Doc. N° 2268
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
110 - 2007/6
Tópicos multilaterais França-Brasil
Cosmopolitismo parisiense ante-guerra e o nacionalismo de entre-guerras no Brasil Estudo de caso: João Nunes (São Luís do Maranhão, 1877- Rio de Janeiro, 1951)
Trabalhos da A.B.E. e I.S.M.P.S.. Estudos paralelos ao Seminário "Pesquisa da Cultura e Política"
A.A. Bispo
Há personalidades da história cultural injustamente pouco lembradas. Vários fatores contribuem para esse situação. Uma delas é freqüentemente a sua inserção em diferentes universos culturais e conseqüentemente posicionamentos supra-regionais ou supra-nacionais, impedindo que tenham sido suficientemente valorizadas na literatura regionalista ou nacionalista de sua época. Imagens criadas determinaram visões históricas subseqüentes e a posteridade encontra dificuldades em situar personalidades que não se enquadram em determinados retratos esquemáticos do passado.
Este é um problema que atinge em especial os estudos histórico-culturais em contextos internacionais, uma vez que em geral os seus protagonistas emigraram e imigraram, ou se situaram cultural e emocionalmente acima de fronteiras. Não são considerados à altura em panoramas históricos dos respectivos países, situando-se em espaço intermediário, por assim dizer de ninguém, às vezes carregando a mácula de terem abandonado os seus ou não se terem integrado ou reintegrado nas respectivas sociedades. Para os estudiosos que se dedicam a estudos de outras culturas apresentam em geral pouco interesse pela falta do seu exotismo, pois não permitem um reconhecimento fácil de traços diferenciadores e característicos de alteralidade.
Sobretudo no século XX, quando correntes político-culturais de marcada tendência nacionalista e as circunstâncias bélicas de Guerras Mundiais influenciaram profundamente o pensamento cultural e artístico, determinando também a historiografia da cultura e das artes nas várias nações, nomes que, pelas suas idéias e obras não correspondiam às expectativas políticas do momento não mereceram consideração e apoio de porta-vozes dominantes. Artistas e compositores se retiraram à privacidade ou restringiram as suas atividades criadoras, dedicando-se ao ensino.
O redescobrimento e o estudo da vida e obra de autores pouco lembrados da história intercultural, em especial aqui de contextos euro-brasileiros não representam, assim, apenas uma exigência de justiça histórica póstuma. Pelas suas inserções na história político-cultural de sua época, o estudo de nomes, obras, contextos e esferas submersos ou silenciados surge como uma necessidade para análises mais diferenciadas de processos político-culturais. Esse significado não é apenas histórico. Contribui para o aguçamento da sensibilidade para a complexidade de processos de identidade cultural e para o estudo de rêdes de contatos, de linhas de pensamento e de trabalho eventualmente ainda atuantes no presente, oferecendo subsídios para a releitura crítica da literatura correspondente e da revisão de imagens produzidas e possivelmente perpetuadas.
Sob o pano de fundo do conhecimento que se tem dos acontecimentos históricos posteriores, muitos julgamentos de períodos acentuadamente marcados ideologicamente do século XX surgem como unilaterais e muitos daqueles criticados e silenciados pela sua inadaptação podem revelar-se hoje como singularmente lúcidos nas suas concepções e nos seus posicionamentos.
Um dos nomes da história cultural do Brasil que pela sua personalidade e obra dificilmente se enquadra em visões do tipo humano e em panoramas estereotipados do desenvolvimento do pensamento estético do país é João Nunes, pianista, compositor, crítico e professor, nascido em São Luís do Maranhão, no dia 20 de janeiro de 1877 e falecido no Rio de Janeiro, em 18 de agosto de 1951.
Formação cultural na "Atenas Brasileira"
Apesar de ter sido criticado por ser pouco brasileiro na sua maneira de ser, nos seus pensamentos e nas suas obras, poucos são os vultos da história da música do Brasil do século XX que tiveram a sua formação em ambiente cultural de mais profundas raízes do que João Sebastião Rodrigues Nunes. A cidade de São Luís do Maranhão, cognominada no passado de "Atenas brasileira" pela profusão de seus pensadores, literatos, homens de teatro e estudiosos culturais tais como Odorico Mendes, Sotero dos Reis, João Lisboa, Gonçalves Dias; Trajano Galvão, Gentil Braga, Celso Magalhães, Teixeira Mendes, Artur Azevedo, Aluízio Azevedo, Américo Azevedo, Raimundo Correa, Coelho Neto, Graça Aranha, Nina Rodrigues e Dunshee de Abranches, foi também um centro musical de extraordinária consciência de suas próprias tradições e de abertura para com o mundo. Esse significado de São Luís como centro musical do passado, revelado por João Mohana (A Grande Música do Maranhão. Rio de Janeiro 1974), se oferece nas características da vida musical local, sobretudo na continuidade do cultivo da música sacra um quadro similar a outros grandes centros de cultivo da música do século XIX no Brasil, tais como São João del Rei (Minas Gerais) ou Santo Amaro da Purificação (Bahia), apresenta por outro lado maior desenvolvimento da esfera musical secular pela sua qualidade de capital e pelas facilidades oferecidas no seu alcance pelo mar.
