Doc. N° 2241
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
109 - 2007/5
Tópicos Multilaterais Itália-Brasil
Fascismo na história político-cultural das relações Itália-Brasil 75 anos da "Viagem musical" de Adriano Lualdi à América do Sul e do concerto sul-americano no II° Festival Internacional de Música de Veneza
Veneza. Trabalhos preparatórios da A.B.E. para o Seminário "Pesquisa da Cultura e Política"
A.A.Bispo
Veneza. Trabalhos Itália-Brasil da Academia Brasil-Europa (Fotos A.A.Bispo) Se na Politologia pode haver opiniões controversas a respeito da possibilidade ou não de se falar de uma Ciência da Política, no sentido próprio do termo, em sistemas autoritários dos anos trinta e quarenta, não se registram discordâncias no reconhecimento da politização da vida cultural da época, da instrumentalização da cultura para fins políticos e da relevância do fator político-cultural nas relações internacionais. Para o estudo de processos culturais das relações euro-latinoamericanas, em particular, no caso, euro-brasileiras, o exame crítico das ações político-culturais desse período assume particular significado devido às consideráveis parcelas populacionais em países sul-americanos provenientes dos países europeus atingidos por ideologias e sistemas totalitários. O estudo histórico-político-cultural relaciona-se, assim, estreitamente com os estudos de imigração e de transformação de identidades de imigrados e seus descendentes. Nesse sentido, esse complexo de questões vem sendo tratado em projetos de pesquisas e em eventos da Academia Brasil-Europa. Sobretudo as colonias de língua alemã do Brasil foram consideradas sob a perspectiva histórico-cultural da influência nacional-socialista em várias ocasiões, desde o início dos anos 80. Os trabalhos foram apresentados em congressos e simpósios, por exemplo no Forum Rio Grande do Sul do Congresso de Estudos Euro-Brasileiros, realizado em São Leopoldo e Gramado, em 2002.
Estudos dessa natureza foram complementados por pesquisas político-culturais comparatísticas desenvolvidas no contexto de trabalhos de mestrado dedicados à vida cultural de comunidades alemãs em países sul-americanos de idioma castelhano (sobretudo Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai) e na África (Namíbia). Todavia, longe ainda se encontra a pesquisa de ter esgotado as possibilidades de levantamento de dados e de análises. A história político-cultural de outros grupos de imigrantes e de seus descendentes nas suas relações com desenvolvimentos europeus dos anos trinta tem recebido relativamente menor atenção dos estudiosos. Entre eles se insere o das comunidades da colonização italiana no Brasil, embora levantamentos de documentação e estudos contextualizados hajam sido desenvolvidos em várias localidades de passado imigratório. Um primeiro trabalho de cunho comparatístico-cultural, ou melhor, de exame de analogias e diversidades em processos de integração e diferenciação de identidades de italianos na América do Sul (em especial Buenos Aires) e na do Norte (em especial em Nova Iorque), sob particular consideração do papel exercido pela música, foi recentemente desenvolvido como dissertação de mestrado. Esse trabalho fornece subsídios para a inserção dos estudos culturais e político-culturais da imigração italiana no Brasil em contextos supra-nacionais interamericanos. A pesquisa político-cultural das extensões e das influências de movimentos e ideologias autoritárias da Europa no Brasil apresenta porém amplitude mais ampla do que aquela dos estudos de imigração. Ela diz respeito à sociedade em geral, uma vez que idéias e posicionamentos políticos se propagaram também em outros círculos da população, influenciaram instituições e a história da política no seu todo. Também aqui a cultura desempenhou importante papel, e muitas vezes foram expressões, estilos e concepções culturais que serviram como ponte para a transmissão de conceitos e convicções. Sob esse aspecto, a cultura politizada serviu também como agente de aproximação de grupos populacionais de diferentes proveniências e tradições. Contribuiu também para um outro tipo de diferenciação na transformação identificatória de grupos sociais, dividindo as comunidades segundo orientações políticas de seus membros e reagrupando-as segundo outros critérios daqueles determinados pela origem e classe social. Deve-se atentar à natureza internacional das relações, de modo que a pesquisa político-cultural dessa época apresenta-se como uma exigência para os estudos de processos culturais euro-brasileiros e e interamericanos em geral. No rol das fontes utilizadas nos estudos das relações culturais em contextos internacionais, os relatos de viagem de visitantes estrangeiros desempenham importante papel como meios de informação. Apesar das dificuldades que se prendem a esse tipo de documentação heterogênea, que envolve em geral obras sem cunho científico, os livros de impressões e descrições de viajantes veem sendo considerados no âmbito dos estudos culturais, sobretudo daqueles relativos ao século XIX. A literatura de viagens do século XX tem recebido muito menor atenção, o que em parte é compreensível, uma vez que se dispõe de possibilidades documentais especializadas e mais fidedignas. Entretanto, para os estudos críticos da história político-cultural, tais publicações assumem particular interesse, uma vez que oferecem dados elucidativos a respeito do posicionamento político e político-cultural de seus autores e até mesmo da intenção e do escopo de viagens e atividades. Uma dessas obras pouco consideradas nos estudos brasileiros, hoje praticamente esquecida, é a Viagem Musical na América do Sul, de Adriano Lualdi, uma fonte sob vários aspectos significativa para a história político-cultural das relações Itália-Brasil pelo papel saliente que desempenhou o seu autor na vida musical italiana e pelo seu posicionamento político explícito (Adriano Lualdi, Viaggio Musicale nel Sud-America. Milano: Istituto Editoriale Nazionale, 1934). O nome de Lualdi permaneceu conhecido no Brasil sobretudo como autor de um tratado de regência: L'arte di dirigere l'orchestra (Milão, 2a. ed. 1957).
