Doc. N° 2273
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
110 - 2007/6
Tópicos multilaterais Alemanha-Brasil
Propaganda Política e Circo no estudo das relações culturais Circo Alemão na América do Sul nos 30
Trabalhos da A.B.E. 2007. Estudos paralelos ao Seminário "Pesquisa da Cultura e Política"
A.A.Bispo
O estabelecimento de elos entre a Política e o Circo é comum em discussões triviais e tem conotações negativas: manifesta uma atitude crítica com relação a situações ou práticas políticas. Pouco tem-se considerado as dimensões mais profundas dessa aproximação, entre elas a da função político-cultural exercida pelo Circo ou a sua instrumentalização para fins políticos.
Esse papel relevante desempenhado pelo Circo não se reduz à sua história mais remota à época do Império Romano, um período que ficou marcado negativamente na Historia da Humanidade.
Um contexto pouco considerado - e inesperado - diz respeito às relações internacionais e interculturais de circos que realizaram tournées por países latino-americanos no século XX. Um caso especial foi o do Circo Alemão ou Sarrasani: os seus empreendimentos sul-americanos na década de 30 serviram à demonstração da tenacidade e da diligência germânica nos países visitados e à propaganda política na própria Alemanha.
A principal obra a ser considerada neste contexto, analisada e discutida nos trabalhos da A.B.E., foi o livro "Um destino alemão na floresta", de Ernst von Jungenfeld, publicado em Berlim no ano da tomada de poder do Partido Nacionalsocialista (Wilhelm Ernst Freiherr Gedult von Jungenfeld. Ein deutsches Schicksal im Urwald, Berlin: Im Deutschen Verlag, 1933).
Esse livro pertence ao rol das publicações do século XX pouco consideradas nos estudos brasileiros. Esse esquecimento da literatura memorial e de viagens do século XX tem as suas justas razões, não deve porém ofuscar a visão para a necessidade de estudos críticos. Estes devem ser realizados sob outros critérios do que aqueles empregados para os estudos de relatos de viagens do século XIX.
Sob a perspectiva dos estudos culturais e da história das mentalidades, sobretudo à luz de sua inserção em contextos político-culturais da época, o altamento divulgado livro de Ernst von Jungenfeld adquire especial interesse. Se a "história negra da imigração" e da propaganda anti-imigratória não era nova, havendo livros que desde meados do século XIX preveniam os alemães quanto à ilusão de uma vida promissora no Exterior e advertindo-os quanto às promessas dos agentes da imigração, o livro de von Jungenfeld renovava, no início da era nacionalsocialista, de forma particularmente drástica, o quadro assustador da vida que os imigrantes deveriam esperar na América do Sul.
O objetivo do livro tem cunho assim político-interno, ou seja, o de demonstrar que a mais negra situação que pudesse ser enfrentada na Alemanha seria muito melhor do que a vida no Exterior. O alemão deveria permanecer na sua terra, apesar de todas as decepções e das conseqüências da Guerra e da política internacional, do desemprêgo, da penúria econômica e das dificuldades que poderiam ocorrer. Essa mensagem é a que o autor transmite no relato romanceado de sua própria experiência de vida, descrevendo a sua queda na mais negra miséria e em situação de desespêro na América do Sul, da qual apenas um Circo alemão - ou seja um empreendimento de sua própria nação - conseguira por fim libertá-lo e reconduzí-lo à pátria.
Descendente de família nobre de antigas tradições militares, o autor servira na Primeira Grande Guerra. Estava no Paraguai, quando esta eclodira e, como muitos outros alemães, teria retornado à terra natal para nela combater. Após ter sido ferido na fronte ocidental, atuara como pilôto no Oriente Próximo. Vindo a derrota, salientara-se como orador político itinerante e debatedor. Nssa nova profissão a serviço da propaganda deveria estar presente sempre que um oponente político se apresentasse em público, procurando por todos os meios combater os seus argumentos. Isso dizia respeito sobretudo ao combate às idéias revolucionárias, nomeadamente a Karl Liebknecht (1871-1919).