Os poucos biógrafos de João Nunes salientam que este teve o seu interesse despertado para a música assistindo às aulas que a sua irmã recebia, fato comum em famílias de interesse cultural da época. Iniciou o seu aprendizado de piano e, a partir dos nove anos, de violino - abandonando-o porém depois de alguns meses. Estudando no Liceu Maranhense, as suas intenções profissionais dirigiam-se primordialmente à Engenharia, correspondendo aqui à vontade de seus pais e também às suas aptidões. Essa tendência à atividade técnica e construtiva já revelava um aspecto realista da personalidade de João Nunes que mostrar-se-ia dominante na sua vida e nas suas atividades. Entretanto, com o falecimento de seu pai, quando tinha apenas 13 anos, foi obrigado a trabalhar, interrompendo os seus planos. Entrou para o serviço dos Correios. Desde cedo, assim, foi obrigado a assumir um papel paterno e carregar a responsabilidade familiar. Também esses fatos abrem possibilidades de análise do vir-a-ser de João Nunes. O esforço inaudito que empreendeu para superar essa falta do pai e as dificuldades econômicas foram acompanhadas por um desejo de ascensão social e de alcance de sucessos. O domínio instrumental pareceu-lhe aqui ser o caminho mais realizável para granjear reconhecimentos. Sentiu-se para isso motivado ao assistir a um concerto orquestral sob a direção de J. Franco, então acatado mestre-capela local da época.
Influência italiana na vida musical maranhense do século XIX
A juventude de João Nunes decorreu em epóca de intensa secularização da vida musical de São Luís. Tradicionalmente, o cultivo musical se centralizava sobretudo nas igrejas da cidade, grande parte de seus instrumentistas e cantores atuavam nas orquestras e coros de irmandades e a vida músico-cultural local era marcada pelas novenas e missas solenes de autoria de renomados compositores maranhenses. Também João Nunes não poderia ter deixado de ser marcado por essas características tradicionais do meio, ao qual pertenciam vários de seus amigos, e indício dessa proximidade é o fato de ter composto um oratório denominado de "O Mártir do Calvário" (J. Mohana, op.cit.). Entretanto, a sua geração já era aquela que vivenciava a crítica eclesiástica, o declínio da era da grande tradição da música sacra de acompanhamento orquestral e, paralelamente, a centralização do cultivo da música vocal e instrumental na esfera profana.
A vida cultural de São Luís em meados do século XIX foi marcada pelo interesse pela ópera e pela visita de companhias italianas. Teve contato, assim, com as principais obras do repertório operístico italiano, tendo assistido a óperas de Rossini, Bellini, Donizetti e Verdi. Artistas dessas companhias traziam informações da Europa e proporcionavam novos impulsos ao meio. Ministravam, inclusive, durante a sua presença, aulas a musicistas e diletantes. Alguns desses europeus permaneceram mais longo tempo ou até mesmo se radicaram em São Luís. Assim, a cantora lírica Margarida Pinelli, casando-se com Sabbas da Costa, homem de teatro, tornou-se renomada professora de canto, realizando concorridas audições no Teatro São Luís. Esse foi o caso também de Ettori Bosi e sua espôsa, Maria Bosi, da companhia lírica do barítono Giuseppe Dominici, que, permanecendo em São Luís, formaram uma própria companhia, a "Empresa Belfost-Bosi". João Nunes atuou como pianista, acompanhando Ettori Bosi ao violoncelo. Esses músicos estrangeiros se reuniam em tertúlias na casa do renomado tenor maranhense Antonio Rayol, amigo de João Nunes. Da sua obra de juventude destacam-se composições inseridas na tradição romântica para piano (Romance), sobretudo formas menores (Folhas d'Album) e inspiradas em Chopin (Polonaise). A essa época remontam também um Tanguinho e uma Barcarola.
O jovem João Nunes atuou como pianista em outras oportunidades, por exemplo quando da campanha política do escritor Coelho Neto. Impressionado com o seu talento, Coelho Neto prontificou-se em preparar a sua transferência para o serviço de Correios no Rio de Janeiro.
Novos impulsos no Rio de Janeiro - cultura alemã e francesa
Na capital do Brasil, Coelho Neto apresentou João Nunes a renomados intelectuais e artistas. Confiou-o a Artur Napoleão (1843-1925) para prepará-lo para o ingresso no Instituto Nacional de Música.Sendo classificado para o 7° ano de piano, deu início a seus estudos em 1902. Nessa instituição, foi aluno de Alfredo Bevilacqua (1846-1927), concluindo o curso de piano brilhantemente em 1904. Com esse professor, recebeu uma formação técnica que o inseriu nas escolas de Theodor Leschetizky (1830-1915) e Georges Mathias (1826-1910). Influenciado pelo seu professor, daria continuidade a seus esforços de renovação do repertório pianístico com o cultivo dos grandes compositores europeus do século XIX, sobretudo L. van Beethoven, F. Chopin e R. Schumann.
