Doc. N° 2240

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Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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109 - 2007/5


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Circuito euro-brasileiro de estudos na Baviera, Dr. A. A. Bispo

Realismo e Milagre na cultura do Barroco e suas implicações para as análises político-culturais

Igreja de Wies. Trabalhos da A.B.E. 2007. Preparatórias do Seminário "Pesquisa da Cultura Política e Análise Cultural"

 

Wieskirche
Igreja de Wies, Baviera. Trabalhos da A.B.E.
(Fotos A.A.Bispo)
A igreja de romaria de Wies, pela sua localização, emoldurada pelos Alpes, e pela magnificência de sua arquitetura interior, é considerada por muitos como a mais extraordinária obra de arquitetura sacra de estilo rococó do globo.

O seu construtor foi Dominikus Zimmermann, autor do projeto que apresenta uma planta elíptica. O seu irmão, Johann Baptist Zimmermann, foi o autor das pinturas murais da nave da igreja. Esses artistas trabalharam também com efeitos de luz, criando um interior resplandecente em branco e em dourado. Arquitetura e arquitetura de interior, partes integrantes de uma concepção totalizante, apenas compreensível sob o pano de fundo de uma visão integral do mundo e do homem, são imbuídas de linhas que se dirigem para o alto, abrindo-se para o mundo transcendente no grande panorama pictórico representado no teto.

A arquitetura, com a sua própria movimentação formal, acentuada e interpretada pelo programa teológico pintado, tem uma retórica própria e fundamentada na exegese e hermenêutica cristã. Esta é representada por estátuas dos Doutores da Igreja, obras do escultor Anton Sturm e Egid Verhelst, o Velho: Gregório e Agostinho, Ambrósio e Jerônimo.

Religiosidade popular e fé em milagres

Sob a perspectiva dos estudos euro-brasileiros, uma particular atenção merece a espiritualidade popular que se manifesta na história da fundação da igreja e nas romarias que a ela se dirigem. A sua origem está vinculada à imagem de Nosso Senhor do Pilar.

Segundo a tradição, essa imagem teria sido levada tradicionalmente em procissão de cidade próxima ao local onde hoje se ergue a igreja. Não sendo mais conduzida, e conservada por uma camponesa no seu sítio, chamado Wieshof, foi encontrada com lágrimas nos olhos (1738). Nesse local, construiu-se a igreja, logo transformada em centro de peregrinações.

A imagem de Cristo do Pilar, do Flagelado, de madeira, era originária do antigo convento premonstratense de Steingaden, tendo sido esculpida no ano de 1730. De extraordinário realismo na expressão do sofrimento, teria sido essa a razão de não mais ter sido levada em procissão. Pela grande afluência de peregrinos que queriam ver as lágrimas no rosto da figura, construiu-se uma capela rural, logo tornada demasiadamente pequena para abrigar os fiéis. O abade Marianus Mayr, de Steingaden, lançou a pedra fundamental do novo templo, no dia 10 de julho de 1746. A igreja foi consagrada pelo Bispo Auxiliar de Augsburgo, F. X. Adelmann von Adelsmannsfelden. Reproduções da imagem foram muito difundidas e guardadas em capelas. Após a secularização, a igreja foi fechada e deveria ser demolida; o seu material deveria ser utilizado em outras construções. Entretanto, por esforços dos camponeses e de antigos premonstratenses pôde ser salva.

Paralelos de expressões artísticas e concepções

As reflexões euro-brasileiras na Wieskirche dirigiram-se em primeiro lugar às similaridades das expressões da religiosidade do século XVIII entre a Baviera e o Brasil, aqui particularmente em Minas Gerais. A magnificência do Barroco e a sua força marcante na cultura em regiões tão distantes entre si despertam sempre a admiração mesmo dos observadores bem informados a respeito dos contextos globais em que o Catolicismo agiu. Levanta-se a questão, naturalmente, dos elos históricos, dos mediadores de influências entre regiões tão distantes, uma vez que não se pode supor apenas um paralelismo ocasional, uma coincidência de expressões artísticas e de determinados acentos na religiosidade e nas práticas de culto. Esta questão, que exige levantamento de dados documentais da história da missão católica na América Latina e naquela da Contra-Reforma na Europa Central, já foi respondida afirmativamente e tratada em vários eventos da A.B.E. nas últimas décadas.

