Doc. N° 2272
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
110 - 2007/6
Tópicos multilaterais Alemanha-Brasil
Propaganda política, história institucional e associações de estrangeiros em contextos internacionais Reflexões em torno do Club Germania do Rio de Janeiro 65 anos do falecimento de Cristiano Carlos João Wehrs
Trabalhos da A.B.E. paralelos ao Seminário "Pesquisa da Cultura e Política", 2007
A.A.Bispo
Um dos complexos temáticos que devem ser considerados no âmbito dos trabalhos dedicados às relações entre a história política e a história cultural em contextos internacionais diz respeito à história das instituições científicas e culturais. Constata-se aqui uma situação que causa perplexidade e que deveria vir a ser melhor analisada devido as suas implicações no presente.
Há ainda em funcionamento na Europa institutos dedicados aos estudos brasileiros, latinoamericanos, íbero-americanos ou românicos em geral fundados na década de trinta, alguns dos quais de origem manifestadamente política, surgidos no âmbito ideológico e fomentados por govêrnos autoritários e ditatoriais. Mesmo que os atuais responsáveis, professores e pesquisadores dessas instituições não sejam adeptos das doutrinas políticas que marcaram a fundação e os primeiros anos de trabalho dos respectivos institutos, a continuidade institucional se mantém e o grau de conhecimento de suas denominações muito é devido à antiga propaganda de regimes do passado não-democrático. Com base nesse renome, exercem ou procuram defender situações de predomínio em determinadas áreas disciplinares.
De outro lado, instituições que pelos mais variados motivos foram suspensas, extintas ou integradas compulsoriamente em órgãos fundados por iniciativa política na década de trinta, em geral não mais se recuperaram. Foram alvo, na época, de propaganda negativa, justificada ou não, e a mácula resultante impediu a sua recuperação, ofuscando até mesmo anacrônicamente anos passados de intensa atividade e de contribuição relevante para a história cultural.
Essa situação é grave sob a perspectiva dos estudos histórico-culturais, uma vez que impede a consideração adequada do desenvolvimento histórico a partir de seus próprios pressupostos, projetando no passado avaliações de anos intensamente marcados por ideologias e pela propaganda política.
A complexidade dessa situação se evidencia sobretudo em instituições de estrangeiros nos vários países. Muitas dessas antigas instituições foram atingidas pela propaganda dos respectivos países natais, e a política externa de nações anti-democráticas levou em geral a que representações diplomáticas e consulares influenciassem, infiltrassem ou mesmo encampassem antigas associações. Esse desenvolvimento na história associativa não ocorreu sem pressões que se aproveitaram da situação particular, muitas vezes insegura e de dependência dos estrangeiros, inclusive sob o aspecto de direitos de permanência. Seria injusto e errôneo, assim, considerar sem a devida diferenciação esse desenvolvimento circunstancial na história de associações de migrantes nos vários países.
Como relatado em número anterior deste órgão, a política italiana fascista previa declaradamente a reformulação da estrutura associativa dos imigrantes, extinguindo sociedades e criando novos institutos. Também as associações de alemães, de tanta influência na vida cultural de vários países latino-americanos foram alvo de modificações e de reorientação de suas atividades segundo diretrizes nacionalsocialistas. Um estudo das modificações ocorridas na história das instituições demonstra como é questionável a tentativa de consulados em controlar associações culturais nascidas espontâneamente em círculos de migrantes ou de descendentes de determinada nacionalidade. Assim, com o reconhecimento da situação de beligerância com os países do Eixo pelo Brasil, em 1942, essas instituições passaram a ser vistas como centros inimigos.
Estudo de caso: Tomada da sede do Clube Germânia do Rio de Janeiro
Sob o título "Quartel-General da luta contra a 'Quinta Coluna'!", o jornal O Globo, em 22 de agosto de 1942, na própria edição que anunciava a declaração do Brasil de reconhecimento da situação de beligerância contra a Alemanha e a Itália, anunciava a entrega da antiga sede do Clube Germania aos estudantes da Universidade do Brasil.
A União Nacional dos Estudantes e o Diretório Central da Universidade do Brasil passavam assim a ter a sua sede no antigo clube dos alemães na Praia do Flamengo. A transferência deu-se no dia 22 de agosto pela manhã, comparecendo a ela os acadêmicos que dirigiam aqueles órgãos. O Ministro da Educação, Gustavo Capanema, entregou-lhes oficialmente o edifício. Os universitários reafirmaram os seus propósitos de prosseguir na campanha cívica contra o nazismo, contra a "quinta-coluna" e iniciar outra campanha, de maiores proporções, pela "União Sagrada dos brasileiros para que a Pátria formasse não um povo, mas um exército".
O passado do Germânia
O Germânia era uma das mais antigas organizações de alemães e seus descendentes no Brasil e exercia há mais de um século considerável influência no meio cultural da capital brasileira.
