Doc. N° 2287
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
111 - 2008/1
Urbanologia intercultural Cidades idealizadas e concepções do mundo no Brasil e na Índia
Trabalhos da A.B.E. em Jaipur, Índia, 2007
A.A.Bispo
Jaipur. Trabalhos da A.B.E. 2007. Fotos de A.A.Bispo A consideração do processo de urbanização faz parte integrante e básica dos estudos culturais relacionados com o Brasil. A própria história da colonização e da expansão interna é estreitamente vinculada com a abertura de caminhos, fundação de cidades e criação de rêdes de estradas. Esse processo, iniciado com a chegada dos europeus, ainda que altamente diferenciado, se prolonga até hoje. Está, nas suas origens, profundamente interligado com a Europa, quase que em extensão de caminhos e estruturas urbanas para além do oceano. Os estudos de processos de urbanização no Brasil inserem-se, assim, nos estudos culturais de contextos Europa-Brasil.
Com esse processo de urbanização vinculam-se ordenações de imagens e símbolos, de sentidos e conteúdos, cuja análise necessita ser feita de forma diferenciada segundo regiões e épocas e que exige constantes reflexões sobre os caminhos de procedimento e interpretação. Muitos desses aspectos já foram considerados em eventos da A.B.E., em particular aqueles relacionados com uma dinâmica de constituição de sentidos desenvolvida a partir de elementos do próprio sistema, tema tratado no âmbito do programa "Poética da Urbanidade".
Dentre os muitos aspectos considerados salientam-se aqueles relacionados com a dimensão continental ou com contextos interamericanos do processo urbanológico. Relatos de trabalhos desenvolvidos em outros países da América Latina e do Caribe podem ser consultados em números anteriores deste órgão.
Ao lado de análises de aglomerações e estruturas urbanas surgidas por assim dizer espontaneamente, as cidades artificiais, ou melhor aquelas implantadas segundo planos e concepções determinadas assumem particular significado nos estudos respectivos. O Brasil apresenta aqui excepcionais exemplos de cidades e situações urbanas planejadas, entre elas naturalmente a própria capital do país.
O estudo cultural desses planos e concepções, de seus pressupostos, de seus ideais e conseqüências exige a análise de modêlos, de impulsos externos, de influências ou de inserções em correntes de idéias que não necessitam obrigatoriamente ser resultados de desenvolvimentos histórico-culturais ocorridos no próprio país.
A análise desses projetos pode revelar a vigência de concepções e imagens provindas de outros contextos culturais, até mesmo não apresentando vinculações imediatas entre a Europa e o continente americano.
Assim, cidades e regiões que numa primeira aproximação pouca relação teriam com os estudos brasileiros podem revelar concepções e expressões que serviram de modêlos, forneceram impulsos ou até mesmo inserções em processos culturais mais amplos. Nesse sentido, a A.B.E. desenvolveu trabalhos em várias cidades da Europa Central e do Norte (alguns desses relatos podem ser consultados em outros números deste órgão).
Uma situação extrema dessas possibilidades de estudos diz respeito a casos urbanos em contextos culturais não-europeus ou não marcados fundamentalmente pela ação européia. Não seria razoável proceder-se neste âmbito apenas a estudos comparativos no sentido superficial do termo. A análise de planos urbanos e suas concepções exigem aqui aproximações de cunho intercultural que, independentemente de contatos histórico-culturais diretos e comprovados, atentem a dimensões ou a esferas do pensamento mais remotas ou abrangentes. Esses estudos levam, em geral, a antigas fases da história religiosa e filosófica do Homem. O estudo dessas bases de concepções, por sua vez, longe de oferecer apenas um interesse de instrução geral, abre perspectivas mais amplas para o tratamento aprofundado de concepções constatáveis também no Brasil.
Um desses casos diz respeito às questões sempre discutidas da transplantação da malha reticular ou de modêlos radiais ao Brasil, da sua implantação mesmo em situações topográficas inadequadas e de seus problemas na atualidade. As origens e a fundamentação desses e outros tipos de concepção de natureza geométrica são, entretanto, estudados em geral exclusivamente segundo a tradição histórico-urbana ocidental.