Durante o seu último ano do curso de piano, inscreveu-se em grande concurso institucionalizado pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores (Aviso N° 377, de 10 de março de 1904), prestando as provas públicas no dia 26 de abril de 1904. A banca examinadora foi formada pelos professores Elvira Belo Lobo, Alberto Nepomuceno, Alfredo Fertin de Vasconcellos, Arthur Napoleão, Francisco Braga e Manoel Porto Alegre Faulhaber. João Nunes executou o Scherzo N° 2 op. 31 em si bemol menor de Chopin, um Prelúdio e Fuga do Cravo Bem Temperado, de Bach e o terceiro tempo de uma Sonata, uma peça que havia sido escolhida livremente pelo pianista. O candidato alcançou o primeiro prêmio e recebeu uma medalha de ouro.
Testemunho do ambiente marcadamente de influência francesa do Rio de Janeiro, no qual João Nunes se integrou, é o fato de que comentários a respeito de sua execução terem sido publicados por um jornal em francês, o L'Etoile du Sud, onde se salientou a sobriedade como característica da virtuosidade de João Nunes.
Revelações em Paris
Como resultado do sucesso obtido no Rio de Janeiro, e com o apoio financeiro do Govêrno do Estado do Maranhão, João Nunes dirigiu-se à Europa para estudos de aperfeiçoamento e expressamente para ouvir os grandes artistas, ou seja observar e assimilar novos desenvolvimentos técnicos e estéticos. Correspondentemente, uma de suas preocupações foi a de assistir ao maior número possível de concertos para conhecer novas tendências musicais. A sua permanência em Paris foi de dois anos, recebendo impulsos que determinariam a sua obra e as suas atividades posteriores no Brasil.
João Nunes insere-se assim no rol de músicos latinoamericanos, em particular pianistas, que foram marcados indelevelmente pela cultura francesa de Paris, a capital artística e cultural da Europa de grande parte dos séculos XIX e XX. Os impulsos que esses artistas receberam, porém, devem ser considerados de forma diferenciada de acordo com a época de sua estadia. Essa diferença no ambiente musical não se reduz apenas ao fato - já em si fundamental - de ter sido essa permanência anterior ou posterior à Primeira Guerra Mundial. Ela pode ser analisada de forma muito mais pormenorizada temporalmente, fato compreensível por se tratar de épocas de fundamentais evoluções estético-musicais. Os músicos de cultura francesa na América Latina, assim, apesar das afinidades determinadas pela sua formação, apresentariam diferenças quanto a repertórios, estilos e paradigmas de pensamento na sua atuação posterior nos respectivos países. Apesar de todas as similaridades da atmosfera parisiense vivenciada por exemplo por uma Guiomar Novaes (1894-1979), que lá esteve alguns poucos anos depois de João Nunes, o período de estadia do pianista maranhense, de 1905 a 1907, denota diferenças com relação àqueles imediatamente anteriores à Guerra.
João Nunes vivenciou Paris em período de apogeu de um mundo que ainda trazia as ressonâncias de fim-de-século mas que procurava o novo, a renovação de idéias e expressões. Sobretudo não se pode esquecer o acentuado cosmopolitismo da capital francesa nessa época. Poder-se-ia talvez dizer que Paris era um centro cultural europeu de contextualização francesa, e nessa internacionalidade desempenhava a cultura musical alemã um papel altamente significativo. Este aspecto supra-nacional da vida musical e da criação seria posteriormente continuamente salientado e defendido por João Nunes. Assim, o significado de instrumentistas alemães e de obras de compositores e executantes alemães e austríacos na formação parisiense de brasileiros não pode ser menosprezada. Para João Nunes, a temporada parisiense proporcionou-lhe várias revelações. Uma delas, a do universo wagneriano, ainda de grande influência na capital francesa. Dedicou-se ao estudo da obra de Wagner, a tal ponto de mais tarde poder exemplificá-la em concertos e conferências no Brasil.
Tudo indica que. como pianista, foram virtuoses alemães e austríacos que o fascinaram em especial, percebendo nas suas escolas técnicas e interpretativas características que vinham de encontro a seu modo de pensar. Grande experiência de João Nunes foi o aprofundamento de seus conhecimentos obtidos através de A. Bevilacqua da obra de L. van Beethoven, compositor então que marcava a vida de concertos da capital francesa, como o demonstrou a grande Festa Beethoven de 1906, realizada sob a direção de Felix Weingartner (1863-1942). Assistiu, entre outros, a audição integral das sonatas de Beethoven pelo pianista Edouard Joseph Risler (1873-1929), na Sala Pleyel. Esse pianista apresentava, em 1905, pela primeira vez o ciclo completo das sonatas beethovianas na capital francesa. Aluno de A. Dimmler, B. Stavenhagen, K. Klindworth, E. d'Albert e de L. Diemer no Conservatório de Paris, tinha sido correpetor em Bayreuth e era colaborador em encenações de obras de Wagner em Paris. À época de João Nunes tinha sido nomeado professor de piano e membro do Conselho Superior do Conservatório Nacional. De Risler impressionou-o a execução forte e austera, embora sutil, e o sentido estrutural que tornar-se-ia marca de sua própria arte pianística. Dentre as novas revelações para João Nunes se econtrava a da música mais antiga para instrumentos de teclado, já desde há algumas décadas difundidada e cultivada na França. Também Risler se destacava na execução ao piano de obras de cembalistas. Dele partiram os principais impulsos para a preocupação de João Nunes com a história do piano nas suas relações com o cravo, assim como por questões relativas à interpretação de ornamentos. Em Risler encontrou também um modêlo para a elaboração de transcrições e revisões de obras para piano, considerando as possibilidades e as exigências do instrumento.
