Doc. N° 2267
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
110 - 2007/6
Tópicos multilaterais Alemanha-Brasil
Jornalismo, Política e Estudos Culturais De propaganda à "palavra como arma" Um estudo de caso: Ribeirão Prêto e São Lourenço
Trabalhos da A.B.E. paralelos ao Seminário "Pesquisa da Cultura e Política", Universidade de Colonia, 2007
A.A.Bispo
Tem-se salientado, em vários eventos, o alto significado da imprensa periódica na difusão de informações e na formação de opiniões, assim como a importância e a dignidade da profissão do jornalismo. Tem-se considerado e discutido, também, a necessária distinção que deve ser feita entre o jornalismo e os estudos científico-culturais quanto a escopo, método, linguagem e formação de seus representantes.
Essa distinção não tem sido observada com o necessário cuidado em algumas áreas do conhecimento, em especial também com relações a complexos culturais internacionais. Assim, na área do Ibero-Americanismo e da Latinoamericanística existem organizações de intercâmbio científico-cultural, institutos culturais e de pesquisa que se baseiam sem necessárias reflexões em materiais divulgados por serviços de informações e órgãos de publicidade de natureza jornalística.
Os referidos textos são incluidos em listas de referências bibliográficas e em páginas eletrônicas como fontes especializadas. Estudantes e pesquisadores citam os referidos textos como se fossem trabalhos publicados por estudiosos de legítima formação acadêmica específica nas diversas áreas. De outro lado, estudantes de Romanística, de História Latino-Americana, Ciências Regionais da América Latina e de áreas afins, sem encontrar possibilidades de trabalho nas respectivas profissões, passam a se dedicar ao jornalismo, também aqui sem a necessária formação para o exercício da atividade. Ninguém pensaria em incluir um texto das áreas de ciências exatas ou médicas escrito por um autor sem a necessária formação científica em listas bibliográficas especializadas; o mesmo cuidado, porém, não se observa nas áreas das ciências culturais ou humanas.
Textos de divulgação sobre música, artes, tradições populares e outras esferas culturais são utilizados como se tivessem sido escritos por autores com conhecimento e vivência dos debates relativos a teorias e métodos, a hipóteses e ao andamento atual das discussões. Esse fato leva muitas vezes a retrocessos e contínuas revisões, exigindo constantes elucidações em seminários e eventos.
Um desenvolvimento mais refletido e sistemático dos estudos culturais, - de uma culturologia efetivamente de cunho científico -, exige assim, cada vez mais, a consideração dos pressupostos da produção de conhecimentos e, assim, de seus autores e da sua inserção em áreas, rêdes e tradições disciplinares. Essa necessidade impõe-se de forma mais evidente no estudo cultural de épocas e de contextos para os quais as fontes existentes são sobretudo de natureza não-científica, por exemplo no caso da literatura de viagens e de textos publicados em jornais do século XIX. Ela se manifesta, também, de forma mais ou menos evidente no caso da instrumentalização da ciência para fins políticos e de propaganda, sobretudo em períodos de regimes autoritários e/ou marcados decisivamente por concepções ideológicas.
No estudo histórico-cultural relativo a contextos e processos internacionais considera-se, em geral, instituições particularmente relevantes das grandes cidades dos diversos países. Constata-se, porém, de forma crescente, as limitações desses enfoques às capitais quando se procura dirigir a atenção à processualidade na cultura. Assim, em vários eventos da A.B.E., tem-se procurado considerar com particular cuidado a história e o presente cultural de regiões do Interior, dos elos entre as várias cidades e as capitais, e de suas inserções em processos internacionais. Um dos problemas agora discutidos diz respeito à questão das relações entre o jornalismo e os estudos culturais em situações interioranas onde as características de sociedades menores e restrições quanto a possibilidades de impressão dificultam distinções e demonstram, ao mesmo tempo, o necessário aguçamento de acuidade diferenciadora nas análises.
Como estudo de caso foi escolhido uma edição do São Lourenço Jornal da época da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Em primeiro lugar, salientou-se o personalismo acentuado dessa folha. O aniversário do seu fundador e diretor foi festejado com artigos encomiásticos de primeira página e, a partir dessa exaltação de seus méritos e esforços, reforçou-se a sua legitimidade para a tomada de posição política local segundo as suas concepções da função do jornalismo e da propaganda.
