Doc. N° 2244
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
109 - 2007/5
Alemanha-Brasil Circuito euro-brasileiro da Baviera
"Fascinação e violência". Aportes interpretativos da pesquisa politológico-cultural do Nazismo e a questão da ilusão na análise cultural
Nuernberg 2007 - Atividades A.B.E. Trabalhos preparatórios do Seminário "Pesquisa da Cultura e Política"
A.A.Bispo
Nuernberg . Centro de Documentação "Área dos Dias do Partido". Atividades da A.B.E. 2007 (Fotos A. A. Bispo) Quando se trata das relações entre Cultura e Política e/ou Pesquisa da Cultura e Pesquisa da Cultura Política, o pensamento se dirige, quase que de imediato, aos anos trinta e quarenta do século XX. Assim, na área das ciências culturais, eventos relacionados com a política incluem quase sempre considerações relativas ao Nacionalsocialismo e às suas extensões na América Latina, inclusive no Brasil. Também em empreendimentos da A.B.E. tem-se dado particular atenção crítica a essa época da história alemã e européia e à influência cultural exercida pela ideologia do regime em meios de imigrantes e na história da cultura e do pensamento relacionada com o Brasil. Esse foi o caso, por exemplo, de discussões da década de 80 relacionadas com projetos culturais e científicos desenvolvidos por instituições alemãs vinculadas com o Nacionalsocialismo no Brasil e a função da cinematografia alemã, em particular etnográfica, debatida no Congresso de Estudos Euro-Brasileiros, em 2002.
Essa preocupação com os anos do Nazismo alemão e suas influências no Brasil não pode refletir apenas um interesse causado por uma fascinação por assim dizer mórbida. Também não pode resumir-se ao intuito de revelação quase que sensacionalista de nomes e vínculos institucionais, embora seja fundamental e necessário o trabalho histórico-documental e o da revisão crítica da história de instituições, que em parte ainda hoje existem, sobretudo na área de estudos teuto-luso-brasileiros de orientação filológica. O tratamento dessa época e da ideologia respectiva deve ir mais longe e mais ao fundo do que simples levantamento de fatos, de constatação de elos transcontinentais e de manifestações de indignação e/ou de sempre renovada surprêsa pelo fato de ter sido possível tal desenvolvimento na história do século XX. A atenção tem de dirigir-se muito mais à detectação e análise de estruturas básicas de pensamento, de conceitos, de imagens de desenvolvimentos históricos, de concepções do mundo e do homem, e dos mecanismos que possibilitaram a sua difusão e solidificação.
O estudo dessa fundamentação teórica deve ir tão a fundo a tornar possível o reconhecimento de similaridades e diferenças entre o edifício teórico-conceitual do Nacionalsocialismo e aqueles de outras ideologias de cunho totalitário do século XX. Esse estudo ao mesmo tempo diferenciador e reconhecedor de estruturas similares de pensamento não pode ser realizado sem a consideração de processos ocorridos nas diversas nações e no âmbito dos relacionamentos internacionais. Cada vez mais se constata, por exemplo, não apenas a influência nacional-socialista e fascista italiana no pensamento e na cultura de Portugal e do Brasil, mas sim a existência de interações mais profundas, sobretudo nos primeiros anos da década de trinta.
Não se trata, assim, somente de constatação e estudos de influências, mas sim de paradigmas, de direcionamentos teóricos e de sua fundamentação científica ou pseudo-científica. Com admiração e susto se constata, então, que muitas das idéias e posições teóricas da época, menos evidentes numa primeira aproximação, ou continuam vigentes ou latentes, sempre prontas a despontarem sob novas roupagens na reflexão teórico-cultural. Isso parece dizer respeito, por exemplo, sobretudo ao debate de orientação antropológica ou àquele que procura uma aproximação entre as ciências da cultura e as ciências naturais. O exame aprofundado e diferenciador dessas bases do pensamento torna-se, assim, um imperativo para a atualidade, uma necessidade para o aguçamento da reflexividade. Esta é uma tarefa não apenas para a Pesquisa da Cultura no âmbito da Politologia mas sim também - e talvez prioritariamente - dos Estudos Culturológicos.