Outro pianista que desempenhou particular papel na formação de João Nunes foi Emil George Konrad Sauer (1862- 1942). Sabe-se que assistiu pelo menos o último recital por êle realizado em Paris, na Sala Erard, em abril de 1906. Ainda décadas mais tarde guardava a lembrança de sua virtuosidade e de sua capacidade de tratamento quase que tímbrico-orquestral do piano. Aluno de N. Rubinstein no Conservatório de Moscou e de F. Liszt em Weimar, era professor então do Conservatório de Viena (1901-1908). Sauer foi um dos grandes intérpretes de Liszt e Chopin. A êle remonta o grande fascínio de João Nunes por Liszt e, pelo que tudo indica, a influência desse compositor nas suas próprias criações. João Nunes tinha, assim, como pianista, e com base na formação obtida no Brasil, uma afinidade por uma corrente que havia sido moderna ou anti-conservadora há algumas décadas, por autores da assim chamada Escola Novo-Alemã. Inseriu-se, assim, embora tardiamente, num movimento de reforma, cujo ideário ainda determinava o modo de pensar e o discurso de determinados círculos musicais. Aqui residiu um dos motivos da atenção que João Nunes dedicava à obra de Leopoldo Miguez (1850-1902).
Do ponto de vista estético, porém, João Nunes pertencia a uma outra geração. A grande revelação proporcionada pela estadia em Paris foi para êle a da descoberta do universo impressionista e, em particular, da música de Claude Debussy (1862-1918). Sabe-se da perplexidade que lhe causou o contato com as obras desse compositor e o esforço que fêz para compreendê-las no seu espírito, expressão e técnica. O estudo intensivo dessas obras marcaria profundamente a sua maneira de pensar e de criar. Entretanto, a influência impressionista não se processou de forma superficial, levando-o a meramente a assimilar características de uma linguagem musical esmaecida e sem contornos. O que mais assimilou, além de certas características técnicas da línguagem musical, foram tendências gerais do espírito do tempo, tais como uma certa recusa ao patético, uma distância à especulação filosófica e teórica, uma maior atenção ao mundo perceptível pelos sentidos, um certo humor e mordacidade, uma superação do sentimentalismo romântico, uma maior acentuação do elemento rítmico e outras tendências que vinham de encontro a seu modo de pensar e ser. Sobretudo os vínculos entre a imaginação e a natureza, constatáveis no pensamento da época, se manifestariam posteriormente no interesse de João Nunes por animais e suas expressões sonoras.
Nessa época, Debussy, com 44 anos, estava na fase de sua criação que em geral é considerada como intermediária (1904-12). Tinha acabado de compor La mer (1903-05), ocupava-se com a criação de Images pour orchestre (1906-12) e com Childrens'Corner para piano (1906-08). A atenção para composições relacionadas com o mundo infantil permaneceria também uma das características do trabalho de João Nunes. O seu impressionismo não corresponderia, assim, ao da primeira fase da obra debussyana, mas sim a uma época em que a obra de Debussy demonstrava modificações estilísticas com a maior definição de traços, de sonoridades, de desenhos e elementos melódicos.
João Nunes tornar-se-ia um divulgador da obra de Debussy no Brasil. Para êle, Debussy operara uma revolução mais profunda e mais radical do que a de Wagner, uma vez que esta não teria ultrapassado os limites do drama. As influências de Debussy se fizeram sentir nas obras de João Nunes, entre elas sobretudo as Cinq pieces drôles (Serenade des Clowns; Parfum qui s'invole; Marche espigle; Morbideza`(valse); Les Plaintes d'Arlequin).
Difusão de novas tendências estéticas no Maranhão
De retorno ao Maranhão, apresentou-se em concerto no Teatro São Luís, sendo acompanhado por uma orquestra formada de músicos locais sob a direção de J. Lentini (Rafael Freitas, Tancredo Serra Martins, Ignácio Cunha, Manfredo Cantanhede, Tomé Lisboa, João Lentini, Alexandre Cruz, Brasilidis Silva, João da Cruz, Miguel Sodré, Maurício Cerqueira, Daniel Cesar, José Honório, Gronwell, Manoel Freitas e Marcelino Maia).
O programa incluiu obras do repertório local (Ouverture de Martha, de Flotow) e aquelas preparadas por João Nunes durante a sua estadia em Paris. Executou assim a Valsa-capricho de Saint-Säens e obras de Beethoven, Chopin, Liszt (São Francisco de Paula caminhando sobre as ondas), Mantegne e Wagner. A segunda parte do programa constou de uma palestra de Antônio Lobo sobre a obra de Wagner, ilustrada por João Nunes ao piano.
Foi homenageado em longo artigo publicado pelo periódico local "A Pacotilha". Nesse artigo, salientou-se a nova escola de piano representada por João Nunes, avessa à virtuosidade brilhante e superficial do passado, exigindo porém uma grande capacidade de adaptação ao estilos dos compositores, uma obediência ao texto e à estética pessoal que requereria análises e estudos. Em outro concerto, também contando com a presença do governador, João Nunes executou obras de Rachmaninoff, Glück, Chaminade, Schubert, Chopin, Liszt e obras de sua autoria (Folha d'Album n° 2; Minueto; Polonaise).