Adriano Lualdi: Música e Política
Adriano Lualdi nasceu em Larino (Campobasso), em 22 de março de 1885. De família veneziana, teve logo cedo os seus interesses despertados para a música, obtendo uma sólida formação. Seus estudos mais avançados foram realizados no Conservatório Santa Cecília, em Roma, sendo orientado em contraponto e fuga por Remigio Renzi e Stanislao Falchi. Estudou composição no Conservatório Benedetto Marcello, em Veneza, com Ermanno Wolf-Ferrari. Já na sua juventude interessou-se por questões político-estéticas, tornando-se um propagador do Italianismo na composição e na organização de repertórios. Dedicou-se a esses ideais sobretudo como regente e realizador de óperas e concertos nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Em artigos para jornais de grande difusão, tais como o Secolo e La Sera, batalhou a favor dos direitos dos músicos e de questões jurídicas relacionadas com a profissão. Renome internacional adquiriu A. Lualdi sobretudo com a sua participação na Exposição de Milão, em 1928, e na sessão italiana durante a Festa Musical Internacional de Genebra, em 1929. Nos anos seguintes, fundou e dirigiu os Festivali Internazionali di Musica, em Veneza (1930, 1932 e 1934). Nessa época, desenvolveu intensa atividade política como parlamentar (1929 -1943). A sua função em organismos internacionais voltados à música intensificou-se com a sua nomeação a Vice-Presidente do Conseil permanent pour la Coopération internationale des compositeurs de musique, órgão presidido por Richard Strauss. Manteve estreitos relacionamentos com vários compositores e intelectuais, entre eles com Gian Francesco Malipiero (1926-1939). De 1936 a 1944, foi diretor do tradicional Conservatório S. Pietro a Majella, em Nápoles. Após a Segunda Grande Guerra, atuou como diretor do Conservatório Luigi Cherubini, em Florença (1947-1957). Ao lado de extensa e diversificada obra musical, Adriano Lualdi deixou vários escritos. Entre êles, salientam-se os seus muitos relatos de viagem: Viaggio sentimentale nella Liburnia (Milão, 1921); Viaggio musicale in Italia (Milão, 1928); Viaggio musicale in Europa (Milão, 1928), Viaggio musicale nell'URSS (In: Nuova Antologia, 1933); Viaggio musicale nel Sud-America (Milão, 1934) e Viaggio musicale nell'URSS (Milão, 1941). Obras de explícita natureza político-cultural foram, entre outras, Arte e Regime (Roma, 1929), Il rinnovamento musicale italiano (Milão, 1932) e Per il primato spirituale di Roma (Roma, 1942).
Viaggio musicale nel Sud-America
Através das suas publicações de cunho político-cultural e de sua posição na vida política italiana, o nome de Lualdi tornou-se largamente conhecido nos círculos italianos da América do Sul. A convite do Instituto Argentino de Cultura Itálica, de Buenos Aires, presidido por R. Armando Marotta, veio à América do Sul para realizar um ciclo de concertos e um de conferências. Partiu de Gênova no dia 21 de abril de 1932, retornando no dia 6 de julho. Permaneceu, assim, 49 dias no Novo Mundo. Visitou Buenos Aires, Cordoba, Rosario di Santa Fé, Montevideo, São Paulo e Rio de Janeiro. Dirigiu 5 concertos sinfônicos (Teatro Colon e Teatro Salone em Buenos Aires, Teatro Municipal de Montevideo, Teatro Municipal e Escola de Música no Rio de Janeiro), 6 concertos de música de câmara e proferiu 15 conferências e discursos. Tratou dos seguintes temas: A música profana durante o Renascimento Italiano; O Melodrama durante o Risorgimento italiano; A música italiana contemporanea; Panorama da música européia contemporânea; Dois novos caminhos para a música; Radio e filme sonoros; A arte e o regime fascista; Relações entre a arte figurativa e a música, do impressionismo aos dias atuais.
Nova música italiana e o "arrabiato egocentrismo" dos compositores latinoamericanos
Os programas de concertos compreenderam exclusivamente obras de música sinfônica e de câmara italiana contemporâneas (com alguns números dedicados à música dos respectivos países visitados). Procurou executar obras de autores desconhecidos ou pouco conhecidos na América do Sul e por em evidência a variedade de direcionamentos estéticos e técnicas dos modernos compositores italianos, o que constituiria "una ragion di forza per l'arte nostra attuale, e di superiorità indiscutibile su quelle degli altri Paesi guardate panoramicamente". (op.cit. 11) A revelação da nova música italiana teria surpreendido e conquistado o público sul-americano e o meio musical das cidades que visitou. A surprêsa causada era devido ao fato, segundo o autor, de que o "arrabiato egocentrismo" dos artistas fazia com que os compositores não conhecessem, não reconhecessem e não exaltassem o trabalho de outros, interessando-se apenas pelo seu próprio trabalho. Também os regentes cairiam nessa parcialidade, contribuindo à construção de falsas imagens dos países que representavam, concedendo nos programas pouco espaço a obras que não fossem de grande efeito ou a compositores que não fossem seu amigos pessoais. A música italiana contemporânea não se resumiria a uns poucos nomes, mas compreenderia uma plêiade de compositores representativos das mais variadas tendências. O escopo de Lualdi, na sua viagem, foi o de fazer o possível para mostrar "a quelle genti lontane" que ignoravam o momento atual espiritual e artístico italiano, e isso por culpa dos próprios italianos. Seria necessário intensificar muito mais o trabalho de propaganda artística e cultural italiana para mostrar aquilo que eram, no presente, e não apenas para mostrar o que os italianos teriam sido no passado. "Esser meglio consciuti dagli americani del Sud, e meglio conoscerli. Non v'è altro modo per abbreviare una distanza che, già grande computata in miglia marine, diventa astronomica addirittura se, al disopra dell'oceano, gli Spiriti non trovino la via di intendersi, e popoli consanguinei non riescano, da cuore a cuore, da mente a mente, a comunicare." (op.cit. 13)