No sentido de preparar uma nova fase, assim dirigida, das reflexões, a A.B.E. realizou uma visita ao Centro de Documentação "Área do Dia do Partido", em Nuernberg . Apesar de que alguns espaços desse complexo de edificações ainda sejam utilizados questionavelmente para fins culturais - por exemplo como sede da renomada orquestra sinfônica regional (!) -, o Centro de Documentação dirige a atenção dos visitantes de forma museologicamente altamente refletida à tremenda dimensão histórica e histórico-cultural do local.
Dias do Partido e encenação político-cultural
A cidade de Nürenberg foi, a partir de 1933, a cidade dos "Dias do Partido do Império" alemão (Reichsparteitage). Há anos os nazistas reuniam-se no bosque urbano de Luitpoldhain e ali realizaram, já em 1927 e 1929, os "Dias do Partido". A atuação de Julius Streicher, o "líder dos Franconios", editor da folha antisemita "Der Stürmer", foi um dos fatores que contribuíram para que a cidade adquirisse a imagem de um centro nacional-socialista. A realização dos Dias do Partido podia ainda simbolicamente vincular-se à antiga tradição medieval das "Jornadas do Império". Os Dias do Partido foram realizados até 1938, em setembro, atraindo até um milhão de pessoas de todas as regiões da Alemanha. Esses eventos constavam de paradas das diferentes organizações do Estado Nazista, tais como as Forças Armadas (Wehrmacht), SA, SS, a Juventude Hitlerista, realizadas na área monumental e no centro da cidade velha.O centro das atenções eram os discursos de Hitler. Já em 1935, ali se proclamaram as "Leis de Nürnenberg", antisemitas, passo significativo na história da perseguição dos judeus.
Fascinação e Violência
Os Nazistas pretendiam construir uma monumental Sala de Congressos para 50.000 pessoas, um projeto que permaneceu incompleto. A intenção era de, na área de 11.000 metros quadrados, edificar um grandiloqüente conjunto para a encenação do Nacionalsocialismo. Na asa norte dessa sala, localiza-se hoje o Centro de Documentação.
Esse centro abriga uma exposição permanente de título "Fascinação e Violência" e procura tratar das causas, contextos e conseqüências do regime de violência. Nas diversas seções, trata-se da história desses eventos, das construções da área e das "Leis de Nürneberg", de 1935 . Também documenta a realização do "Processo de Nürnberg" (1945/46) contra os principais responsáveis do regime, e se tematiza a dificuldade de hoje na consideração da estética arquitetônica e das obras artísticas da época.
Relações entre Cultura e Poder
Estudos relativos ao Nacionalsocialismo alemão nos seus vínculos com a cultura e a arte salientam a função poderosa que expressões culturais exerceram no desenvolvimento do sistema e na sua estrategia de obtenção do poder. Um desses estudos, já não recente, mas bastante divulgado e ainda altamente sugestivo para uma introdução às discussões, é o livro "Cultura e Poder: A transformação dos desejos", de Wolfgang Kraus (Wolgang Kraus. Kultur und Macht. Die Verwandlung der Wünsche. Europa Verlags-AG, Wien 1974, DTV-Ausgabe, München1978).
Uma das observações fundamentais de W. Kraus diz respeito à função exercida pela cultura na influenciação do inconsciente dos indivíduos e da população. Aqueles que vivenciaram essa época tornar-se-iam apenas a posteriori conscientes da política cultural sistematicamente implantada; na recordação, tudo parece ter-se desenvolvido de forma espontânea. O estudioso perceberia, então, cada vez mais, que a cultura foi instrumentalizada de forma extraordinariamente eficiente. Essa política consistia na repressão de determinadas expressões culturais e de pensamento, e no fomento de manifestações e correntes desejadas pelo regime.(op. cit. 37)
Perigo da mistura de esferas: ilusão, jogo e realidade
A Wolfgang Kraus cabe o mérito de ter salientado o perigo que representa a mistura de esferas da lúdica, da arte, de expressões simbólicas com a realidade no exemplo do Nacionalsocialismo: "40 milhões de mortos, cidades bombardeadas, uma economia arruinada, pobreza e caos político podem ser o resultado de quando, em lugar de um claro sentido pela realidade, age a ilusão, a "ilusio", a entrada no jogo." (op.cit. 53)
O autor salienta o papel da encenação, da teatralização, da interferência entre as esferas da ilusão e da realidade sobretudo nos Dias do Partido em Nürnberg. Esses eram preparados e realizados segundo cuidadosa dramaturgia e cuidados visuais, culminando com a "catedral de luz". A arquitetura teatral, de inspiração cesaréia, intensificava-se na sua potencialidade e ação pelos efeitos proporcionados pela técnica e por expressões estéticas adequadas ao conteúdo a ser transportado. Até que ponto essa própria estética teria agido sobre o conteúdo? Na sua argumentação, o autor dirige a sua atenção sobretudo ao aspecto psíquico da influência estética. A situação psíquica, criada cada vez mais intensamento por Hitler, seria segundo êle a de uma excitante situação de excepcionalidade, de elevação acima do quotidiano. A tarefa principal parecia residir na manutenção e na intensificação de um sentimento do extraordinário, do que nunca havia existido, do único. O trabalho pessoal de administração de Hitler, apesar da supraorganização gigantesca e de uma atenção quase que doentia por atas e documentos, reduzia-se de forma quase que inacreditável a um mínimo. A energia era sobretudo canalizada para ações visuais e o seu planejamento, tais como viagens, aparecimentos públicos e discursos.