O sucesso que obteve nessa atuação em Berlim levou que fosse enviadoà província, percorrendo as pequenas cidades. Em Sorau encerrou as suas atividades retóricas com um grande discurso relativo à Assembléia Nacional. A seguir, como adjudante de regimento, atuou num corpo de voluntários da Silésia para a defesa de limites alemães no Leste. A sua decepção resultou da perda do território, fato que via como característico do "destino alemão" e típico das fraquezas de regimes democrático-parlamentares:
"Talvez seja o destino alemão que mesmo em tempos de máximo perigo as diferenças internas não permitam surgir uma verdadeira coesão e que a desconfiança dos partidarismos mormente nesses tempos decisivos triunfe sobre a vontade de autopreservação" (op.cit. 25).
Tendo-se casado na Silésia e não querendo permanecer na região agora polonesa, e tendo sofrido por motivo de acusações, resolveu imigrar com a sua família para as "florestas" da América do Sul, continente da qual mantinha boas recordações de estadia anterior.
Diferenciava-se, assim dos muitos imigrantes que abandonaram a Alemanha empobrecida após a Primeira Guerra. Tinha conhecimento da região e de seus costumes e da língua, possuia um certo capital, era jovem, empreendedor e com forças, ou seja, possuia todas as condições para triunfar na imigração. (pág. 28) Não poderia haver, portanto, melhor estória do que a sua para provar aos alemães que seria melhor permanecer na pátria. A tentação de procurar sucesso fora do país natal era grande, vendo-se a imigração à luz do romantismo, da atração pelo desconhecido, pelo descobrimento e revelação de paisagens exóticas e fantásticas. Para o autor, não havia dúvida que ainda existiria muito espaço no mundo para a transplantação da força e da vontade de trabalho alemã como contribuição para um mundo em "boa ordem". Entretanto, o mundo teria caído em desordem, e a crise econômica, partida da Europa, teria alcançado todo o globo. Ninguém poderia dela fugir, fosse nos bosques da Prússia do Leste, fosse nas selvas do Brasil ou do Paraguai. Também nesses países nenhum miserável se tornava mais milionário como no passado, pelo contrário: milionários se transformavam em pedintes de esmolas. (op.cit. 12)
Grande parte da obra é dedicada à sorte do imigrantes no Paraguai e na Argentina (capítulos: Despedida da Guerra. Viagem com obstáculos. A Cidade dos bons ares. Paraguai, país da morte e do esquecimento. Venda alemã na floresta. O "último gaúcho". Colonia na floresta. Plantagem de erva-mate em Monte Carlo. Sorte no Paraná. A Terra das possibilidades limitadas. Destinos alemães no Paraguai. Atmosfera de guerra em Buenos Aires. Circo redentr. Sofrimento e alegria no Circo. Apresentação no Brasil. Retorno).
O capítulo dedicado ao Brasil, penúltimo do livro, descreve a vinda do Circo Sarrasani ao Rio de Janeiro e a São Paulo. A estadia no Brasil encerrou a tournée do circo pela América do Sul.
O autor salientou, inicialmente, que a viagem de um circo de Buenos Aires ao Rio de Janeiro apresentava muito maiores dificuldades do que aquela de uma viagem semelhante na Europa. Na Alemanha, saber-se-ia exatamente o que era permitido ou não. Na América do Sul, primeiramente tinha-se que fazer uma pesquisa para saber quais seriam as leis e a atitude dos órgãos públicos. Os problemas criados pelos vários ministérios, as numerosas visitas a instâncias subordinadas e às administrações municipais para a entrada dos animais e para a permissão dos artistas e trabalhadores provenientes de vários países tornavam o trabalho extraordinariamente difícil.
O autor, com a incumbência de preparar a vinda do circo, partiu de vapor com 10 caminhões de Buenos Aires para o Rio de Janeiro, sabendo que nunca mais voltaria a um país ao qual se dirigira com tantas esperanças e no qual apenas vivenciara decepções. Agora, tinha a sorte de abandoná-lo, uma sorte que precisou vir da Alemanha na forma de um circo. Após ter conseguido as licenças necessárias, puderam vir os outros três navios de Buenos Aires.
