Doc. N° 2291
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
111 - 2008/1
Estudo da música da Índia e das Índias no Brasil
35 anos do primeiro curso de Etnomusicologia dedicado à Índia no Brasil
Trabalhos etnomusicológicos da A.B.E. na Índia
A. A. Bispo
Música da Índia. Trabalhos da A.B.E. 2007 Fotos de A.A.Bispo O interesse mais profundo pela cultura musical da Índia no Brasil foi despertado primeiramente em círculos de tendência teosófica e espiritualista das primeiras décadas do século XX. Uma particular menção deve ser feita à influência de correntes antroposóficas em São Paulo em fins dos anos 20 e início da década de 30. As idéias basearam-se sobretudo em impulsos recebidos da Jornada dedicada à música da Índia do Simpósio Musical do Goetheanum, em Dornach (Suiça), em 1926 (dia 26 de agosto), e transmitidos ao Brasil através de imigrantes de língua alemã. (Veja outros relatos em números anteriores desta revista) Nesse evento participaram os cantores indianos Maheboob-Khan e Musheraff-Khan, com instrumentos originais (Sitar, Tabla, Vina), ilustrando uma conferência de Maheboob-Khan, proferida em inglês. Do programa, constavam tanto obras com referências indo-islâmicas como propriamente hindús. Assim, apresentou-se, na primeira parte, uma "Ode ao Profeta" (Gazal) antes de um canto de louvor a Ganesha (Hauswadhwani), um canto de alvorada de brâmanes (Narbadashtatt) antes de um canto de Derwisch (Bhairvi) e, quase que com intuito harmonizador, um canto ao Sol (Bibhas). Na segunda parte, aberta com um canto a Brahma, o Criador (Hameer), e repleta de exemplos de música e dança do repertório do Norte, do Sul e do Centro da Índia, incluiu-.se uma peça moderna dedicada à "alma dos santos" ou um canto ao Guru. Também a inclusão de um canto persa pode ser entendida sob o pano de fundo da concepção coerentemente espiritualista da programação. Muito mais do que uma simples demonstração erudita ou etnológica da música da Índia, tratou-se, nesse evento, de demonstrar as dimensões místicas do Hinduísmo e do Islamismo e de seu significado na renovação espiritual do Ocidente. Assim, nada mais compreensível do que o fato dessa apresentação ter sido precedida por uma conferência sobre a relação entre o Oriente e o Ocidente na Música, proferida por H. Zagwyn e uma outra sobre a "Essência espiritual dos Modos" (por Beckh).
Martin Braunwieser
Essa preocupação pela substância oculta, espiritual dos modos foi bastante intensa no círculo de jovens compositores de tendência esotérica do início do século XX. Entre êles cita-se o antropósofo Raymond Petit, autor de um "Hymne pour chant et flûte solo", com texto do Upanishad) e, sobretudo, Martin Braunwieser, autor também de uma peça de título "Aus dem Orient", para flauta e orquestra, terminada no Brasil, mas executada em Salzburg, sob a regência de Bernhard Paumgartner, em 1930. Somente a partir desse contexto geral marcado por tendências místicas, concepções teosóficas e pela essência espiritual dos modos é que se pode compreender o interesse desse compositor pela cultura musical islâmica, demonstrada em peças compostas segundo textos do poeta, matemático e astrônomo persa Omar-Chajjam (1048-1131) ou sobre melodias turcas para pianistas brasileiros. Nessa fase de fascínio pela música do Oriente, no Brasil, o interesse pela música do mundo islâmico se interrelacionou com aquele pela música da Índia em geral, fato possibilitado pela orientação mística, teosófica e antroposófica do pensamento.
Fora de círculos esotéricos, a música indiana foi considerada esporadicamente em conferências e em aulas de história da música em conservatórios. Da literatura brasileira mais genérica da época, salienta-se o verbete singularmente extenso, com considerável bibliografia, sobre a "Índia Musical" do Dicionário Musical de Frei Pedro Sinzig (Rio de Janeiro, 1945, 2a. ed. 1959). O autor baseou-se em grande parte no texto de J. Grosset publicado na Encyclopédie de la Musique de A. Lavignac (Paris 1922). Essa era fonte principal de informações para os interessados no assunto, por ser em idioma francês.