Conhecimento recíproco entre a Itália e a América do Sul e a influência cultural francesa
Pouco depois de sua chegada a Buenos Aires, Adriano Lualdi ocupou-se da questão do conhecimento recíproco dos então "atuais valores espirituais e artísticos" entre a Itália e a América do Sul. Tratou também do problema, danoso para os interesses italianos que representava o predomínio da cultura francesa nas capitais latino-americanas. Procurou logo, a partir de uma Carta Aberta, escrita por Lamberti Sorrentino no Mattino d'Italia, órgão de difusão fascista, propagar um apêlo a uma ação profícua de intercâmbio cultural entre a Itália e a Argentina, esclarecer as razões de uma visão imperfeita e unilateral que existiria a respeito da arte italiana contemporânea entre os escritores argentinos, brasileiros, uruguaios e chilenos. Esforçou-se em mostrar os caminhos pelos quais a situação poderia ser melhorada segundo o que se esperava da Itália de Mussolini e o que esta esperava considerando a posição de saliência que lhe caberia no mundo. Após ter travado conhecimento não apenas com representantes da literatura e das artes das grandes capitais, procurou aproximar-se de pessoas de todas as classes e de todos os partidos, anotando tudo o que percebia. Chegou à convicção de que seria necessário uma mudança completa da situação para que esta pudesse reverter-se a favor da Itália de Mussolini, fazendo sentir, "ai lontani figli e fratelli, ai lontani cugini, la fiamma del suo sentimento e del suo spirito, oggi più viva che mai". (op.cit. 15).
Situação das tendências fascistas na América do Sul
Em muitos lugares, se não em todos, os ânimos já se encontravam direcionados a favor do Duce e da Itália. Lualdi teve a satisfação de conhecer, em todas as cidades, pessoas de diferentes proveniências e convicções políticas concordes na admiração pela grandiosidade da Itália. Ficou comovido em ver descendentes de italianos de idéias políticas diametralmente diversas das suas vivendo em nostalgia e amor pátrio. Sentiam, segundo Lualdi, a dignidade e potência da Itália, pouco sabiam, porém, do novo espírito e da nova ordem que nela reinavam. Avizinhou-se, assim, e falou face a face também com aqueles que eram conhecidos como "ferozes anti-fascistas", como "perigosos comunistas-anárquicos", constatando que não seria difícil descobrir nos seus espíritos pelo menos "un grande rispetto e una profonda ammirazione per l'Uomo che dio ha dato all'Italia: Mussolini" (op.cit. 17). Um trabalho de conversão tornar-se-ia supérfluo perante aquele que já era converso, necessário, porém, junto a rebeldes e duvidosos. Por essa razão, se tivesse tido mais tempo, voltar-se-ia sobretudo para a imprensa adversária e para os dissidentes. Entretanto, achava que um hóspede de poucas semanas, um visitante - "anche e specialmente se abbia una veste politica " -não deveria imiscuir-se em assuntos que pudessem turvar ou dividir as comunidades ou perturbar as suas relações com os elementos indígenas. Acima de tudo estaria o interesse da Pátria distante em aumentar a sua esfera de influência, de crédito e de afetos, e, no caso, do especial interesse "del Regime Fascista e dei suoi ordinamenti, e della meravigliosa opera di civiltà, di richiamo all'ordine, di ricostruzione, di rinnovamento che compie da dodici anni, esempio al mondo". (op.cit. 15) O amor à antiga pátria dos imigrantes poderia, assim, ser utilizado para os objetivos políticos, bastando informações e uma chamada. Na Argentina, já trabalhariam silenciosamente grandes e competentes idealistas do mundo da ciência, da cultura e das artes, entre êles Armando Marotta, presidente do Instituto Argentino de Cultura Italica, autor de importantes iniciativas culturais dos anos vinte, o engenheiro Guido Valcarenghi, um dos principais "ambasciatori fuori ruolo" da Itália e propagador ativo da música contemporânea italiana, o Dr. Giuseppe Giacompol, que desenvolvia uma grande atividade de propaganda artística em São Paulo e auxiliava a Valcarenghi em Buenos Aires, o poeta Vincenzo Spinelli, o compositor Athos Palma, a escritora Victoria O. Campo, o compositor Carlos Lopez Buchardo, presidente da Associação Wagneriana; Folco Testena, diretor do Giornale d'Italia; A. Gregori, estudioso dos problemas ítalo-argentinos, e Lamberti Sorrentino, então atuante em Roma. Ao lado desses nomes, o autor salienta a atividade pró-Itália de vários correspondentes do Instituto Argentino de Cultura Italica na cidade de Rosario, o grupo de intelectuais vinculados com a sociedade Amigos del Arte, em Cordoba, e, em Montevideo, o círculo ao redor do maestro uruguaio Eduardo Fabini e de outras personalidades do mundo uruguaio. Relativamente ao Brasil, Adriano Lualdi salienta a existência de uma ampla constelação de personalidades que iria da "Donna Olivia Guedes Penteado ai grandi industriali come il Crespi e il Matarazzo, al Maestro Cantù, a Mario de Andrade, ai pittori Vittorio Gobbis e Paulo Rossi Ozir, all'architetto Gregori Warschawschick, al Prof. Magnocavallo (...) al Dott. Manera". Não falava do pessoal consular e diplomático, uma vez que a atividade que desenvolviam fazia parte, em certo modo, o seu ofício "e risente, nei suoi poderosi impulsi, delle direttive impartite da Mussolini". (op.cit. 22). Quanto ao Rio de Janeiro, cita, entre os "voluntários" da causa italiana, os maestros Silvio Piergili e Ruberti e o grupo de artistas e intelectuais pertencentes ao "Conservatorio Municipale di Musica" (?).
