sDoc. N° 2270
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
110 - 2007/6
Tópicos multilaterais Polonia-Brasil-Israel
Dimensões político-culturais da música nas relações Polonia-Brasil na Segunda Guerra Felicia Blumental (Felicja Blumenthal)
Trabalhos da A.B.E./I.S.M.P.S. 2007. Estudos paralelos ao Seminário "Pesquisa da Cultura e Política"
A.A.Bispo
Estátua de F.Chopin oferecida pela comunidade polonesa do Rio de Janeiro. Praia Vermelha. Trabalhos da ABE 2007. Foto: A.A.Bispo Nos estudos histórico-culturais dedicados às relações entre a Pesquisa da Cultura e a Política, a Polonia assume um papel relevante. A conturbada história política polonesa não apenas influenciou a vida artística e criadora do país nas suas diversas fases e teve a sua expressão em obras de arte, literatura e, sobretudo, música. Como em poucos outros casos, compositores e músicos agiram no desenvolvimento político, assumindo papéis de representação que marcaram a imagem do país, angariando simpatias e popularidade pelas causas polonesas. Pode-se dizer que principalmente a música foi um potente fator de propaganda e de criação de estados de espírito de empatia pelos anseios do sempre ameaçado Estado polonês.
Essa atuação deu-se sobretudo em nível internacional, através de virtuoses e artistas exilados, de modo que os estudos músico-culturais poloneses necessarimente se vinculam com a história dos relacionamentos externos e da diplomacia.
O nome de maior projeção nessa história político-cultural é naturalmente o de F. Chopin. A sua música e a sua imagem, difundidas mundialmente, não apenas tornaram a causa polonesa conhecida e presente em numerosos países europeus e americanos como também fizeram-na transcender os próprios vínculos nacionais, adquirindo um cunho emblemático de ideais e lutas por valores de liberdade e libertação.
Assim, a divulgação e a extraordinária intensidade do cultivo da obra de Chopin no Brasil e em outros países latino-americanos não deveriam continuar a ser considerados apenas como meras expressões de ambiente de salão de minorias sociais privilegiadas e de influência européia. O seu significado cultural mais profundo se revela sobretudo sob a perspectiva dos processos euro-latinoamericanos na história das idéias. Por essa razão, já em 2004 realizou-se, com a cooperação da A.B.E., um seminário universitário na Universidade de Bonn dedicado a questões internacionais do Chopinismo, da Chopinística e da Chopinidade no seu significado para o desenvolvimento de uma musicologia de orientação culturológica e de uma análise cultural de bases musicológicas.
O Brasil foi particularmente focalizado nesse seminário, dando origem a trabalhos de término de curso dedicados à recepção da obra de Chopin no Brasil, inclusive no estilo de autores de grande popularidade, como por exemplo Ernesto Nazareth. A relevância do relacionamento entre a história política e diplomática para a história de processos culturais foi a seguir salientada em trabalhos da Academia Brasil-Europa dirigidos ao vulto do pianista, compositor e político Ignaz Paderewsky. (Veja relatos em números anteriores deste órgão).
No contexto dos estudos e dos debates relativos ao tema "propaganda, informação e intercâmbio científico-cultural", com particular consideração de acontecimentos e processos histórico-político-culturais dos anos 30 e 40, a Academia Brasil-Europa colocou no centro das atenções o papel desempenhado pela Polonia e por artistas poloneses na vida músico-cultural de conotações políticas do Brasil à época entrada do país no conflito mundial.
Posição crucial da Polonia na Segunda Guerra
A invasão da Polonia pela Alemanha nacionalsocialista em setembro de 1938 foi momento decisivo para a deflagração da Guerra e os acontecimentos que se seguiram mantiveram o país sempre em posição crucial no desenrolar da tragédia européia. A divisão do país entre esferas de interesse alemão e soviético, a instalação do Govêrno de Exílio polonês em Angers até a ocupação alemã da França, a sua operação então a partir da Inglaterra, o drama dos massacres ocorridos em terras polonesas, das perseguições, fugas e atrocidades cometidas na política antisemita foram alguns dos fatos que exigem uma particular focalização da Polonia nos estudos da Segunda Grande Guerra e de seus implicações e conseqüências.