Hans Joachim Koellreutter: atividades no Brasil e na Índia
Um dos nomes que necessitam ser especialmente lembrados neste contexto é o de Hans Joachim Koellreutter, compositor e professor que vinculou diretamente, na sua vida e obra, o Brasil, a Alemanha e a Índia. Tendo atuado em Salvador durante vários anos, tornou-se diretor do instituto cultural da Alemanha em Nova Delhi e representante regional do Instituto Goethe para a Índia e o Ceilão, em 1966, chegando até mesmo a fundar uma escola de música no subcontinente. Após o retorno de uma viagem à Índia, escreveu, a pedido da Embaixada daquele país, um folheto que explicava os princípios fundamentais da música indiana aos estudantes da música ocidental no Brasil.(Música da Índia. Rio de Janeiro: Embaixada da Ìndia, Rio de Janeiro, s/d). Nessa publicação, a admiração pela cultura musical indiana de Koellreutter é claramente manifestada em expressivas palavras de introdução:
"A India deveria ser um lugar de peregrinação para todos aquêles que amam a música. É nesse país que descobririam uma vasta e venerável cultura musical, que apesar de ser essencialmente diversa da nossa, revela valores que, em nosso mundo, há muito têm caido em esquecimento. Eminentemente espiritual e, ao mesmo tempo, profundamente humana, a cultura indiana poderia tornar-se um valioso complemento e uma magnífica fonte de enriquecimento espiritual da cultura musical do ocidente."
Nessa publicação, Koellreutter manifesta também a sua admiração por Rabindranath Tagore, citando as suas palavras como abertura e encerramento da publicação. Para Koellreutter, os valores da música da Índia seriam de grande importância para o Ocidente, sendo já constatados em certas tendências da linguagem musical do século XX:
"Desconhecendo a precipitação, a intenção, o objetivismo, a finalidade, a intervenção e determinação, o povo indiano conservou-nos, com sua cultura musical, uma fonte, cujos valores espirituais ainda poderão tornar-se significativos para nós numa determinada fase de nossa história. E, de fato, desde já, surgem, na música do ocidente, tendências estilísticas, cujas particularidades lembram as da música indiana: composição serial, princípio da variação permanente, afastamento da quadratura rítmica, superação do princípio dualista e improvisação aleatória."
(...)
"Muito podemos aprender, com a cultura musical indiana, a respeito da função da arte na vida humana e na sociedade, a respeito das relações entre homem e manifestação artística, entre forma e conteúdo, e a respeito da sua função como meio educacional. O mais importante, porém, que podemos aprender é que a arte é o próprio homem e que ela só interessa na medida em que irradia esse homem, como ser integral, como todo, e como resultado das forças que o condicionam".
Koellreutter testemunha o seu interesse e os impulsos recebidos da cultura da Índia na sua própria obra composicional. Podem ser lembradas, aqui, as composições Sunyata, para flauta solo, orquestra e fita magnética (1968) e Dharma, para orquestra de câmara e instrumentos elétricos (1993).
Música da Índia na Etnomusicologia brasileira
A primeira consideração sistemática e mais abrangente da música da Índia no âmbito dos estudos superiores no Brasil - e segundo o estado atualizado dos conhecimentos etnomusicológicos - deu-se no curso de Etnomusicologia da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo, em 1972/3. Todo um semestre foi dedicado ao estudo da literatura especializada e à audição e análise de gravações. Nesse curso tomaram parte ca. de 35 professores de música que atualizavam os seus estudos, alunos de composição e de cursos de graduação em instrumentos e canto. Deu continuidade, em nível superior, a cursos realizados pelo Centro de Estudos em Musicologia da Sociedade Nova Difusão, em 1970.