Tendência à emulação e à superação de brasileiros e argentinos
Adriano Lualdi salienta os cuidados que deveriam ser tomados com os sul-americanos em questões culturais e político-culturais. Argentinos, uruguaios e brasileiros seriam povos jovens, muitíssimo jovens, e, por essa razão, susceptíveis e influenciáveis, vivendo de olhos abertos, em vigília, prontos para observar os caminhos dos outros e copiá-los, procurando ultrapassar os seus modêlos. A susceptibilidade unia-se, assim, à receptividade e a uma disposição à emulação. Até então, não haveria dúvida, o espírito predominante na arte e na literatura dos países sul-americanos seria o francês. Os músicos, porém, conscientes dessa sujeição e sentindo o seu pêso, procuravam dela libertar-se, seriam os mais ativos do mundo cultural, ansiosos de procurar e de encontrar a sua vida, revivendo, espontâneamente, um processo já verificado na Rússia em meados do século XIX. Na Europa, Lualdi teria ignorado totalmente a existência desse movimento artístico sul-americano. As únicas obras que conhecera foram as Escenas Argentinas, de Carlos Lopez Buchardo e algumas composições de Heitor Villa-Lobos. Considerara-as como exemplos isolados; ignorara que se inseriam numa corrente mais ampla, num esforço coletivo e consciente, de objetivos bem definidos e claros. Após o seu retorno, melhorara a situação na Itália no referente às relações com a América do Sul. Sob o impulso do Duce, que teria colocado o assunto na ordem do dia, muito se fizera. Constituira-se, no âmbito da Direzione Generale degli Italiani all'Estero, sob a presidência de Piero Parini, uma comissão de estudiosos, de cientistas e artistas que teriam contato direto com a América do Sul. Entre outros, além de Adriano Lualdi, participaram: Gino Arias, Anton Giulio Bragalia, Arduino Colasanti, Federico Enriques, Gaetano Fichera, Guido Finzi, Amedeo Helitzka, Alessandro Lustig, Nicola Pende, Marcello Piacentini, Luigi Pirandello, Ottorino Respighi, Francesco Sever e Lamberti Sorrentino. Durante as discussões, considerou-se realisticamente a situação atual e estudou-se os procedimentos que deveriam ser tomados para a intensificação das relações culturais entre a Itália e os países em questão. Além de um reconhecimento do trabalho já realizado pelo Instituto Argentino de Cultura Italiana, foram convidadas personalidades argentinas a virem à Itália e, vice-versa, enviaram-se intelectuais italianos à América do Sul.
Apoio fascista à difusão da música sul-americana na Europa
Procurando contribuir a um melhor conhecimento da música contemporânea sul-americana na Europa, e em atenção imediata às decisões políticas tomadas pela comissão acima citada, Adriano Lualdi incluiu, no II° Festival Internazionale di Musica di Veneza, organizado pela Biennale d'Arte, em setembro de 1932, um concerto inteiramente dedicado a compositores da América do Sul. O concerto efetuou-se no Teatro La Fenice, sob o patrocínio da embaixatriz da Argentina junto ao Quirinal, Sra. Santos Sucre de Perez, da embaixatriz uruguaia, Sra. Bernabela C. de Ramon Guerra e do Embaixador do Brasil, Alcebíades Pessanha. O programa incluiu obras dos argentinos Carlos Lopez Buchardo, Pascual De Rogatis, Florio M. Ugarte, Athos Palmas, Raul H. Espoile, do uruguaio Eduardo Fabini e, como representantes do Brasil, de Oscar Lorenzo Fernandez , Mozart Camargo Guarnieri e Heitor Villa-Lobos. Esta teria sido a primeira vez, segundo o autor, que um grupo compacto de compositores sul-americanos teria sido objeto de um programa de um concerto europeu inteiramente dedicado ao subcontinente. Se não pretendera oferecer uma visão absolutamente completa da atividade musical da América do Sul, fizera um convite aos europeus interessados pela música para que considerassem aquela arte tão próxima à Natureza e à Terra. (op.cit. 38)
Mare nostrum. Tradição veneziana do mar e os pressupostos político-culturais de Lualdi
Adriano Lualdi abre o primeiro capítulo de sua obra mencionando os vínculos que o predestinavam ao mar, às terras longínquas e aos outros povos, em especial ao Brasil, . Salienta a posição marítima de sua região natal e os seus antepassados que foram marinheiros e navegadores. O seu avô materno, Sante Vianello-Moro fora, como também os seus cinco irmãos, homem do mar, tendo sido um dos primeiros a possuir vapores na Itália. Entre outros familiares que haviam sido navegadores, cita o marido de uma sua tia, que chegara até o rio Amazonas, de onde lhe trouxera bananas e papagaios. O seu sogro visitara a Índia e o Japão e cada partida sua do porto de Trieste fora acompanhada pelas lágrimas da esposa de A. Lualdi, deixando melancolia na família. De toda a sua família, somente o seu pai não fora marinheiro, mas sim político, chegando a ser Subprefeito e Prefeito sob os fasci da Sicília, quando essa palavra se escrevia com f minúsculo e o seu emblema ainda não fora o littorio. O entusiasmo pela vida marítima juntava-se à admiração de Lualdi pela nave, e o texto correspondente do seu livro pode ser lido quase que uma insinuação metafórica de suas concepções da sociedade como uma máquina, na sua ordenação e funcionamento. "É bello, invece, guardare i marinai nel loro infaticabile appassionato lavoro intorno alla nave potente e magnifica, che, la mercè loro, pare ad ogni ora uscita appena, nuovissima e lucentissima, dal cantiere. É bello scendere nella sala delle macchine e delle caldaie, tra il rumore assordante dei motori e il calor bianco dei fuochi, a sentir l'alito rovente, ad ascoltare il battito ciclopico delle macchine che, così nascoste nelle stive sono pur l'anima, la forza, la personalità inconfondibile, la necessità prima ed ultima del grande vascello che ci conduce attraverso l'Oceano (...)" (op.cit. 43)