"O Brasil tem e teve especialmente, nomes fulgurantes na história da sua imprensa, sobressaindo-se por certo os que militaram nos jornais das grandes cidades ou capitais. Mas, no setor da imprensa indigena, onde o esforço sobre-humano se vê destruido e toda a capacidade construtora, sofre os mais difíceis obstáculos, inutilizando todo o valor mental do indivíduo, talvez não tenhamos quem haja excedido o valor desse autêntico manejador da pena (...)"
O nome em relêvo é o do Capitão J. Osório Junqueira, membro de tradicional família de Ribeirão Prêto, político e fundador de vários jornais no Interior. Após ter realizado em São Paulo e no Rio de Janeiro os seus estudos secundários, dedicou-se inicialmente às atividades agrícolas na sua região natal, alcançando renome e posição no ambiente de Ribeirão Preto como jornalista e como líder de campanhas políticas. Conhecido e temido pelas suas aptidões polêmicas na direção do diário independente A Tarde, enfrentou em São Paulo competições partidárias quando da formação "da Reação Republicana contra o governo do sr. Washington Luiz", chefiada por Altino Arantes, em 1924 e, mais tarde, de Getúlio Vargas: "não teve reservas em aplaudir, patrioticamente, a revolução nacional deflagrada nas historicas coxilhas gauchas, sob a direção suprema do eminente brasileiro que hoje dirige os destinos nacionais." (i.e. Getúlio Vargas)
Além de A Tarde, de Ribeirão Preto, fundou e dirigiu mais de 20 jornais em vários Estados, entre eles o Jornal da Manhã, Correio do Oeste, A Voz Publica, A Pena e a Zona Ilustrada, da mesma cidade, O Correio de Uberlândia, de grande circulação, o Jornal de Goyaz, o Jornal de Caxambu e o São Lourenço Jornal, em cujas colunas exerceu, "com grande patriotismo, as suas funções de paladino da Gloriosa Imprensa Sul Mineira."
A opção pelo Interior do jornalista J. Osorio Junqueira não fora apenas resultado das circunstâncias mas resultado de decisão consciente: "resolveu fazer o que para a esmagadora maioria dos jornalistas brasileiros seria um absurdo:- fazer jornal no interior do Brasil, para estimular, para propagar, para tornar conhecido por todos os quadrantes patrios, aquilo que avaramente se guardava, inteligencias sadias e vontades capases. Fugiu do periodismo das grandes capitais, do fervet opus que não forma escolas e que encontra na concorrencia, motivos de desilusões e que é, esse periodismo, a tecla comum que nem sempre impressiona."
Para a justificação desse interesse pelo Interior e pela necessidade de desenvolvimento da imprensa nas cidades menores, o artigo dedicado a J. Osorio Junqueira cita uma fonte argentina, sugerindo a atualidade por assim dizer supra-nacional dos intuitos:
"Ainda ha pouco tempo liamos em La Nacion, o grande orgão portenho um estudo pefeito sobre uma das mais fortes expressões do jornalismo platino e dentre os motivos que teriam elevado a personalidade do biografado, havia um que se mesurava pelo sacrificio de ter dirigido jornais que fundára no interior e sua patria, num afan altamente patriotico de torna-la compreendida pelos que somente conhecem os alardes das capitais vertiginosas. (...)"
O Capitão J. Osorio Junqueira é comparado explícitamente ao jornalista argentino Gallardo e louvado como "Heroi de uma cruzada santa", um combatente de uma causa difícil, repleta de agruras e incompreendida.
Nessa posição de pioneiro e propagador da causa jornalística e da cultura, o diretor do jornal, em coluna denominada de "Hora de graves responsabilidades" expõe a sua opinião perante a declaração de beligerância do Brasil contra a Alemanha e a Itália e manifesta explicitamente a necessidade de tomada de posição:
"(...) Está claramente definido o momento nacional e não há negar a hora gravissima que passamos. Para os patriotas sinceros, para os brasileiros de coração, aqueles cujo unico objetivo no momento, sagrado objetivo, é a Patria, as posições estão definitivamente escaladas e perante elas não poderá haver duvidas ou hesitação. (...)"
A seguir, o diretor do jornal salienta a exigência de uma mudança de orientação do jornalismo. O homem de imprensa teria tido até então uma função mediadora e observadora, agora, porém, em situação de Guerra, deveria assumir uma atitude energicamente ofensiva. De propaganda pacífica de fins culturais o jornal deveria passar a arma de combate:
"Sentimos que ha a inadiavel necessidade da acareação iminente de elementos suspeitos que desgraçadamente existem. E se assim é, devemos trocar a posição, até aqui harmonisadora ou apenas fiscalisadora, pela atuação pratica e decisiva da energica reação. Urge que o nosso fusil, empunhado apenas no sentido figurado, atravéz da pena, que evangelisa, que propaga as ideas no sentido benfasejo de orientar, de aconselhar, seja agora substituido pela arma pratica e ofensiva da guerra, porque na guerra realmente estamos, atacados de surpresa nos mares desguarnecidos (...)"