O texto básico empregado nesse primeiro curso etnomusicológico, por ser em português (em tradução de Nuno Gonçalves), foi o de título "A Música Hindu", de Arnold A. Bake, publicado no volume dedicado à música da Enciclopédia da Plêiade sob a direção de Rolland-Manuel, obra traduzida sob a direção de Fernando Lopes Graça (Arnold A. Bake, "A Música Hindu". A Música: das Origens à Actualidade I. Barcelos: Arcádia 1965, 318-340). Outras publicações existentes em bibliotecas brasileiras puderam ser ainda consideradas. Os estudos foram complementados sobretudo com trabalhos de especialistas de vários países e com os quais se estabeleceu correspondência. Entre êles, salienta-se Alain Daniélou. Das obras desse autor, discutiu-se, em trabalho conjunto com o curso de Estruturação, especialmente o capítulo dedicado à música dos hindús ("Les rapports avec la Tonique. La musique modale des hindous") do seu tratado de musicologia comparada (Alain Daniélou, Traité de musicologie comparée, Paris, 1959, 91-120). Procurou-se, na discussão crítica dessa obra, comparar as perspectivas e a argumentação do autor com aquelas da literatura mais antiga, em especial à luz das tendências de cunho místico e especulativo acima mencionadas.
Os estudantes tiveram a oportunidade de, paralelamente, tomar parte em curso intensivo de especialização orientado pela Casa Sri Aurobindo, de Salvador, na Bahia, realizado em cooperação com a Faculdade. Vários estudantes realizaram trabalhos de término de curso com a exposição de resultados de pesquisas.
Além do estudo básico de aspectos históricos e sobretudo sistemáticos com base na literatura empregada, o escopo do curso foi o de procurar integrar a consideração da música indiano no contexto mais amplo determinado pelo conceito de Índias. Esse conceito, então desenvolvido no âmbito dos trabalhos do Centro de Pesquisa em Musicologia da Sociedade Nova Difusão, procurava eruir perspectivas teóricas e metodológicas que possibilitassem a superação de divisões convencionais da musicologia e, ao mesmo tempo, instituir uma perspectiva de consideração histórica global que atentasse ao processo desencadeado pelos portugueses na época dos Descobrimentos.
Música da Índia e das Índias em trabalhos brasileiros na Europa
Em 1975/76, expondo à comunidade dos estudiosos europeus os trabalhos realizados e as concepções desenvolvidas no Brasil, realizou-se, em Colonia, na Alemanha, sob a direção do editor, um primeiro encontro internacional de estudos indo-brasileiros relativos à pesquisa musicológica. Entre os participantes desse encontro cita-se Josef Kuckertz, que então dirigia um seminário dedicado à Literatura relativa à música da Índia no Instituto de Musicologia da Universidade. A justificativa principal desse encontro foi o de expor e discutir os conceitos relativos aos novos caminhos metodológicos abertos pelo uso do termo "Índias". Francisco Curt Lange, também presente, procurou focalizar o termo Índias no seu significado global americano, ou seja, a partir de uma perspectiva do "Americanismo musical". Os trabalhos foram continuados nos semestre de verão de 1976, quando então se considerou particularmente o sistema de ragas do Sul da Índia.
Focalização de dimensões religiosas relacionadas com a música na Índia
A partir de 1977, a consideração da Índia, sob a perspectiva mais ampla de "Índias", concentrou-se no trabalho desenvolvido sob a direção do editor no âmbito da seção de etnomusicologia do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos da organização pontifícia de música sacra. Além de Joseph Kuckertz deve ser salientado o nome de Pe. Walter Albuquerque dentre os especialistas mais de perto vinculados com esse departamento. Esse teólogo tinha sido responsável por um texto apresentado em Simpósio Etnomusicológico realizado em Roma, em 1976 ("Indian music in divine service", Musica Indigena, Roma: CIMS, 1976, 97 ss.). Nesse estudo, o autor considerou a posição da música indiana no ritual hindu, no culto cristão e as tentativas para a criação de uma liturgia indiana. A descrição bastante pormenorizada de tendências recentes na Índia, mas também as opiniões expressas pelo autor motivaram a reflexão crítica de pontos de vista e linhas de pensamento e ação.