Como W. Kraus salienta, pensando-se hoje no grande esforço de encenação então despendido para que toda a população fosse mantida nessa sensação exaltada do extraordinário - e também para que o Exterior fosse influenciado - , constata-se a efetividade muito real de fatores da história política ainda insuficientemente considerados, ou seja, os culturais. O Nacionalsocialismo teria tido, segundo o autor, - sobretudo no início -, traços de um gigantesco Festival. Essa característica teria sido particularmente eficaz após décadas de necessidades e desorientação. Bandeiras, luz e trevas, símbolos solares, fogo, fanfarras e a transfiguração positiva agiam, de forma consciente e deliberada, como uma apoteose dramática, talvez como aquela do Fidélio. "Não se tratava de forma alguma de Realidade (...), decisivos eram a emoção, a conversão de estados de depressão, do despertar de entusiasmo em esperanças quase que apagadas. A preferência de Hitler por Wagner e Bayreuth são conhecidas (...). Pode-se também pensar nos Festivais de Salzburg, orientados à elevação de dias festivos, às solenidades realizadas por Max Reinhardt em castelos (...)." (op.cit.)
Diferenciações das relações entre ilusão e realidade
Por mais pertinentes que tenham sido as já antigas observações de W. Kraus na análise do papel da cultura no Nacionalsocialismo alemão, o problema por êle levantado do perigo representado pela mistura de Ilusão e Realidade deve ser considerado mais cuidadosamente nos estudos teóricos. Esses vínculos, manifestados nas teatralizações e no uso das artes para fins políticos, não foi característica só do Nacionalsocialismo nem de outros regimes totalitários e autoritários, de direita ou de esquerda. Tem-se aqui, desde a mais remota Antigüidade, problemas múltiplos relacionados com realidades ilusórias, ilusões reais, realidade como ilusão, realidade de ilusões e outros conceitos apenas aparentemente similares. A troca de esferas, ou pelo menos a interferência entre a ilusão e a realidade, o que pressupõe a concepção da existência de uma realidade que não seja ilusória, pode ser constatada em expressões culturais e político-culturais de diferentes épocas e contextos. Nem toda a dimensão "não-real" no sentido de sua existência material é irreal, e a certeza da realidade do imaterial e não perceptível pelos sentidos pode ser vista como elemento fundamental de edifícios conceituais religiosos.
Precisar-se-ia, assim, distinguir entre concepções de realidade imaterial e ilusão nos estudos culturais relacionados com essa problemática. Esse é o caso particularmente relevante do Barroco, tão significativo para a história cultural do Brasil onde, ao lado da convicção fundamental da existência de uma realidade espiritual e até mesmo da concepção sacramental da transsubstanciação do Catolicismo, surge claramente o elemento ilusionista na encenação arquitetônica e pictórica das igrejas. Para esses estudos, nos seus contextos internacionais, a Baviera apresenta-se como região privilegiada pela importância de seu patrimônio barroco. Por essa razão, as reflexões encetadas pela A.B.E. a partir da problemática do relacionamento entre ilusão e realidade no contexto do Nacionalsocialismo, tal como formulada por W. Kraus, foram aprofundadas em contextos histórico-culturais diversos em várias localidades dessa região alemã.
As discussões terão prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).