Esnobismo da intelectualidade latino-americana e anti-italianismo
Como já salientado, o início da ação de Lualdi em Buenos Aires foi marcado pela Carta Aberta a êle dirigida por Lamberti Sorrentino. Nela, lia-se: "Maestro, a Argentina é terra amiga, para nós italianos. Uns sessenta por cento do sangue que corre nas veias do povo argentino é o vermelho sangue itálico, e, em Buenos Aires, caminhando pelas ruas, o Sr. poderá estar certo que em cada cinco pessoas que encontra uma é italiana, e duas, pelo menos, filhas de italianos. Os quais teem a mesma maneira nossa de reagir frente aos acontecimentos, são generosos e cordiais, inteligentíssimos e improvisadores. (...)" (op.cit. 48). Segundo a Carta, os artistas e os intelectuais, na Argentina, seriam "snobs". O musicista, o poeta, o literato, o jornalista, todos cultuavam o esnobismo. O "esnobar" seria uma exigência do meio. Esse grupo, que ocupava os postos de comando, consideraria a "tirania italiana" como nociva ao desenvolvimento da arte em geral e musical em especial. Na Argentina haveria tão pouca estima e respeito pelas tradições que não se dava atenção nem menos àquela própria, que seria musicalmente a italiana. A grande maioria do público seria pela música italiana, os intelectuais, porém, não. Como, na Argentina, os italianos imigrados seriam sobretudo operários, o artista italiano não teria prestígio junto à intelectualidade "snob". Assim, artistas italianos teriam menor probabilidade de sucesso em países com grandes colonias de imigrados da Itália. A antiitalianidade dos membros da geração artística de então seria devida aos professores italianos que ali introduziram as diversas artes. Os institutos de ensino teriam sido fundados e seria dirigidos por italianos, mas o horizonte do ensino seria muito limitado a uma cultura demasiadamente escolátisca e acadêmica, própria do século XIX. Os alunos assim formados, uma vez em Paris, em Berlim, em Madrid, constatavam que o mundo não se restringia àquilo que haviam conhecido através de seus mestres nos conservatórios. A reação, que seria a do século XX contra o XIX, e que na Itália se chamava de futurismo, tendo caráter unicamente anti-acadêmico e anti-escolástico, adquiria, na América do Sul, um caráter antiitaliano. O problema da antiitalianidade espiritual argentina deveria, assim, ser examinado na Itália, onde não haveria ainda uma mentalidade por assim dizer diplomática dos problemas da expansão cultural itálica. A Carta Aberta culminava com o apelo: "Dobbiamo, Maestro, cominciare in Sud-America un lavoro nuovo: conquistare le élites." (op. cit. 52). Tratava-se de contrapor às elites antiitalianas as massas italianizantes, mantendo-se uma posição intermediária e penetrando na primeira esfera, ainda virgens do contato direto com os italianos. Para isso, seria preciso intensificar o intercâmbio cultural e propagar os valores espirituais e artísticos sul-americanos na Europa, por exemplo no Festival Internacional de Música de Veneza. Até então ter-se-ia visto os países latino-americanos em geral com critério comparativo europeu e, não encontrando aqui os mesmos valores, ter-se-ia julgado depreciativamente a cultura da América do Sul, ofendendo o orgulho sensível de povos tão jovens.
O tédio sul-americano e valor da "energia negra" para o Fascismo
A essa carta de Sorrentino, Lualdi respondeu dizendo que primeiramente queria estudar, ouvir e observar a realidade antes de propor meios para a intensificação do relacionamento. Assim, nos 42 dias que passou no subcontinente, dedicou-se a estudar o ambiente, a ler crônicas e a ouvir muita música, uma vez que considerava esta como o meio mais seguro de revelação da alma coletiva. A questão da predominância do "sangue italiano" na população argentina seria um resultado relativamente recente, produto da imigração italiana. Até meados do século XIX, as proporções seriam diversas, uma vez que a população seria em grande parte de origem espanhola. Em texto um tanto depreciativo, Lualdi explica a exigência da vinda de italianos pela inapropriedade da população de origem espanhola na nova fase da economia baseada na agricultura. O gaúcho não conheceria senão três bens: o cavalo, a mulher e a solidão. Esse estranho tipo de homem parecia ter nascido para contemplar o pampa imenso, não para cultivá-lo. Escritores teriam procurado estudar e cantar o gaúcho; a sua alma, porém, permaneceria impenetrável para o europeu. O que ouvira de composições de inspiração gauchesca pareceu-lhe expressões de preguiça, melancolia ou de traduções rústicas e primitivas dos antigos e refinadíssimos taedium vitae e spleen, revelando, é verdade, todo um mundo de sentimentos e sensações mais variadas e fortes que seriam dignas de serem cantadas.