Formação pianística e atividade artística no Norte do Brasil
O impacto de seu retorno a São Luís foi tão considerável que se fundou, com apoio governamental, a Escola de Música do Maranhão, a êle confiada. Permaneceu cinco anos na sua direção. Como pianista, apresentou-se em várias cidades do Nordeste e do Norte. Um de seus concertos deu-se no salão da Phoenix-Caixeiral, em Fortaleza, com obras de Beethoven, Doppler, Chopin, Wagner, Wieniawiski, Glück, Brahms, Schubert e outras de sua autoria. No Paraíba, deu um concerto no Club Astréa, em julho de 1908.
Uma particular menção deve ser feita à atuação de João Nunes na Amazônia em período de término do ciclo da borracha. Apresentou-se no Teatro Amazonas, acompanhando num dos concertos o violinista Armindo Lameira e o flautista Sobreira Lima, ambos amazonenses. O renome que adquiriu em Manaus levou a que fosse convidado para retornar no ano seguinte. Em 1912, apresentou-se no Teatro da Paz, em Belém, em concerto dedicado em parte a Chopin e Schubert, em parte a Claude Debussy. Depois de algumas semanas, juntamente com Celina Roxo, voltou a apresentar-se no mesmo teatro executando obras de Beethove, Chopin, Liszt, Brahms e, sobretudo, provavelmente pela primeira vez no Brasil as Variations Symphoniques de Cesar Franck.
Ao lado de sua intensa atividade pianística, João Nunes não esmoreceu na sua atividade pedagógica e nos seus elos com o mundo musical do Maranhão. Assim, durante uma audição de alunos da Escola de Música do Maranhão, a 13 de novembro de 1911, executou-se a "Canção do Exílio" de Gonçalves Dias, posta em música por João Nunes para coro a quatro vozes. Apesar do considerável número de alunos, a Escola foi extinta pelo Govêrno, por motivos financeiros. O seu renome como professor e pianista permaneceu porém vivo no Maranhão; ainda muito mais tarde estudantes locais permaneciam com o ideal de vir ao Rio de Janeiro para estudar sob a sua orientação, como foi o caso de Creusa Tavares Loretto.
Obra criadora
Transferindo-se para o Rio de Janeiro, tornou-se logo reconhecido nas suas aptidões de intérprete, compositor e professor. Elogiadas pelo crítico Oscar Guanabarino (1851-1937) foram obras de inspiração literária de João Nunes, entre elas a sua fantasia "Les harmonies de la cathedrale", inspirada em trecho da Notre Dame de Paris de Victor Hugo, e "La vie des abeilles", baseada em obra de Maeterlinck. A consideração dessas peças como descritivas e literárias por parte da crítica, porém, pode situá-las em inadequada corrente estética. João Nunes utilizou-se aqui da fonte literária como meio motivador para a captação de sensações. Não a descrição ou a reprodução músico-poética de textos, mas a recriação sonora de atmosferas e movimentos descritos literariamente é o que garantia uma maior contemporaneidade a essas obras. Suas composições, que eram vistas como primórdios promissores de uma longa e volumosa produção de compositor, o que não aconteceu, foram elogiadas também em artigos publicados no Exterior, tais como em texto sobre a Música Brasileira de I. Philipp, publicado em Le Monde Musical (9 de outubro de 1921) e executadas em concerto de autores brasileiros, como por exemplo em concerto histórico realizado no Museu Nacional de Belas Artes, em Buenos Aires.
Segundo Luís Heitor Correa de Azevedo, João Nunes situar-se-ia na "família espiritual" de compositores brasileiros cuja obra foi sobretudo devotada ao piano, entre eles Barroso Neto, Frutuoso Viana e João Itiberê da Cunha. Assim como Itiberê da Cunha, João Nunes manteve-se filiado às tendências francesas do começo do século. "Combina ao jogo de acordes do impressionismo um sôpro lisztiano, que faz o piano vibar em toda a sua extensão e utiliza subtilíssimos recursos técnicos para chegar àquela plenitude que parece transcender os limites do instrumento".(150 anos de Música no Brasil (1880-1950) Rio de Janeiro: José Olympio 1956, 220-221)
A primeira de suas Pièces Drôles, oferecida a Barroso Neto, de título "Sérénade de Clowns", surpreende pelas sua estruturação harmônica. Aqui utiliza-se João Nunes elementos que o remontam à obra de Debussy, tais como escalas de tons inteirosTambém utiliza de condução paralela de acordes.
Estes elementos, porém, são alternados com trechos diatônicos, em arpejos em scherzando, e o desenho e a estruturação da obra denotam o espírito claramente construtivo do autor.