Jaipur: a cidade planejada
Um exemplo singularmente excepcional de cidade concebida e implantada segundo um plano claramente refletido é o de Jaipur, capital do Rajasthan, na Índia. Essa cidade, com ca. de 1,5 milhões de habitantes, pode ser considerada como uma das mais significativas do mundo extra-europeu para estudos interculturais relacionados com concepções urbanas. Não se trata de uma cidade edificada no século XX, mas sim de uma obra do século XVIII, tendo sido específicamente concebida para ser capital. A criação de Jaipur data singularmente da época de cidades concebidas segundo modêlos abstratos do Barroco europeu, tal como Karlsruhe, na Alemanha, e sabe-se que tais planos, no Ocidente, estavam inseridos em complexo amplo de concepções de natureza filosófica e teológica (veja relato em número anterior deste órgão). Se para a análise hermenêutica desses casos ocidentais contam-se com conhecimentos facilmente acessíveis da história das idéias, o mesmo não se dá com Jaipur.
A denominação da cidade é derivada do nome de seu fundador, o Marajá Jai Singh II (1699-1744). Morrendo o seu pai, Bishan Singh, esse monarca, com apenas 12 anos de idade, subiu ao trono em Amber. Essa antiga capital, até hoje impressionante pela sua localização nas montanhas e pelo seu caráter de burgo e fortaleza inexpugnável, possuia uma história cultural de séculos, representando o centro de uma cultura hindú consciente de si e de suas tradições. As estirpes desses marajás são das mais antigas da India. Eles próprios se consideravam herdeiros da dinastia do Sol de Ayodhya. remontando ao século XI, quando Kakil Deo, membro do clan Kachawaha dos Rajputas, conquistara a fortaleza de Amber, transformando-a em residência.
Desde o século XVI, submetida à supremacia islâmica de Agra, os soberanos locais souberam, através de uma política de casamentos, unir-se à casa dos moguls. A política tolerante e de aproximação religiosa do mogul Akbar permitira também a assimilação de elementos muçulmanos na cultura local. Tanto Akbar quanto Jahangir, seu filho, casaram-se com princesas de Amber. Devido a esses laços, explicam-se privilégios dos soberanos de Jaipur como oficiais militares e governadores a serviço dos moguls. Essa situação de aproximação religiosa e cultural modificou-se com a subida ao trono de Aurangzeb'Alamgir (1658-1707) que entraria na história pelas suas tendências mais puristas na compreensão do Islão. A personalidade de Jai Singh II teria porém surpreendido até mesmo a esse soberano, que a êle conferiu o título de Sawai, significando "um e um quarto melhor do que os seus contemporâneos". Essa designação passou a ser utilizada pelos outros sucessores no trono de Jaipur.
A decisão de construir uma nova capital tem sido explicada pela necessidade decorrente do aumento do território com a anexação de Mewar e Marwar. Também se supõe que o soberano pretendesse uma emancipação da soberania mogul após a morte de Aurangzeb, marco de um período caracterizado por crises para o mundo indo-islâmico. A pedra fundamental foi lançada no dia 18 de novembro de 1727.
Após a morte do seu fundador, a cidade foi alvo de diversos atos de agressão. Em 1748, foi invadida pelos Marathas, em 1750 por Jaswant Rao Holkar, o que levou ao suicídio de Ishwari Singh (1743-1750).
Plano da cidade
A cidade de Jaipur é ainda totalmente cercada pelos muros, de modo que a parte antiga permaneceu livre de novas construções descaracterizadoras. Trabalhos de recuperação das zonas centrais encontram-se em andamento.
A cidade apresenta uma planificação urbana em forma reticular. Compreende 10 quadras praticamente regulares, sendo que 9 delas formam um quadrado. As ruas se cortam em ângulo reto. A quadra 10, a sudeste, é ocupada sobretudo por muçulmanos. As artérias principais são ladeadas de construções que apresentam colonadas na parte inferior. As calçadas são, assim, em parte cobertos, servindo também para que os comerciantes apresentem as suas mercadorias de forma protegida às intempéries.