Apesar de haver uma intensidade extraordinária de vida, haveria uma espécie de moleza que caracterizaria e restringiria a atmosfera musical característica desses países. Após tecer comentários a respeito do tango e de várias formas do folclore, na sua maioria reveladoras daquela moleza que constatava, Lualdi, quase que insinuando um remédio para esse spleen, indaga da presença do negro no patrimônio cultural do Prata. Dever-se-ia, porém, não considerar a música dos descendentes dos africanos, já integrados, mas sim dirigir a atenção ao negro no seu lugar de origem: na floresta virgem da África: "Dove vivono i nonni e i bisnonni, certamente meno bravi di loro, ma più negri; e più fedeli alle vecchie canzoni color nerofumo, del buon tempo antico; senza influssi di civiltà bianche nelle loro musiche selvatiche, senza scarpe ai piedi, e senza mutandine. Così: vergini, liberi e puri; che Dio li benedica e li conservi tali." (op. cit. 138)
Uruguai e Brasil: Lamberto Baldi
Lualdi inicia o seu capítulo dedicado a Montevideu com a afirmação: "Montevideo sembra impastata di musica" (op.cit. 155). Principal fator da contínua presença da música na vida da capital uruguaia era a estação governamental de rádio, o Servicio oficial de difusion radio electrica (S.O.D.R.E.), cuja alma era o Dr. Francisco Ghigliani, grande admirador da Itália, terra de origem de seus familiares. Após louvar a Discoteca adjunta à instituição, dirigida por Francisco Curt Lange, dedica particular atenção ao trabalho do Mtro. Lamberto Baldi, regente da orquestra do S.O.D.R.E. Baldi, nascido em Allerone, na província de Orvieto, e diplomado em Florença, com experiência da Guerra, estabelecera-se em São Paulo, em 1928. Como regente de orquestra e auxiliado por Giuseppe Giacompol e por Guido Valcarenghi, dedicara-se a uma sistemática divulgação da moderna música sinfônica italiana. Nos primeiros meses de 1934, abandonara São Paulo, convidado que fora para assumir a direção da orquestra do S.O.D.R.E..Sob a sua liderança, "la massa si è fatta disciplinata, fervida, attenta" (op.cit. 161). Valcarenghi, que dirigia a filial da Ricordi, de Buenos Aires, com grande espírito de "italianità", ajudava-o com material orquestral. A sua atividade em Montevideu mostrava-se tão cheia de sucesso que surgira a iniciativa de fundação de um Conservatório Nacional de Aperfeiçoamento sob a sua direção. Lualdi salienta que a Radiofonia poderia ser um valioso meio de propaganda para o Fascismo, um conforto para os co-nacionais que viviam longo da Itália, ávidos que eram de receber notícias da mãe-Pátria. Segundo o que ouvira de um político uruguaio, a Itália deveria engajar-se no país em três grandes batalhas se quisesse assumir o lugar que mereceria: a da música, a do filme sonoro e a do livro.
Análise da situação e propostas fascistas de propaganda cultural
Longos trechos do seu livro dedica Lualdi ao relato da troca-de-idéias que teve com representantes de círculos italianos argentinos a respeito das possibilidades de melhoria da infraestrutura institucional da ação político-cultural. Partindo do ponto-de-vista de que a "única cultura verdadeiramente assimilável na Argentina - sem esnobismos - seria a italiana, por razão da língua que todos compreenderiam mesmo sem tê-la estudado, e considerando que o Instituto Argentino de cultura Italiana possuia meios limitados, os participantes constataram a necessidade de um órgão que, apoiado solidamente pela Embaixada, se ocupasse metodicamente da propaganda cultural. Tratar-se-ia de praticar uma política séria, lenta, paciente, metódica, inteligente, sobretudo de penetração, de convicção e de ilustração (op.cit. 190). Seria uma profunda e absoluta ignorância do que era o Fascismo e seus princípios, também por parte dos italianos da imigração e dos argentinos que tinha possibilitado a formação de uma atmosfera intensa de prevenções que prejudicaria a penetração cultural e artística. Por isso, seria necessário intensificar a obra iniciada pela Embaixada, dos artigos no Mattino d'Italia - primeiro órgão a publicar textos a respeito - ao Giornale d'Italia. O objetivo deveria ser o de divulgar por todos os meios e objetivamente os princípios do Fascismo e do Estado Corporativo criados por Mussolini. Tudo, porém, deveria ser feito com grande seriedade. A tática excessiva e intolerante não poderia dar frutos em país onde havia um "culto fanatico alla democrazia" (op.cit. 191). Segundo Lualdi, também havia na América do Sul um "culto fanático" à liberdade, àquela liberdade que havia levado a Itália ao caos. Ele teria presenciado episódios que lembravam aqueles que conhecera no seu país. Por isso, seria compreensível que houvesse até mesmo políticos de outras convicções que desejassem para os seus países líderes como Mussolini. Os democratas latino-americanos seriam dúbios, um socialismo italiano entre os imigrados não existiria, e, no fundo, estes não seriam todos abertadamente fascistas apenas por falta de informação. (op.cit. 191-192) Os resultados das reflexões foram condensados por A. Lualdi em 10 pontos: 1. fundação de um Ateneu de Cultura Fascista, apoiado pela Embaixada, com o objetivo de difundir o que seria e o que queria ser o Estado Corporativo Fascista e o que o Fascismo já teria construído e organizado. Poderia realizar conferências semanais, de cunho acessível, sem "retórica", bem documentadas, com projeções e publicações objetivas. Fundar-se-ia uma bibliotecada italiana pública. Ela deveria contar com o envio de exemplares gratuitos por parte dos editores italianos. Editaria um boletim em castelhano, de grande tiragem e que deveria fomentar o interesse dos argentinos pelo comércio editorial da Itália; 2. criação de um corpo consultivo junto ao Ateneu Fascista ou à Embaixada, uma espécie de núcleo ou observatório de pessoas cultas que se colocassem à disposição dos estudiosos italianos que se ocupavam da Argentina; 3. fundação de uma Associação Italiana de Concertos que deveria ampliar a influência italiana na elite intelectual do país, substituindo associações anteriores. Ao lado dessa atividade, a visita de companhias de teatro falado deveria ser fomentada, importantíssima para a influência espiritual. Os cômicos italianos não tinham ainda se conscientizado da importância de sua missão. Alvo de especial atenção deveria ser também a exportação de filmes italianos educativos e científicos e a organização de transmissões radiofônicas especiais de emissoras italianas; 4. criação de um corpo de correspondentes fixo em Buenos Aires, não somente para os jornais italianos, mas sim também para as revistas, as academias, as grandes empresas comerciais e industriais. 5. transformação do Dante Alighieri em escola moderna, prática, ao tipo do instituto norte-americano, intensificando o ensino rápido da língua; 6. preparação e instituição de uma Exposição Permanente de produtos italianos, com uma seção de livros; 7. doação de coleções de livros científicos e de estudos sobre a nova ordem política a faculdades e universidades, onde predominavam livros franceses, inglêses e alemães; 8. ampliação da esfera de atividades da Federazione Generale delle Società Italiene, organizando os colonos argentino-italianos e criando um clima e uma zona de influência espiritual, orientando à ciência italiana os filhos dos colonos e chamando ao pensamento italiano oito milhões de argentinos que, ao contrário, terminariam por beber de fontes francesas, alemãs, norte-americanas ou russas; 9. continuação de programas de visitas de professores e artistas; criação de bolsas de estudos, um meio de propaganda já muito empregado pelos Estados Unidos e pela França; 10. criação de um observatório comercial e econômicos para os intercâmbio; unificação e coordenação de todas as forças italianas do Exterior sob a égide do Ateneu Fascista, todas as várias iniciativas, concentrando todas as energias, meios financeiros, trabalho e de vontade em uma única corrente e em um "solo fascio di opere" (op. cit. 199-200).