1914. Dedicação ao magistério
O ano de eclosão da Primeira Guerra Mundial foi também o ano que determinou uma reorientação no rumo de vida de João Nunes. Preocupado com a insegurança da vida de artista, passou a dedicar-se ao ensino. Em 1914, tornou-se livre-docente do Instituto Nacional de Música. Formou vários pianistas no decorrer de sua intensa atividade de ensino. Quando Alberto Nepomuceno adoeceu, foi a êle que confiou os seus alunos. Entre os pianistas formados sob a orientação de João Nunes citam-se Helza Cameu, Lys Leite Machado, Creuza Tavares, Eugenia Bernardazzi, Maria Helena Charneaux, Maria de Lourdes Vaz, Aurora Bruzon, Maria de Lourdes Milone Vaz e Augusto Monteiro de Souza. Também a sua atividade criadora experimentou uma transformação, voltando a sua atenção à escrita de peças para crianças ou de natureza didática em geral (Marionetes; Caixinha de música; Quatro peças fáceis (História muito antiga, São horas de dormir; As duas amiguinhas; Ouvindo a serenata); Parque de diversões (Montanha russa; Os dois anões; Carrocel; A casa maluca; O chicote; Despedida); Os três meninos (O menino sossegado; O menino carinhoso; o menino travesso).
Para fins pedagógicos, organizou a Edição Escolar, publicada pela Casa Artur Napoleão. Essa coleção de peças para piano "dos repertórios clássico e moderno" foram por êle revistas, dedilhadas, classificadas por ordem de dificuldade (fácil F1 e F2; muito fácil MF 1 e M F 2; dificuldade média DM 1 e DM 2; difícil D 1 e D 2) e idealizada como coleção apropriada ao ensino de piano dos colégios, conservatórios e cursos particulares. De autores nacionais, incluia, além de obras suas (Parque de Diversões, Os meninos, Peças Infantis), composições de A. Nepomuceno, H.Oswald, L. Miguez, H. Villa Lobos; F.L. Vianna. A escolha de autores estrangeiros escolhidos por João Nunes permite uma visão do repertório por êle próprio utilizado nas suas aulas.
Procurando analisar a sua produção musical, Maria Luiza Vaz levanta a questão da comparação de João Nunes com Mussorgsky. A obra de João Nunes se destacaria pela riqueza de conteúdo, simplicidade de meios e elegância de estilo. O "Parque de Diversões" seria uma jóia da literatura musical apesar de ser uma série de seis miniaturas despretenciosas, compostas como obra de um bom artesão. Seguiria o novo conceito estético que valorizaria o artesanato fomulado por Paul Hindemith e representado, no passado, por um J. S. Bach. Sempre teria estranhado, porém, a comparação de João Nunes com Mussorgsky. As afinidades seriam várias - por exemplo entre os Quadros de uma Exposição e o Parque de Diversões, muitos, porém, seriam também os aspectos antagônicos, a começar pelos universos culturais opostos, Ocidente e Oriente. Nunes seria um autêntico representante da música Ocidental, latina no equilíbrio entre a razão e o coração. Ele não seria um músico nacional, mas cosmopolita na tradição pós-romântica. Sua criação refletiria uma das múltiplas faces do Brasil, o lado europeu, culto e tradicional do país.
Concepções de João Nunes. Música como tradução de estados psíquicos
Em "A inteligência musical" (A inteligência musical. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comércio, 1914), obra dedicada a seu professor Francisco Alfredo Bevilacqua, apresentada como tese de livre-docência, João Nunes tratou da inteligência musical no compositor, no intérprete e no ouvinte. O autor parte de considerações sobre a definição de música, criticando a conceituação de que "música seria a arte de combinar os sons" mas rejeitando também a noção de um cunho científico da música. Para êle, a definição mais apropriada seria a estética, considerando a música como sendo a manifestação do Belo por meio dos sons. Para êle, o domínio das ciências seria a razão, imutável nos seus princípios, inflexível na sua lógica, o da arte, porém, seria o campo da intuição, que não se saberia onde começaria e onde se acabaria. Para João Nunes, o objetivo da música seria "emocionar, traduzir estados psíquicos", e "expressar o inexprimível".
Apesar de sua admiração por Debussy, adquirida nos anos de sua juventude, João Nunes manteve-se à distância de desenvolvimentos mais avançados da linguagem musical, do atonalismo e do serialismo. Considerava o belo musical como um enigma. Sentia nos compositores modernos um esforço no sentido de afastar a arte da música do caminho dos grandes compositores do passado, "uma ansiedade de explorar filões sonoros de riqueza duvidosa, a vertigem de uma incursão no emeroso labirinto do incompreensível, do bizarro, do extravante".
Como manifestações de inteligência musical, discernia 5 pontos: - aptidão auditiva para a percepção de sensações sonoras; - faculdade de diferenciar os sons uns dos outros pela altura ou pela intensidade; - memória musical e faculdade de reproduzir sons ouvidos; - noção de rítmo, tando do ponto de vista geral como nas suas aplicações musicais; - faculdade de atribuição de sentido a um agrupamento de sons de caráter musical, ou seja, faculdade de compreender o sentido musical de uma composição, experimentando a emoção correspondente à idéia, ao pensamento ou ao estado de alma que o autor tenha procurado evocar.
Os dois primeiros pontos caberiam à psicologia, ou demais à fisiologia. Um professor teria como principal tarefa procurar meios adequados para orientar os discípulos segundo os fins a que se propunham.
O ouvinte, para que pudesse apreciar composições mais elaboradas, necessitaria de um certo grau de cultura musical; esse preparo poderia ser alcançado até certo ponto por meio de exercícios de audição. Haveria, entretanto, um ouvinte snob, que mesmo sem nada entender proclamar-se-ia entusiasmado pelos mais complexos desenvolvimentos musicais.