O objetivo concreto dessa imprensa de combate era o Integralismo, considerado nas suas proximidades com as concepções dos regimes de países agora inimigos. Os seus representantes no ambiente da estância de São Lourenço deveriam mudar de opinião e renegar as ideologias estrangeiras. A eles é que se dirigiam as ameças do jornal:
"Pelo país inteiro estabeleceu-se a certesa de que elementos integralistas continuam tramando contra a Patria, ao serviço indigno dos inimigos do Brasil. Não é a simples prova presuntiva que os indica a essa realidade contristedora, que impõe, que exige - rigoroso castigo e o maximo do nosso franco repudio. é sim, a continua serie de crimes e a ostensiva dedicação dos mesmos, ao nazi-facismo e contra as instituições nacionais, contra o próprio Brasil. É certo que os adeptos da ideologia verde existem ainda em guarda por ahi em fora, como aqui mesmo, até bem pouco, viviam arregimentados e arrogantes, insultando os que, sem o interesse imediato de combatel-os, apenas discordavam de sua criminosa ideologia politica. Mas, não queremos hombriar os integralistas de São Lourenço, aos vendilhões da Patria, aos trahidores orientados pelos tacões nazi-facistas, que negociam a escravisação do Brasil, alinhando-o no mapa da nova ordem, como o futuro protetorado dos barbaros, dos sanguinarios déspotas da velha europa. São Lourenço, como em todo o Brasil, teve o seu nucleo de Camisas Verdes, que vicejou pela excessiva condescendencia e boa fé dos nossos governantes. (...) Urge que os elementos integralistas locais se manifestem com o criterio patriotico que o momento exige, de forma clara e franca, que represente a credencial de retorno ao lar da Patria e de repudio a ideologia que de boa fé abraçaram (...)"
No contexto dessas matérias, a notícia de uma apresentação da pianista Guiomar Novais em São Lourenço, surge naturalmente com especiais conotações histórico-políticas, servindo também ela à demonstração da importância do interior e de seus elos internacionais. O vínculo de Guiomar Novais com os Estados Unidos parecia particularmente relevante na nova situação política:
"A insigne patricia, que tão alto tem sabido elevar o renome da música brasileira no extrangeiro, arrebatando de aristocraticas plateias os maiores aplausos e a maior consagração artítica, - proporcionou à nossa culta sociedade, uma noitada verdadeiramente paradisíaca, realisando no luxuoso Casino do Grande Hotel Brasil, em cujo Hotel se achava hospedada, brilhante concerto. (...) Ao piano, (...) arrebatou, justificando plenamente a fama que conquistou e vem mantendo progressivamente ao ponto de ser reclamada periodicamente, nas melhores plateias dos Estados Unidos, onde o seu nome refulge como estrela de primeira grandeza, na dificil e sublime arte do teclado."
As obras apresentadas de Chopin, dada a função emblemática do compositor na situação da Guerra Européia e de suas extensões americanas, surgem também como muito mais relevantes pela suas conotações simbólicas do que uma simples contastação do programa poderia sugerir:
(...) Ouvir a divina musica da imcomparavel pianista brasileira, é gosar as maiores delicias espirituaes, é atingir plenarmente as mais elevadas alturas do que é belo e distinto, transformando em sonhos angelicaes, uma realidade que das milagrosas e mimosas mãos de Guiomar Novaes, nos dá o teclado por ela manejado com a superioridade, competencia e disciplina dos maiores e mais consagrados mestres. Não ha destaque possivel na incomparavel execução de Guiomar Novaes. (...) se apresenta eloquente e insuperavel, na execução brilhante de Chopin."
Guiomar Novaies e Otavio Pinto já conheciam o diretor do jornal de época desua apresentação em Ribeirão Preto, quatro anos atrás. Assim, ao chegarem em São Lourenço, tiveram o cuidado de visitar a sede do periódico, preparando a receptividade da imprensa: "A grande pianista brasileira e o seu ilustre esposo, detiveram-se em intima e agradavel palestra, com o nosso prezado chefe, cap. J. Osorio Junqueira, que relembrou prazeirosamente o grande sucesso obtido por Guiomar Novais na importante cidade bandeirante e o modo carinhoso e entusiasta com que fôra ali recebida a eminente brasileira".
As discussões tiveram e terão prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).