Quando da declaração do Brasil do estado de beligerância contra a Alemanha e a Itália, em 1942, deu-se no Rio de Janeiro um acontecimento cultural de significado para estudos histórico-político-culturais relacionados com a Polonia nos seus elos com o Brasil. A edição de O Globo, de 22 de agosto de 1942 (ANo XVIII, N. 5001) na qual se anunciava a decisão do Govêrno brasileiro, incluia o anúncio de um concerto da pianista polonesa Felicja Blumenthal como expressão simbólica da solidariedade polonesa para com o Brasil. A renda do recital, a realizar-se na sala Leopoldo Miguez, da Escola Nacional de Música, deveria reverter integralmente para as vítimas dos navios brasileiros afundados por submarinos alemães em águas territoriais do Nordeste.
O jornal salientou que este era um gesto muito simpático da pianista, mundialmente aclamada como especialista na interpretação de Chopin. Dessa forma, Chopin e a simbólica que se vincula com a sua música estiveram presentes no contexto impregnado de tensões e de emoções daquelas semanas.
O empresário da pianista, Vipman, já há anos vivendo no Brasil, elucidou os intuitos seus e da pianista recentemente chegada ao Brasil:
"Tanto Felicia como eu entendemos que é nosso dever auxiliar, de qualquer maneira, as vítimas da brutalidade nazista. Quanto a Felicia, ela se sente muito à vontade para isto: todos os membros de sua família, no seu país ocupado, foram vitimados pelos sequazes de Hitler. Tambem eu tenho parentes em países ocupados pelo Eixo e não sei do seu destino. Estamos, pois, na obrigação de concorrer com algo para os brasileiros vitimados pela barbaridade nazista, para os filhos de um país que me hospeda, ha muitos anos, da maneira a mais cativante."
Internacionalismo na arte
A dimensão política e as implicações culturais do evento de Felicja Blumenthal foram explicitamente salientadas pelo empresário de F. Blumenthal em entrevista de título "Nazismo na Arte" para O Globo. Tratava-se de uma tomada de posição crítica com relação às idéias nacionalsocialistas na estética e uma defesa da internacionalidade da música.
"A arte é e sempre foi internacional. Mas, na época em que vivemos, os matadores nazitas na Europa tambem assassinaram a arte. Nós, no Brasil, vivemos, felizmente, num ambiente de liberdade e o povo brasileiro tem a alma para sentir a arte, como sempre sentiu. Estou certo de que, com este gesto, a grande pianista Felicia Blumenthal presta uma homenagem ao Brasil e aos brasileiros que com tanto carinho recebem e prestigiam os artistas de qualquer nacionalidade. Quem mais que uma artista pode sentir a dor de um povo, tanto mais quanto essa artista já sofreu a do seu próprio povo, o da Polonia, brutalmente invadido, onde estão sendo massacradas milhares de pessoas indefesas, incluindo mulheres e crianças?"
O potencial simbólico de Chopin também foi claramente salientado:
"Interpretando Chopin, Felicia sempre pensou na desgraça de sua pátria. Agora, ela está tambem sofrendo a dor das mães e dos filhos das vítimas brutalmente sacrificados pelos mesmos invasores de sua patria distante. (...)"
A tomada de posição política e político-cultural desse empresário e da recém-chegada pianista tinha também explicitas implicações internas. O concerto de F. Blumenthal surgia como uma demonstração de uma exigência que se impunha aos estrangeiros que viviam no país e que marcavam a vida musical das grandes cidades:
"Entendo, senhor jornalista, que não pode haver, agora, estrangeiros neutros, porque por um dever de gratidão aos brasileiros, todos os bons estrangeiros que vivem no Brasil não devem poupar esforços para serví-lo cada qual dentro das suas possibilidades."