A entrada para a cidade se dá através de grandes portões. O centro e os bairros ao norte da cidade velha são tomados pelo palácio e pelo observatório astronômico. É singular que o palácio se encontre no centro da cidade e não em posição isolada como burgo ou fortaleza. Uma das razões explicativas residiria na proximidade de uma serra que ofereceria possibilidades de refúgio em situações de perigo. Ali se situa o forte Nahargarth, a "fortaleza dos tigres". No palácio, os vários edifícios se agrupam em pátios dentro de uma área cercada de muralhas. Tem-se constatado uma filiação com os palácios dos soberanos moguls Jahangir e Shah Jahan.
Influências historicistas britânicas
No ano de 1818, o Marajá Jagat Singh assinou um primeiro contrato com os inglêses, garantindo assim uma certa autonomia para a sua dinastia. No decorrer do século XIX, os marajás de Jaipur passaram a ser considerados como dos mais leais parceiros dos inglêses. O poder efetivo da dinastia manteve-se até 1947. Ainda hoje, porém, ocupando uma parte do palácio, o marajá desempenha especial papel simbólico e cultural na cidade. O palácio é uma dos grandes exemplos da opulência da vida de potentados hindús do passado. Entre os objetos que demonstram essa opulência encontram-se trajes cerimoniais (como um de brocado de Benares de 1,80 m de cintura do Marajá Madho Singh I, 1880 1922), tecidos do Caschmir, gravuras, artefatos de vidro, jóias e, sobretudo uma grande coleção de armas.
O tom rosa das construções de Jaipur, o que lhe empresta o cognome de "cidade rosa", deriva de um fato ocorrido no século XIX. Em 1876, pela visita do príncipe de Gales, o futuro rei Eduardo VII, toda a cidade foi pintada dessa cor e os muros ornamentados com desenhos em branco. Até hoje mantém-se essa tradição, sendo os desenhos continuamente renovados devido à precariedade das tintas utilizadas. Em 1900, sob a supervisão do inglês Samuel Swinton Jacob, engenheiro urbano em Jaipur, construiu-se uma casa de hóspedes, o Mubarak Mahal, no centro do primeiro pátio do palácio, com uma varanda no primeiro andar. Essa construção é considerada como representativa da última fase significativa da história da arquitetura local.
Testemunho da influência urbanística e arquitetônica britânica é sobretudo o grande edifício do museu regional. É construído em "estilo indiano" de acordo com as tendências historicistas do século XIX.
A origem da concepção urbana de Jaipur representa um desafio para a pesquisa. Supõe-se motivos cosmológicos. O seu construtor, Jai Singh, era astrônomo e astrólogo. A cidade poderia ter sido concebida como uma espécie de imagem do universo, uma mandala concretizada. Os nove quadrados simbolizariam o universo. Uma última, a Chokri Sarhand, seria uma concretização do monte sagrado Meru, e nela estaria localizada o palácio.
Entretanto, não se pode esquecer o contexto mais profundo em que a própria cosmologia se inseria. Sabe-se que em várias regiões da Índia, no Panjab e sobretudo em Sind, os hindús participaram da vida mística das ordens islâmicas. Os homens santos foram venerados tanto por muçulmanos como por hindús. Os místicos pregavam e viviam a unidade do todo, e essa unidade, essa visão integral poderia ser lida no plano de Jaipur. Tal ordem na configuração urbana, tal lógica e abstração que se depreende de sua planificação surpreende em contexto exclusivamente hindú. Sabe-se do significado da geometria nas construções dos moguls e nos seus jardins. Também se sabe do significado simbólico de números na mística dos sufis e de suas possíveis conotações com o antigo neoplatonismo. Tratar-se-ia aqui, possivelmente, de estruturas místicas de fundamentação islâmicas interpretadas à luz da filosofia hindú.
O estudo intercultural do plano urbano de Jaipur pode, assim, abrir perspectivas e levar as reflexões a esferas remotas da história das idéias. Relacionam-se com fundamentos de um conjunto de concepções que também teriam atuado no Ocidente.
Os estudos terão prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).