Concepções de João Nunes. Atualização do ensino do piano a serviço da musicalização
Em Do cravo ao piano, tese preparada para concurso de provimento de cátedra (Rio de Janeiro 1941) João Nunes teceu reflexões sobre a interpretação de ornamentos e sobre a necessidade de modernização do estudo do piano. A obra é dividida em duas partes, denominadas respectivamente "Do cravo...." e "...ao Piano", seguidas de uma Conclusão e de Bibliografia. Baseia-se, na sua exposição histórica, sobretudo em Antonio Marmontel e Hugo Riemann. Para João Nunes, seria necessário tornar os estudos do piano mais atraentes, de modo a despertar o interesse dos alunos; os exercícios deveriam ter um cunho artístico a fim de estimular o senso dos alunos e contribuir à sua musicalização.
Concepções de João Nunes.Pensamento estético-crítico
O pensamento estético-crítico de João Nunes se revela em muitas de suas numerosas críticas. Como sucessor de José Oiticica como crítico musical do Diário Carioca, a partir de 1929, e mais tarde de O Globo e de O Jornal, exerceu intensa atividade de escritor. Em fins da década de trinta, atuou também como colaborador em períodico cultural editado por Raul de Azevedo. Para êle, a crítica não deveria ser destrutiva; entendia a sua tarefa como sendo de cunho educativo, não se dirigindo a eruditos. Por esse motivo, não se restringia a críticas de concerto, incluindo textos de divulgação de fatos históricos e curiosidades relativas à vida de músicos.
João Nunes emprestava particular atenção às diferenças de interpretação e de estilos interpretativos dos executantes. Nos estudos chopianianos, cuja relevância acentuava, poder-se-ia dividir os intérpretes em "sensoriais" e "intelectuais". Mantinha distância com relação a transcrições para o piano, sobretudo de obras organísticas de J.S.Bach.
João Nunes manifestou nos seus textos contínua preocupação pelo desenvolvimento da estética musical, mantendo-se aberto com relação às inovações, mas sempre em dúvida a respeito dos rumos futuros da composição musical. Lamentava o pouco interesse pela obra de compositores brasileiros e salientava a alegria que sentia quando constatava que observadores estrangeiros faziam justiça aos compositores.
Foi um mediador de notícias vindas da Europa, especialmente de Paris, cujos periódicos musicais acompanhava. João Nunes dava curiosamente particular atenção à presença de animais na composição. Cita a menção de canários em polca de Cardoso de Menezes, de morcegos em peça de Henrique Oswald, de abelhas em composição de sua lavra e de vários animais em obras de Villa-Lobos.
João Nunes procurou considerar o papel exercido por mulheres na vida de muitos compositores e no desenvolvimento histórico-musical em geral. Essa atenção era justificada pela atuação de sua esposa, Maria Lília Nunes, cantora, assistente de Vera Janacopolos e sua sucessora no Conservatório Nacional de Teatro.
Distância quanto ao nacionalismo musical
Luís Heitor Correa de Azevedo, autor do mais pormenorizado estudo da obra e da personalidade de João Nunes (Luis Heitor. Música e músicos do Brasil: História, crítica, comentários. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1950, 245-253), salientou que a êle poderia ser feita uma censura, a de que a sua música seria pouco brasileira. O próprio João Nunes teria mantido uma posição distanciada com relação ao nacionalismo musical. Qualificava-o apenas de uma tentativa e, embora reconhecendo que obedecesse a intuitos elevados, não acreditava no alcance de resultados apreciáveis e na possibilidade de criação de um estilo musical apropriado à exteriorização do modo de sentir do brasileiro (Diário Carioca, 1 de dezembro de 1929).
Segundo Luís Heitor Correa de Azevedo, - não sem perceptíveis intenções de crítica -, não se deveria culpar a João Nunes por essa atitude, uma vez que uma "intensa união com a terra e com a raça tem que ser expontânea, obedecer a um chamado interior". João Nunes, artista sincero, não sentiria esse apêlo (sic!) (op. cit. 250). Uma obra poderia ser profundamente brasileira pela sua significação psicológica. Haveria gradações na força da expressão nacional, podendo-se falar de música muito brasileira e de música brasileira. Nessa escala de nacionalismo, a obra de João Nunes ocuparia um dos lugares mais baixos (op. cit., pág. 251). As suas primeiras composições teriam influência francesa, as do segundo seriam mais independentes. Seria fácil distinguir em algumas de suas obras pssagens que revelariam um certo fundo brasileiro, como o caráter modinheiro de As Duas Amiguinhas (Peças Fáceis n.3)
Significativamente, na sua História da Música Brasileira, Renato Almeida se resume a considerar João Nunes como um "artista sensível e discreto, de técnica requintada" (História da Música Brasileira, segunda edição correta e aumentada, Rio de Janeiro: F. Briguiet 1942, ,492-493)
Contextualização político-cultural
Do ponto de vista político-cultural, merece atenção a posição de João Nunes relativamente à situação da cultura musical à época da deflagração da Segunda Guerra Mundial. Para êle, a música não sairia incólume da convulsão político-social que abalava os fundamentos da civilização. A humanidade estaria prestes a regressar ao estado de barbárie e por todo o lado se difundiria uma atmosfera de pessimismo e apreensões. A música estaria perdendo o seu cunho de universalidade que teria sido desde o início do século XX o seu principal mérito. Até 1914, teria podido pairar acima das paixões políticas e de ódios raciais. Após 1918, teria podido recuperar esse seu caráter. Com a Segunda Guerra, porém, as forças do obscurantismo se esforçariam por demolir o edifício que músicos de todas as nacionalidades e credos políticos e religiosos teriam construído. Criticava, aqui, tanto a Rússia bolchevista como a Alemanha nazista.
