The Science of Self-Realization, The Bhaktivedanta Book Trust 1988; ed. alemã, Die Schönheit des Selbst, s/d 194 ss.).
Apesar dessa posição divergente relativamente ao evolucionismo e à Ciência em geral, aproximando-a do discurso de fundamentação religiosa ocidental, as concepções representadas por Prabhupada divergem também de posições teológicas do pensamento cristão institucionalizado.
Em 1974, em reflexões encetadas com um monge beneditino do mosteiro de Niederalteich, na Alemanha, Phrabhupada elucidou as suas concepções relativas ao Cristianismo e às suas relações com a cultura védica (The Science of Self-Realization, al. Die Schönheit des Selbst, op.cit. 103 ss.). Para êle, quanto ao nome, Krsna e Cristo significariam o mesmo. Christos seria a versão grega da palavra Krsna. Quando, na Índia, se invocasse Krsna, dir-se-ia freqüentemente Krischto. Essa palavra significaria "Atração" e viria do sânscrito. A fórmula "Hare Krsna. Hare Krsna. Krsna Krsna. Hare Hare/Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare" incluiria os nomes divinos Rama e Krsna, assim como a palavra Hare, que significaria "a energia de Deus".
O conceito de energia, aqui formulado, surge como de fundamental importância para a compreensão das bases do pensamento em questão. Tem-se aqui uma estrutura de concepções também conhecida da tradição ocidental e que diz respeito à relação entre Espírito e Matéria. O mundo, na atualidade, estaria submetido a uma energia da matéria. Por esse motivo, a oração a Krsna seria feita no sentido de libertar o Homem da "energia material" e colocá-lo a serviço da "energia espiritual". A filosofia bhaqkti-yoga partiria do primado do servir. Independentemente da designação religiosa - hindu, islâmica ou cristã - o Homem poderia libertar-se dessas limitações tornando-se somente servidor de Deus, de uma religião pura que se denominaria bhakti. (Perfect Questions, Perfect Answers. The Bhaktivedanta Book Trust 1979)
A matança de animais como problema básico da cultura
No interlóquio acima citado com o monge beneditino, e sobretudo em troca de idéias com o Cardeal Daniélou, em Paris, tratou-se várias vezes de uma questão que surge como de fundamental importância para o diálogo intercultural entre o Oriente e o Ocidente: Qual seria a razão pela qual os indianos procurariam transmitir os seus conceitos ao Ocidente se os cristãos, que também pregariam o amor a Deus e procurariam serví-lo, já estavam aqui atuando com mensagem semelhante? Para Prabhupada, a razão deveria ser encontrada no fato de que os cristãos não seguem aquilo que ensinam. O principal ponto que não obedeceriam à própria doutrina seria o desrespeito que tinham para o mandamento de "não matar". (The Science of Self-Realization, al. Die Schönheit des Selbst, op.cit. 112 ss.).
Esse fundamental mandamento estaria sendo desrespeitado no Ocidente e, com êle, por ser básico, todo o edifício ruiria. Se os cristãos quisessem amar a Cristo, então deveriam imediatamente parar de matar animais. Este seria o ponto principal. O Cristianismo entenderia, na interpretação desse mandamento, que êle fosse restrito ao ser humano. Isso, porém, representaria uma interpretação arbitrária, errônea e ilógica. O mandamento de "não matar" diria respeito a todo o tipo de vida.
O assassínio de animais e o consumo de carne de animais seria permitida para animais e para homens na condição de animais, não porém para o homem civilizado, para o homem espiritual. Todo o homem que de alguma forma estivesse envolvido na morte de animais e no seu consumo seria um homem cruel e se encontraria em estágio inferior de desenvolvimento civilizatório.
Assim, os sacerdotes e religiosos cristãos deveriam cooperar com o movimento da consciência Krisna. Eles poderiam continuar a utilizar-se do nome Christus ou Christos, mas deveriam parar de assassinar animais e ter as suas mãos, corpos e consciências manchadas de sangue inocente. Procederiam assim também segundo o sentido mais profundo dos escritos sagrados e colaborariam na transformação da situação conflitante de religiões e culturas.
Um religioso deveria ser paciente e ter compaixão. Um pregador da consciência divina deveria ser um amigo de todas as criaturas. Os cristãos teriam porém interpretado falsamente o mandamento de "não matar" e, acreditando que os animais não possuíssem alma, teriam permitido a edificação de uma rêde odiosa de matadouros, onde milhões de animais inocentes continuavam a ser assassinados e massacrados, muitas vezes da forma mais cruel. Um verdadeiro Vaisnava, ou seja, um consagrado, ficaria infeliz em ver o sofrimento de seres viventes. A interpretação reduzida que os cristãos dariam do sacrifício de Cristo e da idéia do sacrifício pelo outro seria repugnante. (Die Schönheit des Selbst, op.cit. 103-111)
As discussões tiveram e terão prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).