Impressões e análises do Brasil: Tônica-Dominante Banana e Café
O livro de Adriano Lualdi termina e culmina com capítulos dedicados ao Brasil (op.cit., pág. 205 ss.). O teor de seu relato e de suas observações é determinado pelas primeiras impressões que teve do país ao entrar no porto de Santos. Extasiando-se na contemplação da natureza, e ouvindo um passageiro de terceira classe tocar acordeão, em infindas repetições harmônicas de Tônica e Dominante, tira dessa constatação musical, em extensão metafórica, a idéia-guia para as suas considerações: apesar de todas as mudanças de movimento, apesar de todos os gestos, dos diferentes rítmos e sentimentos, os acordes básicos permaneceriam sempre imutáveis. E esses dois acordes bastariam para o prazer e o entusiasmo da modesta sociedade, tão amiga da música. A Tônica, nas suas impressões no Brasil, seria a banana, a realidade bem visível e controlável pela observação nos numerosos barcos de vendedores de pele escura que se aproximavam da nave. A Dominante, porém, seria o café, depositado em sacas nos silos do porto. O autor inclui no seu relato uma página de H. de Keyserling a respeito da "tristeza sul-americana". A essa tristeza faltaria tragicidade. Seria um sofrimento plano, de acordo com a passividade da vida primordial. Não se colocava a questão do triunfo sobre o sofrimento. O pressentimento de uma realidade não-terrestre somente poderia manifestar-se, nessas condições, através de um sofrimento por aquilo que não se conhece. O remédio típico para esse estado de ânimo seria a arte, sobretudo a dança, a poesia e a música. Ela tiraria o homem de seu doloroso isolamento, objetivando-lhe a vida interior, fazendo vibrar o que seria estreitamente pessoal de acordo com os grandes rítmos telúricos e cósmicos. Essa arte primitiva não seria religião ou expressão da religião, mas sim uma substituição da religião. O artista seria o homem telúrico sublimado. Seria anti-asceta por excelência, abandonando-se inteiramente às emoções de suas sensações. Essa tristeza fundamental sul-americana, sobretudo da poesia e da música, que se unia à profundidade telúrica, ao senso da terra em substituição à profundidade atávica do espírito seria de fato caractéristica para a Argentina, o Brasil e o Uruguai. A música e a poesia seriam os acordes fundamentais entorno dos quais se desenvolveria a vida espiritual brasileira. A Tônica - banana - seria a poesia; a Dominante - café - seria a música. Poeta seria todo o brasileiro e não haveria brasileiro que não rendesse culto à musa, tendo na gaveta de sua escrivaninha um álbum de poesia. E da mais simples à mais alta burguesia, muitos cultivavam a música, havendo em São Paulo, para 900.000 habitantes, ca. de 100.000 pianos. A tônica poética, - banana -, teria predominante influência francesa. Nesse sentido, o Brasil seria visto pela França como uma espécie de colonia, apesar de o autor não ter encontrado na poesia brasileira nada que se aproximasse do exquisito francesismo de um dos maiores escritores colombianos, Josè Asunción Silva. Na música, a dominante da vida espiritual brasileira - café-, reinaria uma outra situação do que na poesia. Aqui também não seriam raros os casos de influências e derivações do estrangeiro; haveria porém o caráter fundamental, o espírito nacional, ainda que só representado por pouquíssimos artistas. Estes procuravam-no tão intensamente a ponto de mudar cores, fazendo de brancos negros. A sobressalência do pigmento marrom, tão evidente, seria por alguns brasileiros negado como espírito nacional. Este caráter particular seria difuso e se assemelharia muito à terra. Entre os seus intérpretes, se salientava Heitor Villa-Lobos. Se a dominante poesia ainda não começara a escutar as vozes espontâneas e potentes da terra, e ainda não se abandonara com plena confiança ao êxtase do canto como seria sugerido pela Natureza, a música teria as suas raízes na profundidade telúricae il suo tronco fronzuto fra gli uomini di queste plaghe, pieni di malinconia antica, e d'amore; e i suoi fastigi nel chiaro sole, fra i venti profumati delle foreste e delle montagne. Dà, a chi guardi e ascolti con l'anima, il 'tono' del Brasile". (op.cit. 215)
Entusiasmo fascista pela côr negra na música brasileira e renúncia a Carlos Gomes