Não se pode esquecer, neste contexto, que o texto-básico relativo à Índia apresentado no Simpósio Etnomusicológico de Roma, em 1975, tinha sido o de J. Kuckertz, de título "Música Indiana" ("Indische Musik", op.cit. 87 ss.). Nesse artigo, salientava:
"Não é certamente exagerado se se disser que o subcontinente indo-paquistânico representa in relação à sua música um dos maiores tesouros da terra. Esse tesouro compreende, ao lado da música de numerosos grupos e uma diversificada música popular dois patrimônios volumosos de arte erudita: a música carnática ao Sul e a música Hindusthani no Norte da Índia". (op.cit. 87)
A partir de análises estritamente musicais e transcrições, J. Kuckertz procurava oferecer subsídios, incentivos ou modêlos que pudessem ser úteis para músicos cristãos (op.cit. 94). Esse especialista alemão da música da Índia, nos seus textos e conferências concentrava-se sobretudo em aspectos fenomenológicos da cultura da Índia. Apesar de sempre salientar que o Homem no seu todo deveria ser considerado, restringia a sua atenção ao escôpo de oferecer bases e elementos analisados para o emprêgo no trabalho criador de músicos locais. O interesse se dirigia sobretudo à criação de uma música cristã adequada "às várias regiões da Terra", fato que compreendia antes nos seus aspectos por assim dizer externos - rítmico, melódicos e outros - do que no sentido de uma dimensão espiritual. Entretanto, os teólogos e estudiosos de aspectos missionários envolvidos já salientavam a necessidade de uma visão mais profunda, da consideração de aspectos não evidentes na discussão. Assim, o Arcebispo D. Simon Lourdusamy, secretário da Congregação para a Evangelização dos Povos e Presidente da Obra Pontifícia das Missões, na sua conferência de abertura do VII Congresso Internacional de Música Sacra, em Bonn, em 1980, salientava:
"Uma face humana ou uma figura de animal, esculpida em pedra ou pintada em cores pode ser imagem de um outro ser, não visível. Uma dança com canto e uma música instrumental pode ser um simples divertimento ou servir a cultos religiosos ou práticas mágicas. Se toda a pesquisa das artes se dirige por um lado às expressões artísticas em si, por outro lado à totalidade da personalidade humana ou da comunidade (...)" ( (Annuntiate Inter Gentes Gloriam Domini. Musicae Sacrae Ministerium XVII,2/XVIII,1, 1980, 27--44), 33)
Esse tipo de aproximação, ou seja, a necessidade de estudos de sentido ou de hermenêutica intercultural vinha antes de encontro às concepções desenvolvidas no Brasil e defendidas pelo editor. Mesmo assim, tornou-se necessário dirigir os trabalhos de forma mais diferenciada e supraconfessional do que o sugerid pelos especialistas citados. Em primeiro lugar, procurou-se realizar um levantamento sistemático e abrangente das fontes históricas relativas às Índias na literatura dos Descobrimentos e analisá-las contextualmente. Este trabalho de visão conjunta, o primeiro realizado no gênero, desenvolveu-se durante vários anos. O desenrolar dos estudos foi apresentado em conferências e em aulas proferidas no Instituto Pontifício de Música Sacra, em Roma.
Música das Índias e o Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa
No Congresso inaugural realizado para a fundação da Sociedade Brasileira de Musicologia, em São Paulo, em 1981, no âmbito do Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira, considerou-se o complexo da música das Índias e de sua pesquisa. Um dos principais conferencistas e debatedores foi o já citado J. Kuckertz, convidado como especialista da música da India para tomar parte nesse evento que deveria ser um marco para o desenvolvimento da pesquisa musicológica no país. No sentido do desenvolvimento de uma área de estudos caracterizada pelo emprêgo do termo "Índias", como sugerido pelo editor deste órgão, realizaram-se debates em São Paulo, em Petrópolis e em Mariana.
Nos anos seguintes deu-se prosseguimento ao programa de levantamento e estudo de fontes históricas relativas à antiga Índia Portuguesa e à sua análise contextualizada. Ao lado de trabalhos efetuados em bibliotecas de vários países da Europa, com especial consideração dos arquivos missionários do Vaticano, procurou-se entrar em contato com especialistas da própria India. Os trabalhos em andamento foram apresentados em diversas ocasiões e forneceram as bases para os debates que, a partir de 1981, precederam e acompanharam a fundação do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa, efetivada oficialmente no Ano Europeu da Música (1985). Entre os estudiosos de Goa que colaboraram ativamente para o desenvolvimento dos estudos cita-se, entre outros, Lourdino Barreto. Uma atenção particular foi dedicada à prática dos Motetos de Goa, estudados com base em tradições similares consideradas em pesquisas desenvolvidas no Brasil desde fins dos anos setenta. Pela primeira vez revelou-se na Europa à comunidade científica o valor histórico-cultural representado pelo repertório sacro-musical, em particular motetístico de Goa, em particular para o desenvolvimento de uma história da música em contextos globais (1982). Além de apresentações com base em documentos reconstruídos, o material original colocado à disposição por estudiosos de Goa foi analisado sob vários aspectos e considerado em conferências e simpósios. Uma particular atenção foi dada à prática de execução sob a perspectiva dos estudos interculturais, considerando-se diferenças de realização sonora entre as tradições da Índia e do Brasil. Esses e outros estudos da cultura musical de Goa e de outras antigas possessões portuguesas foram consideradas também em livro publicado em 1988/89, discutidos com estudiosos portugueses e brasileiros em jornadas e colóquios internacionais e, sobretudo, em sessão acadêmica realizada no Vaticano, em 1991.