Uma atenção especial dá von Jungenfeld a seu trabalho de propaganda no Brasil. No Rio de Janeiro não havia postes de anúncios, e a colocação de cartazes em muros era terminantemente proibida. Tendo porém indagado a respeito do preço da multa, resolveu infringir as leis, espalhando cartazes pela cidade: "Nessa noite engajei uma tropa de coladores com várias centenas de homens, e essas pessoas tiveram o divertimento de colar os nossos cartazes nas belas e lisas paredes das casas da cidade" (pág. 231). A prefeitura enviara imediatamente tropas de limpeza e a polícia estipulara multas que foram pagas imediatamente. Tudo, porém, contribuiu à maior divulgação do circo.
O ponto alto da propaganda foi a entrada do Circo às cinco horas da tarde na cidade. O horário fora conscientemente escolhido para fins propagandísticos. Nessa hora, as avenidas da cidade estavam muito movimentadas e a parada de animais e artistas causaria congestionamentos. Os elefantes, com vestimentas indianas, carregavam bailarinas também vestidas à moda da Índia. A parada dos elefantes, camelos, zebras e outros animais representava um cortejo nupcial e Sarrasani apareceu em traje de um Maharadscha, precedido por centenas de músicos. Todo o tráfego no centro da cidade ficou interrompido durante duas horas. A ação propagandística, porém, atingiu os seus objetivos: durante a noite, o circo precisou ser guardado por muitos policiais e, no dia seguinte, por todo um regimento de infantaria.
Apesar do sucesso no Rio de Janeiro, o circo passou por momentos difíceis e o relato desses acontecimentos utiliza o autor para fins propagandísticos. A culpa seria dos estudantes da Universidade do Rio de Janeiro, provenientes de todas as regiões do país, e que gozavam de privilégios inauditos para um europeu. A polícia nada poderia fazer contra êles e os estudantes contavam até mesmo com um próprio tribunal. Para o autor, formavam uma cidade na cidade. Já durante os preparativos para a chegada do circo teria presenciado o poder dos estudantes. Estes, exigindo transporte gratuito nos coletivos, atacaram bondes, levantando-os dos trilhos e virando-os, sem que a polícia pudesse ter agido. Oito dias após a inauguração do circo, uma comissão de estudantes apresentou-se ao autor. Não aceitaram a oferta de uma apresentação de gala gratuita dentro de 14 ou 18 dias e, para forçar uma apresentação dentro de prazo menor, colocaram anúncios em jornais da cidadenos quais o diretor do circo declarava à população oferecer uma sessão gratuita aos estudantes. Um grupo de 5000 a 6000 estudantes, marchando, dirigiu-se ao circo e tentou forçar a entrada, sendo impedidos pelos elefantes e pelos trabalhadores da empresa. Uma outra tentativa levou a uma agitação entre os elefantes; estes com mêdo da multidão, soltaram-se de suas correntes. Estudantes foram apanhados pelas trombas e atirados ao ar. Somente com a ordem decidida de Sarrasani voltaram os elefantes para os seus lugares. A morte de um estudante teria dado uma lição para os acadêmicos do Rio de Janeiro. O autor salienta o milagre da disciplina de uma ordem do líder, capaz de trazer calma a tantos animais e impedir a calamidade. (pág. 241-243). Assim, o episódio do Circo Sarrasani no Rio de Janeiro servia para demonstrar não apenas o poder da propaganda mas sim também o da liderança no estabelecimento da ordem, surgindo Sarrasani como paradigma de um Führer!
Por motivos climáticos, a tournée no Brasil foi mais curta do que na Argentina. Os animais não teriam suportado o calor do verão. Sarrasani também queria estar de volta à Alemanha pelo Natal. A ida a São Paulo pareceu ser uma necessidade devido ao grande número de alemães que ali viviam. As maiores dificuldades foram as de transporte. A estrada de ferro não poderia ser utilizada devido à quantidade de túneis relativamente baixos na Serra do Mar, pelos quais não poderiam passar os carros do circo, mesmo se deles se retirassem as rodas. Por essa razão, precisou-se subir o Caminho do Mar. Seria admirável o que os carros teriam aguentado nesse trajeto, apesar dos atolamentos, queda de carros nas curvas e até mesmo desmoronamentos. Em São Paulo, essa empresa tinha sido vista como irrealizável. (pág. 245) A subida da Serra do Mar pelos carros do circo demonstravam, assim, a excelência da têcnica construtiva alemã, da solidez de seus automóveis e caminhões e poder de organização e logística da comunidade coesa dos alemães.