As considerações específicas dedicadas à musica brasiliana de Adriano Lualdi iniciam-se com reflexões perante o monumento de Carlos Gomes ao lado do Teatro Municipal de São Paulo, "il più celebre dei compositori di musica brasiliana, il meno brasiliano fra i compositori sud-americani." (op.cit. 219). Entre aas estátuas de personagens de suas óperas, o autor sente a falta do protagonista ou da protagonista de "Se sa minga", o primeiro grande sucesso do compositor na Itália, em 1867, um tema nem indígena e nem brasileiro, mas sim "meneghino". Todas as obras de Carlos Gomes teriam caído em completo esquecimento, mesmo na Itália, apenas restando a esperança de exumações futuras. O compositor estaria presente apenas em efígie; os seus restos mortais estariam no Pará e o seu espírito longíssimo do país, ao qual já não pertenceria. O seu lugar seria no céu da Itália, entre os epígonos de Verdi. (op.cit. 220-222) "Insomma, fino a che era vivo e operante, nessuno, in Brasile, si curava di lui. Quando morì, gli fecero il monumento. É storia del nuovo Mondo, e pare del vecchio." (op. cit. 223) O interesse de Lualdi não se voltava, assim, a esse universo que considerava - apesar de todo os encômios - ultrapassado no Brasil e na Itália, mas sim às tendências contemporâneas de orientação nacionalista. As suas observações, neste sentido, adquirem especial interesse para os estudos político-culturais, por manifestarem o ponto-de-vista fascista na consideração do desenvolvimento musical brasileiro. Como sempre, Lualdi mostra-se placativamente claro na manifestação de sua opinião e de seu posicionamento. Duas correntes, não opostas mas notavelmente divergentes dividiam segundo êle os ânimos no Brasil com relação ao espírito, às fontes e aos modos de expressão da música nacional. A corrente extremista não teria muitos adeptos, mas seria certamente a mais significativa e a que mais se impunha. O seu chefe seria Heitor Villa-Lobos e tenderia à côr negra. Tratar-se-ia de um extremismo ansioso de fixar um caráter pessoal e fortemente imbuído de exotismo à música brasileira. A outra corrente, que poderia ser denominada de temperada, se contentava em emprestar da música negra alguns rítmos, atenuando os seus acentos. Ao invés de exasperar as características da música negra, os compositores mascaravam-nas com cosméticas européias, roubando-lhes "a cor selvática e o odor ácido". Seria uma música mestiça, resultado de um compromisso, pouco louvável e pouco corajoso, como seriam todos os compromissos, sem a força de formação de uma clara idéia. Uma espécie de flirt estéril que tolheria a pureza dos modos negros originais e o refinamento da arte européia: destruiria uma e outra, sem nada criar. Seria supérfluo dizer que toda a simpatia e interesse do europeu que visitava esses países sul-americanos seriam instintivamente e irresistivelmente dirigidos para a corrente extremista, que ofereceria música característica nos rítmos, na harmonia, na cor instrumental e nos modos vocais. Essa observação valeria sobretudo para o próprio Lualdi, que, como representante manifesto do Fascismo, formulava clara repúdia a todo o "compromisso" e mestiçagem, a toda fraqueza, languidez e melancolia, entusiasmando-se pela fibra, pela fortaleza máscula e pela raça, mesmo que para isso fosse necessário fazer de brancos negros no sentido de reconstrução de uma "pureza" originária na África. Significativamente, como um dos poucos exemplos musicais de seu livro, Lualdi inclui um canto de Xangô de "origine dichiaratamente africana", recolhido por Mario de Andrade, "uno dei maggiori critici musicali e studisi e folcloristi brasiliani" e a sua elaboração por Heitor Villa-Lobos em uma de suas Chansons typiques brésiliennes. A música brasileira, segundo Lualdi, referindo-se a critérios de Villa-Lobos "e dei suoi seguaci", derivaria indubitavelmente da negra. Seria também vizinha, pelas sensações que suscitaria e pelo que possuiria de estranho de outro mundo poético: da Natureza na sua "substância" e na sua "forma", "a quel che di torbidamente doloroso si osserva in più e più volti, e a quel che di sanamente, nativamente sensuale si respira nell'aria - e si respecchia nella stupenda gioventù femminile del Paese". Ela seria vizinha, em suma, ao mundo das coisas concretas.(op. cit. 227)
Fascismo da "Antropologia Sonora"
Terminando o seu livro, Lualdi faz um confronto entre a fraqueza de uma música de origem portuguesa ou indígena-portuguesa, compreensível para os ouvidos e para a mente européia, e a música dos extremistas, que entoava rudemente palavras incompreensíveis: Xangô, Ole, goudilê olalà gou, gouailà. Palavras essas que seriam incompreensíveis à mente, com música nova e diversa, que abriam caminhos para a Antropologia Sonora, partindo do audível, do concreto perceptível para o Homem, concepção fascista por excelência.
"Ma è proprio qui, al di là e al di sopra della ragione, dell'intelletto, degli idiomi comunemente parlati e delle comuni esperienze , che, scendendo e inoltrandoci nei dominii del sentimento, dove ogni attimo di vita è regolato dal battito del cuore; dove solo risiedono, per chi sappia riconoscerle, le grandi leggi e le grandi verità, è proprio qui che si intuiscono affinità profonde tra Musica e Terra, e che si scopre nel volto dell'arte, una volta ancora, la chiara limpida luce del Vero." (op.cit. 228) Os debates tiveram e terão prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).