Música da Índia no Congresso pelos 500 anos do Descobrimento da América
Em 1992, J. Kuckertz e o autor deste texto, após conferências realizadas na Escola de Música da UFRJ no âmbito do II Congresso Brasileiro de Musicologia, realizaram contatos no Departamento de Antropologia do Museu Nacional para o desenvolvimento de um programa amplo de estudos indígenas. Esse projeto, que se prolongou por vários anos e desenvolveu trabalhos em várias regiões do país, inseria-se no escopo mais amplo do projeto de décadas marcado pelo conceito de "Indias". Essa foi a fundamentação que garantia a lógica dos trabalhos até então desenvolvidos. Procurava-se, porém, sob a motivação das reflexões condicionadas pela data, uma maior diferenciação das perspectivas, superando possíveis limitações eurocêntricas sugeridas pelo conceito e dando particular atenção a perspectivas não-européias. Nesse sentido, realizou-se uma sessão que unia temas indígenas e orientais no âmbito de Simpósio Internacional realizado em Portugal, no Mosteiro dos Tibães, em 1998.
Por ocasião da passagem dos 60 anos de Josef Kuckertz, o tema "Índias", que tinha sido o elo da cooperação com o Brasil há décadas, voltou a ser explicitamente considerado no artigo "Índia e Brasil: Esboço de tarefas comuns para a Pesquisa Musical" (Antonio A. Bispo, Indien und Brasilien: Umriß gemeinsamer Aufgaben für die Musikforschung, R. Schumacher, Von der Vielfalt Musikalischer Kultur, Anif/Salzburg 1992, 15-28). O artigo iniciou-se com um apêlo dirigido aos membros da Sociedade Brasileira de Musicologia publicado na Correspondência Musicológica, no seu primeiro caderno (1, 1989, 9-10):
"Para a pesquisa musical da India e do Brasil, à primeira vista, parece que quase não se oferecem tarefas comuns. Esses países tão diversificados culturalmente, de dimensões gigantescas, distantes geograficamente em diferentes continentes, um contando com uma história riquíssima e antiga, outro se apresentando como resultado de descobrimento e colonização da época moderna,oferecem ao ouvinte europeu mundos musicais totalmente diversos. Cada vez mais freqüentemente, porém, a India e o Brasil são citados em contextos comparados devido a seu grau de desenvolvimento social e econômico. Tudo indica portanto, que chegou a hora de se conscientizar, também sob o ponto de vista musical, da questão aparentemente estranha de relações atuais e históricas entre os dois países" (op.cit. 15)
Nesse estudo referente às relações entre a Índia e o Brasil procurou-se salientar a necessidade da consideração da perspectiva histórica no estudo de processos que envolvem os dois países, superando-se uma certa tendência por demais esquemática e de natureza sistemática etnomusicologia convencional. Mesmo questões tratadas pela antiga musicologia comparada poderiam e deveriam vir a ser consideradas, isso porém dentro de perspectivas teóricas atualizadas e mais refletidas culturológicamente.
Antropologia Simbólica e Índia pelo Ano Vasco da Gama
Como passo para o estabelecimento de uma concepção de orientação científico-cultural mais atualizada no estudo da Índia e das Índias, superando-se certas posições da etnomusicologia convencional, organizou-se um colóquio internacional dedicado a questões da Antropologia Simbólica sob enfoques interculturais, no Brasil, em 1997. Nesse colóquio, partiu-se ainda do contexto específico determinado pela história da presença portuguesa na Índia. Um dos complexos temáticos particularmente considerados, no referente às tradições de cunho popular, foi o das concepções e das práticas religiosas e lúdicas relacionadas com o culto do santo português Gonçalo de Amarante em Portugal, no Brasil e na Índia.