O que desperta maior admiração, porém, não é tanto o processo colocado em ação e os seus acentos em momentos do sistema de ordenação simbólica mais adequados para os intentos de conversão e re-conversão, mas sim a constatação de expressões de religiosidade comuns que se desenvolveram quase que espontâneamente no interior do próprio sistema. Entre essas expressões salienta-se a ocorrência de milagres similares em várias regiões, cujo significado para a cultura é testemunhado por igrejas particularmente grandiosas levantadas em geral por movimentos populares, como no caso da Wieskirche.

A veneração do Senhor do Pilar na Baviera surge como expressão de culto familiar a brasileiros de comunidades tradicionais de Minas Gerais e de outras regiões do Brasil. As imagens da Paixão marcaram, com o seu realismo emocionante as procissões da Alemanha, dos países ibéricos e do Brasil e deram origem a expressões particulares de culto.

Do ponto de vista dos estudos culturais, levanta-se aqui a questão da razão desse Realismo sob o pano de fundo da ordenação simbólica tão marcadamente de natureza alegórica do Catolicismo de séculos passados. Qual a razão dessa concomitância de representações alegóricas e de figuras de realismo teatral na cultura católica do passado? Populares ambas foram: as primeiras, determinando grupos de folguedos para as festas religiosas e procissões de Corpus Christi, as outras fundamentando formas de veneração e culto. A diferença, porém, parece não apenas poder ser explicada pela distinção entre lúdica e veneração, talvez apta a ser analisada sob o referencial Cultura/Culto. A primeira, a alegórica, surge, apesar de todas as suas aparentemente fantasiosas e hoje dificilmente compreensíveis expressões, como resultado de uma lógica sistêmica, quase que de uma construção teórica baseada em princípios altamente coerentes, embora complexos de sinais e de relações tipológicas. Essa esfera do folguedo, do jogo, da ilusão, é tudo, menos ilusória, revelando-se como expressão de uma concepção do mundo surpreendentemente racionalizada e apta a ser analisada racionalmente. A segunda, porém, a esfera do realismo, de figuras dramáticas com as quais os fiéis se identificam e se emocionam, sobretudo com as suas dores, é também o terreno dos milagres, de imagens que derramam lágrimas e se deslocam. O irracional do milagre se vincula aqui com o Realismo de forma a causar perplexidade.

Essas considerações poderiam levar a conclusões inesperadas: a alegoria, a interpretação dos textos bíblicos e da história da Igreja pela alegorese, pela hermenêutica, parece oferecer muito mais possibilidades para um entendimento racional, esclarecedor, quase que iluminador e iluminista. Inclui também, na abstração de tipos e estruturas, possibilidades muito maiores de contribuir para o diálogo da religião com a filosofia, surgindo como muito mais adequada para a representação de conteúdos incapazes de serem apresentados naturalisticamente. Ao contrário, a teatralização realista, embora incapaz de reproduzir dignamente aquilo que procurar representar, surge, apesar de toda a compreensibilidade aparente, como obscuradora da razão, como emocionalizadora e preparadora da fé no milagre.

Poderiam essas considerações ser generalizadas e tornarem-se instrumentos de análises culturais mais amplas? Poder-se-ia, no caso atual da discussão do complexo "Pesquisa Cultural e Política" aplicar tais distinções no estudo de processos político-culturais? Seria a fé em "milagres" no desenvolvimento político-social - um fenômeno particularmente constatável na história político-cultural da América Latina - resultado de mecanismos culturais que remontariam ao Realismo de práticas do passado? Seria uma nova alegorese o caminho não somente para o diálogo entre religiões, entre a religião e a ciência, mas também para a política cultural?

As discussões deverão ter prosseguimento.

 

Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).