A sociedade, de objetivos recreativos, fora fundada em 20 de agosto de 1821, ou seja, antes da proclamação da Independência do Brasil. A sua sede era inicialmente na Rua dos Ourives n° 109, transferindo-se posteriormente para o bairro da Gávea.
O mais divulgado texto a respeito da sociedade Germânia é o de Carl von Koseritz (Imagens do Brasil. São Paulo: Martins 1943,pág. 89 ss.), que salientou que esse mais antigo estabelecimento alemão do Rio de Janeiro, primordialmente uma sociedade dos círculos comerciais locais, desde o seu início se dedicara ao cultivo da língua e da cultura alemãs. A sociedade possuia, em fins do século XIX, uma grandiosa sede na rua da Alfândega, um vasto edifício de dois andares. No primeiro andar se encontravam as salas de reunião e de baile, buffet, salas de refeição e de jogo; no segundo andar bilhares e biblioteca. Para Carl von Koseritz, o mais importante do Germânia era a biblioteca, a maior biblioteca alemã da América do Sul. Essa biblioteca era constantemente aumentada e recebia todas as novidades editoriais alcançáveis. Em outro capítulo, Carl von Koseritz deixou uma descrição de um baile realizado no Germânia por ocasião da visita do Príncipe Henrique da Alemanha, em 1883 (op.cit.,pág.193 ss.).
Cristiano Carlos João Wehrs
Inúmeras personalidades da vida social e cultural do Rio de Janeiro pertenceram à sociedade ou nela colaboraram. Entre elas, cita-se Cristiano Carlos João Wehrs, falecido pouco depois da tomada de sua sede (Rio de Janeiro, 11 de fevereiro de 1865 -30 de setembro de 1942). Filho de hamburgueses, recebera a sua instrução primária no Colégio Bally do Rio de Janeiro. Aos oito anos, seguiu para Hamburgo, completando ali a sua instrução e recebendo prendizado de construção de pianos. Retornando ao Brasil, trabalhou na empresa de seu pai, exercendo também a música e a pintura. (C. Carlos J. Wehrs, O Rio Antigo - Pitoresco & Musical: Memórias e Diário, Rio de Janeiro 1980)
C. Carlos J. Wehrs oferece importantes subsídios para a avaliação do papel exercido pelo Germânia na manutenção da identidade alemã no Rio de Janeiro. Assim, quando da morte do Imperador Guilherme I, todos os alemães do Rio de Janeiro puseram luto, o que havia sido proposto e aceito em reunião do Clube Germânia; durante três dias as casas comerciais de alemães semicerraram as suas portas e foi celebrado um ofício fúnebre muito concorrido (op.cit. 212).
Dos textos de C. Carlos J. Wehrs depreende-se também o importante papel que a sociedade Germânia desempenhou no desenvolvimento geral da vida cultural do Rio de Janeiro e na integração dos diversos grupos populacionais.
Sobretudo sob o ponto de vista musical, os membros do clube muito contribuiram para a vida artística do Rio de Janeiro e isso não se limitou absolutamente aos membros da colonia de língua alemã. Assim, deve-se mencionar o decisivo apoio que o violinista e amador Max Krutisch proporcionou ao músico e compositor Nicolino Milano, que pela sua origem e formação cultural nenhum vínculo possuía com a esfera alemã (a respeito veja artigo em número anterior desta revista). Tendo os estrangeiros do Rio de Janeiro reconhecido o talento precoce de Nicolino Milano como violinista que atuava no antigo Café Java, passaram a convidá-lo para participar em conjuntos de dança. Convidado para se apresentar numa noite de reunião no clube Germânia, Max Krutisch entusiasmou-se pelo seu talento. Financiou a compra de um instrumento valioso para o violinista. o que permitiu que desenvolvesse a sua carreira e que o levaria a posição de extraordinário relêvo em Portugal e no Brasil. Também incentivou-o a seguir a carreira musical, financiando a sua formação musical de Nicolino Milano no Conservatório Imperial de Música. (C. Carlos J. Wehrs op.cit. 104-105)
O fato de o Germânia do Rio de Janeiro - e similares entidades de outras cidades do Brasil - ter encerrado as suas atividades no período da Guerra e as acusações que a ela então se fizeram não pode obscurecer a história de mais de um século de atividades associativas. O estudo dessa longa história cultural de estrangeiros deve ser realizado de modo diferenciado e sob perspectivas atualizadas dos estudos culturais.
Assim como o Germânia, muitas das instituições associativas de estrangeiros e de migrantes caidas no esquecimento teriam até mesmo muito mais direito à consideração pela sua história nascida da iniciativa particular e por serviços anteriormente prestados do que afamados institutos ainda hoje existentes na Europa, fundados sob a égide de regimes autoritários da década de trinta. Estudos a serem desenvolvidos sob a perspectiva da science of science, analisando rêdes, vínculos institucionais e imagens criadas pela propaganda política poderão contribuir para uma maior diferenciação no estudo das instituições culturais e científico-culturais em contextos internacionais.
(As discussões tiveram e terão prosseguimento.)
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).