Essa declaração, no contexto geral da edição do jornal, assumia um significado especial. A seu lado divulgavam-se notícias relativas ao aprisionamento de estrangeiros simpatizantes do nacionalsocialismo e à ocupação de instituições de imigrantes e seus descendentes de questionável orientação política. Também publicava-se pedido de um dos assíduos leitores do jornal no sentido de proibição das emissões com óperas de textos italianos, tais como aquelas levadas no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Felicja Blumenthal
Felicja Blumenthal, nascida em Varsóvia, a 28 de dezembro de 1918, já possuia renome no Brasil como uma das maiores expressões da arte pianística da década. Tendo demonstrando acentuado talento desde a infância, estudara piano e composição no Conservatório de Varsóvia com Joseph Goldberg, Zbigniew Drzewiecki e Karol Szymanowski. Contou também com a orientação de Stephan Askenase e Jósef Turczynski. Desenvolvendo a sua carreira em época difícil das opressões que sofriam os judeus, conseguiu abandonar a Polonia em 1942, procurando refazer a sua vida e a sua carreira no Rio de Janeiro.
Nacionalizada brasileira, tornar-se-ia um dos grandes nomes da arte pianística do país e um dos nomes de artistas que mais permaneceriam ligados à recente história da música brasileira. Após intensas atividades de concertista em vários páises sul-americanos nas décadas de 40 e 50, Felicja Blumenthal recuperaria a sua extraordinária projeção internacional alguns anos após a Segunda Grande Guerra. Em 1954, apresentou-se em Londres com a London Philharmonic Orchesta, em Paris com a Orchestre National de France e em Viena com a Wiener Philarmonie.
O nome de F. Blumenthal na história da música no Brasil permanece sobretudo vinculado ao de H. Villa-Lobos. Em 1955, em memoráveis concertos, ofereceu a primeira audição do Concerto N° 5 para piano do compositor, em Londres, sob a regência do próprio Villa-Lobos. Villa-Lobos dedicara-lhe essa obra pela impressão que tivera de sua interpretação das Bachianas Brasileiras N. 3. O concerto foi gravado pela Orquestra Sinfonica de Viena, em 1955.
Uma das notáveis iniciativas de F. Blumenthal foi a da divulgação de obras de compositores pouco conhecidos ou obras relegadas ao esquecimento, sobretudo do início do século XIX, tais como Hummel, Czerny, Field e outros. F. Blumenthal apresentou-se também várias vezes com a sua filha, a soprano Annette Celini. Em 1973, gravaram todas as canções de Chopin. Foi, também, uma grande divulgadora de compositores poloneses no Brasil, sobretudo Paderewski e Szymanowski, seu professor. Além do mais, incluiu no seu repertório obras de compositores portugueses e espanhóis dos séculos XVII e XVIII.
Uma particular menção deve ser feita ao papel desempenhado por F. Blumenthal na propagação da música contemporânea polonesa. Empenhou-se sobretudo pela difusão da obra de Krzyztof Penderecki. Quando das comemorações dos 25 anos da Eastman School of Music, em 1971, Penderecki escreveu, sob encomenda, a Partita for Harpsichord and Chamber Orchester, a ela dedicada. A obra, inúmeras vezes executada pela pianista, foi gravada para EMI sob a regência do compositor, à frente da Orquestra Sinfonica da Rádio Nacional Polonesa. Witold Lutoslawski, em 1978, orquestrou, para Felicjy Blumenthal, as suas Variações sobre um Tema de Paganini, que as apresentou com a Orquestra Filarmônica da Flórida, sob a regência de Brian Priestmann.
Os laços de F. Blumenthal com Israel tornaram-se cada vez mais estreitos, vindo a falecer em Tel-Aviv em 1991. Em 1999, o Tel Aviv Museum of Art, o principal centro cultural de Israel, deu o nome da pianista brasileira a um festival internacional de música que se tornou um dos mais renomados empreendimentos mundiais do gênero - o Felicja Blumental International Music Festival. As gravações de F. Blumenthal - inclusive com a interpretação histórica de obras de Heitor Villa-Lobos - veem sendo atualmente reeditadas.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).