Foi em São Paulo que o autor se desentendeu com Sarrasani e pediu a sua demissão. Após várias peripécias, inclusive tendo servido na casa das máquinas do navio, o autor pode retornar à Alemanha. A última frase do seu livro expressa a redenção do alcance da antiga pátria: "Eu estava livre, livre a partir de minhas próprias forças, na antiga terra natal de novo conquistada" (pág. 268)
A respeito de outra atuação do circo Sarrasani no Brasil tem-se informações de outra obra, divulgada nos últimos anos da Segunda Guerra (Franz Xaver Dworschak, Meister der Manege: Zirkusleute erzählen aus ihrem Leben, Berlim: Zeitgeschichte-Verlag 1943, 41 ss.). A família Stosch-Sarrasani, cuja história remontava ao ano 1588, não tinha sido uma família de tradições circenses, contando com pastores, doutores da teologia, oficiais, entre êles o fundador da primeira frota alemã (Albrecht von Stosch) e industriais. Hans Stosch-Sarrasani, não querendo permanecer na fábrica de vidro paterna, entrou num circo, iniciando a sua carreira de baixo, a partir dos mais ínfimos trabalhos. Tornou-se palhaço, investindo o seu dinheiro na compra de animais. O rigor que se impusera a si próprio e a disciplina que adquirira na liderança e no treinamento dos animais representariam as diretrizes que fizeram o sucesso do Circo, cujo trabalho apenas poderia ser efetuado dentro da maior ordem e de um espírito de cooperação nascido em situação comandada por um homem forte. Essa disciplina do Circo Sarrasani demonstrava-se também nas horas livres, sobretudo nas excursões realizadas no âmbito do projeto nacionalsocialista da "Força pela Alegria" ("Kraft durch Freude").
O velho Sarrasani estivera pela segunda vez em abril de 1934 na América do Sul, uma viagem realizada após a superação de vários empecilhos e que se transformara em tournée vitoriosa. As apresentações tiveram início no Rio de Janeiro, a 14 de maio de 1934, terminando em Buenos Aires, em 12 de novembro de 1935. Sarrasani apresentou-se agora expressamente como propagandista da Arte Circense Alemã e do representante da eficiência do trabalho alemão.
Em São Paulo, Sarrasani - o Pai - faleceu no dia 21 de setembro de 1934. Sendo da convicção dos artistas de que o "Circo não pode parar", e segundo vontade do falecido, não houve interrupção do espetáculo, e o seu filho apresentou-se no mesmo dia. Tendo sido o seu último desejo ser enterrado em Dresden, a sua cidade natal, o seu corpo foi transportado num dos carros do circo, descendo a Serra do Mar. Em Santos ocorreu ainda um grave acidente: a queda da jovem trapezista Emmy, membro do grupo Wortley, quebrando a coluna.
A vida sul-americana também é descrita nessa obra em termos negativos. Em particular, salienta-se a falta de disciplina, de espírito de ordem e de acato às autoridades e às leis, assim como da irresponsabilidade do funcionalismo no exemplo das estradas de ferro brasileiras. O Circo Sarrasani que, ao contrário da primeira viagem, realizou a viagem por ferrovia do Rio de Janeiro ao Sul, percorrendo acima de 4000 quilômetros e apresentando-se em várias cidades, entre elas Sorocaba e Curitiba, experimentou, apesar de grandes sucessos, perdas materiais e humanas.
As lembranças de Sarrasani oferecem um quadro altamente negativo das empresas brasileiras. Ocorrências de causa natural contribuiram para que a viagem se tornasse um pesadêlo. Assim, também essa publicação tem evidentes implicações propagandísticas internas para a Alemanha. Mostrava aos leitores que, apesar das agruras da Guerra, então já nos seus últimos anos, a vida no país natal ainda seria melhor do que aquela desregrada da América do Sul.
(As discussões terão prosseguimento)
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).