Tentativa de aproximação psicológica
A história de vida de João Nunes demonstra a excepcional diligência de um músico que passou a vida em árduo labor, parecendo ter planejado desde cedo subir aos mais altos graus do reconhecimento artístico e social, na sua cidade natal, na capital do país, estudando em Paris e por fim lecionando no Instituto Nacional de Música.
Demonstrando talento na infância, foi um menino sério e precocemente adulto. Passou cedo pela necessidade de assumir a responsabilidade pela família e por si. A sua juventude foi uma escola de vida, desenvolvendo uma atitude de severo controle para consigo mesmo. Uma certa insegurança de seus rumos parece se depreender de sua estadia na Europa, não guiada por objetivos determinados.
Os depoimentos de alunos e amigos demonstram que, aparentemente, João Nunes era uma pessoa fechada, até mesmo arisca, trabalhadora, cuidadosa e exigente, atenta para o aspecto técnico da execução artística, da observação fiel da partitura, do absoluto domínio do instrumento. Segundo depoimento de Helza Cameu, aluna e sua auxiliar no Colégio Sacre-Coeur, João Nunes seria totalmente diferente em temperamento e idéias de Alberto Nepomuceno. Dava especial atenção não apenas à interpretação mas à análise estrutural e histórica, fazendo que seus alunos lessem, ouvissem e analisassem. Num primeiro encontro, surgia como personalidade austera, severa e crítica, e somente aos poucos revelava outros aspectos de sua personalidade, marcada por modéstia e probidade. Era um homem que queria planejar, organizar e executar com maestria a vida e a arte a partir de um ponto de vista realista e perpiscaz. Reservado, não falava sobre os seus planos e mantinha uma certa distância desconfiada para com outros. Mantinha uma posição discreta, oferecia-se como auxiliar de outros, não demonstrando os seus objetivos. Estava em constante vigilância crítica. Parecia estar preocupado desde cedo com a sua sobrevivência, atento para tudo que pudesse colocá-la em perigo. Foi uma personalidade que, apesar de sua excepcional formação e das possibilidades que teve, preferiu ficar em situação de segundo plano, dedicada a um trabalho de base, desde que pudesse controlá-la e estar a serviço de um dever. Na sua própria aparência dava grande atenção à correção de hábitos e de trajes. Mostrava não ter tempo para divertimentos e passatempos fúteis. Retornado da Europa e já contando com experiências de concertos e de docência no Norte do Brasil, não deu continuidade à sua brilhante carreira, submetendo-se no Rio de Janeiro de forma quase que inexplicável ao ministério do ensino com inteira abnegação, como que se quisesse ter assumido um cargo que, embora sem brilho exterior, também não tinha a instabilidade da vida de concertista. Na sua atividade de docência e no contato com os demais professores, demonstrou um acentuado espírito de ordem e um cuidado pela sua manutenção, por estruturas e pela dignidade do magistério. Como professor, desempenhava um papel patriarcal, assumindo absoluta responsabilidade pelos seus alunos em espírito de firmeza e de contrôle, mantendo estabilidade no ensino. Às vezes parecia ter a tendência a fanatismo e uma síndrome de tudo querer melhorar e corrigir. Não teve, assim, muitos amigos e parecia ser orgulhoso, receando cair em dependência e perder o auto-controle. Entretanto, apreciava a presença de colegas e discípulos mais extrovertidos, que tornavam por momentos a sua vida mais leve. Foi a sua esposa que nele despertou o fascínio pelo mundo infantil que se depreende de suas composições. Conhecendo-o melhor, porém, descobria-se nele aspectos inesperados: um humor quase que irônico das fraquezas do homem e das circunstâncias da vida.
Yara Coutinho Camarinha, responsável pela divulgação de obras de João Nunes no Conservatório Mineiro de Música, salientando também a austeridade que impunha respeito e distância, lembra o humor especial, que apenas se revelava a posteriori. Apesar de ter sido visto como um representante da tradição pós-romântico, esse romanticismo, porém, não se expressa claramente na sua vida e obra. Aberto às mais avançadas tendências estéticas na sua juventude, tornou-se em idade mais madura cada vez mais conservador.
Indicações bibliográficas sumárias
Almeida, Renato. História da Música Brasileira, segunda edição correta e aumentada, Rio de Janeiro: F. Briguiet 1942, , 492-493 Correa de Azevedo, Luis Heitor. Música e músicos do Brasil: História, crítica, comentários. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1950, 245-253 -----. 150 anos de Música no Brasil (1880-1950). Rio de Janeiro: José Olympio 1956, 220-221 (Coleção Documentos Brasileiros 87) Jansen, José. João Nunes: concertista, compositor, professor, cronista. São Luís: Fundação Cultural do Maranhão 1976 Mohana, João. A Grande Música do Maranhão. Rio de Janeiro 1974
A.A.Bispo