Nesse colóquio, as atenções também foram dirigidas a um outro aspecto significativo dos estudos interculturais relacionados com a India: a influência da Índia na Idade Média européia e a assimilação de idéias indianas na tradição cristã do Ocidente. Os trabalhos foram aqui enriquecidos pela participação de uma das mais renomadas especialistas do assunto em Portugal, Margarida Corrêa de Lacerda. Já no texto acima citado dedicado às relações ´"India-Brasil" tinha sido considerada a obra básica dessa estudiosa relativa à transmissão da imagem de Buda ao Ocidente medieval como exemplo de pesquisa que poderia abrir caminhos para uma consideração mais aprofundada de processos indo-europeus. (Margarida Corrêa de Lacerda, Vida do honrado infante Josaphate filho del rey Avenir: Versão de Frei Hilário da Lourinhã e a identificação, por Diogo do Couto 1542-1616 de Josaphate com o Buda, Lisboa 1963). Na sua introdução, de título "Influência do Oriente no Ocidente, especialmente na Idade Média", a autora já mostrara, na década de sessenta, um caminho que ainda pouco tinha sido percorrido pelos musicólogos: "A influência do Oriente no Ocidente tem-se feito sentir desde remota antiguidade em diversos sectores e foi trazida por diferentes vias no decorrer dos séculos. A grande influência da Índia no mundo no campo das ciências gramaticais, da fonética, da filosofia, da literatura narrativa, das fábulas, etc., tem sido reconhecida e descoberta gradualmente. Grande parte da inspiração das canções de gesta, dos lais, dos contos maravilhosos, dos romances, dos fabulários da Idade Média, veio da Índia. A literatura budista teve nisso grande papel" (op.cit. 11)
Escola de Música palacial do marajá do Rajasthan. Trabalhos interculturais de etnomusicologia da A.B.E. 2007 Índia no estudo histórico-musical de processos globais
Nos anos seguintes, vários foram os eventos, cursos e conferências promovidas pela A.B.E. ou com ela relacionadas que procuraram estudar aspectos das relações indo-euro-brasileiras no âmbito de uma história da música em contextos globais. Entre vários outros aspectos, desenvolveu-se um trabalho de pesquisas relativo à difusão do harmonium europeu, a partir da Inglaterra, no século XIX. Esse instrumento, integrado em tradições indianas, é até hoje bastante difundido. Esse fato foi analisado no âmbito de transferências similares de instrumentos europeus para a América Latina na mesma época (p.e. acordeon, bandoneon e outros), procurando-se mecanismos que possam explicar a sua adoção e substituição de instrumentos mais antigos com possível manutenção de conotações simbólicas. Com base nesses estudos, procurou-se inserir a pesquisa referente à música da Índia no debate teórico-cultural da atualidade.
Viagem de 2007
A viagem ao Norte da Índia de 2007 teve por objetivo sobretudo atualizar os conhecimentos relativos à prática musical e a tendências do ensino e da reflexão musical. A escola de música palacial do marajá de Rajasthan, visitada, demonstrou uma preocupação viva pelo cultivo dos instrumentos tradicionais. O interesse de uma cooperação mais intensa com a A.B.E. foi assegurada. Dando continuidade aos estudos relativos à assimilação e adaptação de instrumentos ocidentais ou à interferência de técnicas modernas em expressões sonoras integradas no universo tradicional realizaram-se observações em várias oportunidades. No templo de Shekhawati constatou-se o uso singular da eletricidade na execução de instrumentos do templo. Havendo falta de instrumentistas, criou-se um aparelho curioso, ligado a um motor, capaz de acionar baquetas e pêndulos que percutem os instrumentos. Fato notável é a capacidade do rudimentar aparelho de manter as estruturas rítmicas tradicionais. O problema reside porém na necessidade de energia elétrica, o que nem sempre está disponível na localidade, exigindo-se para tal que se desligue outras fontes elétricas ou se liguem geradores especiais.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).