Doc. N° 2225
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
108 - 2007/4
Contribuições e depoimentos*
Reflexões sobre a atividade do organista/compositor/improvisador Desafios contemporâneos
Calimerio Soares[1]
Resumo
No limiar do Terceiro Milênio, deparamo-nos com uma nova era que se nos apresenta um tanto quanto desafiadora em todos os segmentos do conhecimento humano. No campo específico da música, as composições para órgão tiveram seus momentos de glória nas mãos de organistas-compositores europeus de meados do Século XIX aos nossos dias. Foi o grande momento em que também surgiu a figura do organista-improvisador, desenvolvendo suas novas habilidades dentro dessa concepção artística performática.
Introdução:
No limiar do Terceiro Milênio e do Século XXI, deparamo-nos com uma nova era que se nos apresenta um tanto quanto desafiadora em todos os segmentos do conhecimento humano e, principalmente, no campo específico da música. O Século XX legou-nos - dentre os desafios crescentes da chamada música de vanguarda - o ressurgimento da early music (música antiga), graças ao empenho de artistas restauradores de instrumentos antigos e cultores dessa arte, também com a invenção e aperfeiçoamento do fonógrafo até o moderno CD. O órgão - instrumento que atravessou séculos de história - jamais poderia se furtar à tão próspero e profícuo ambiente de ressurreição da música antiga. No campo da música contemporânea, o órgão teve seus momentos de glória nas mãos de organistas e compositores europeus, de meados do século XIX aos nossos dias.
Órgão Tubular e Eletrônico:
Desde o aparecimento do sistema de tração elétrica aplicado ao órgão de tubos, os organistas/compositores do chamado Theatre Organ (dos tempos do cinema mudo) mantiveram uma tradição até que surgisse o cinema falado. Com a criação do órgão eletrônico pelo engenheiro Laurens Hammond (1895-1973) a partir de 1935, vários organistas de música popular passaram a adotar esse novo instrumento, incrementando até mesmo a sua técnica e chegando até a fazer com que o órgão Hammond balbuciasse palavras: um incrível desafio. O leitor de meia idade possivelmente deverá se lembrar das famosas gravações em 78 rpm de vários organistas de música popular que, em meados dos anos 1950, povoavam nossos lares com o famoso bolero "Quiereme mucho", em que o órgão executava tanto a melodia quanto balbuciava as estrofes daquela música! O órgão falante: uma incrível novidade para a época, mas que foi se perdendo durante as décadas seguintes em que Elvis Presley (1935-1977) e os Beatles passaram a dominar o cenário da música popular de então. Porém, desde a "Orgelbewegung" (movimento de reforma do órgão, iniciado nos anos 30 e ampliado a partir da década de 1950), o órgão de tubos ganhou maior qualidade artística e artesanal. Foi o grande momento em que se re-descobriu o órgão barroco e, a partir daí, a fabricação de novos instrumentos dentro desta concepção artística. Com o avanço da tecnologia digital nos anos 1980, criou-se o órgão digital e, conseqüentemente, o órgão sampleado.
Alguns desafios da música no Século XX:
O século XX iniciou-se com mudanças muito radicais e, ao mesmo tempo desafiadoras, principalmente no campo das artes em geral. Com a música, o impressionismo de Claude Debussy (1862-1918) adentrou-se pelo novo século contagiando as platéias francesas cheias de curiosidade pelo novo. Porém, Igor Stravinsky (1882-1971) iniciaria um novo tempo musical a partir de 1913, com a primeira audição mundial de sua A Sagração da Primavera, em Paris. O impacto causado pela música excessivamente dissonante e rítmica foi tamanho para os ouvidos da época, que redundou em famoso escândalo. Arnold Schönberg (1874-1951) apresentaria a sua teoria dos doze sons (dodecafônica) ao mundo musical de então. Era o momento de mudar, de buscar uma nova concepção e linguagem estéticas para a música, já desgastada pelo tradicionalismo convencional e tonal. Nascia assim a chamada Segunda Escola de Viena, formada por Alban Berg (1885-1935), Anton von Webern (1883-1945) e liderada pelo próprio Schönberg. Com o advento do nazismo na Alemanha (a partir da década de 1930) e, conseqüentemente, na Áustria, as teorias schönberguianas - por terem características de universalidade - passaram a não conciliar com os ideais de cunho nacionalista do nazismo, motivando uma interrupção no processo com a conseqüente imigração de Schönberg para os Estados Unidos da América. Após a Segunda Guerra Mundial, movimentos em prol da nova música passaram a se desenvolver, principalmente, nos Estados Unidos. A partir da segunda metade do século XX, a nova música retomou o espaço perdido durante os anos de guerra. Porém, com suas características altamente cerebrais e experimentais, essa música passou a ser desenvolvida por grupos herméticos e radicais, assim se afastando do grande público. No Brasil de então, vivíamos sob o estigma do nacionalismo musical. A chegada de Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005) em 1937 motivou a grande mudança entre nós. Koellreutter trouxe-nos as teorias schönberguianas, transmitindo-as a vários compositores brasileiros. Assim, duas facções se criaram: a dos nacionalistas e a dos vanguardistas. A música eletroacústica ia também chegando e se desenvolvendo gradativamente no Brasil. Vários grupos de compositores e músicos se formaram a partir de então, motivando amplamente a criação e a execução dessa nova música. A década de 1960 foi a grande privilegiada, na qual o espaço ao experimentalismo musical encontrava-se aberto a todos. Apesar de ter encontrado alguns entraves após a Revolução de 1964, a nova música seguiu o seu curso natural pelos anos 1970 e 1980. Não poderíamos deixar de citar nomes de alguns compositores que marcaram e ainda marcam época: Camargo Guarnieri (1907-1993), Gilberto Mendes (1922-), Cláudio Santoro (1919-1989), César Guerra-Peixe (1914-1993), Eunice Katunda (1915-1990), Frederico Richter (1932-), Edino Krieger (1928-), Lindembergue Cardoso (1939-1989), Jorge Antunes (1942-), dentre outros. A música para órgão encontrou algum desenvolvimento durante esse período, em que alguns compositores passaram a entender o instrumento não somente como o instrumento litúrgico, mas também como instrumento em que se poderiam manipular massas sonoras. Porém, dada à forte tradição litúrgica observada pela maioria dos organistas, essa música ficou restrita apenas às salas de concertos de música secular, tornando-se pouquíssimas vezes executada e/ou gravada por alguns poucos organistas. Pelos anos 1990, certo desgaste ocorrido com o experimentalismo musical exagerado e levado às últimas conseqüências pelos compositores de vanguarda, motivou o surgimento da música minimalista: um retorno à tonalidade, porém, com uma nova perspectiva estética. Philip Glass (1937-) e Steve Reich (1937-) foram as figuras mais expressivas desse movimento. Finalmente, chegamos ao limiar de um novo milênio e do século XXI. Deparamo-nos hoje com várias possibilidades em termos de criação musical contemporânea. Felizmente, vivemos um momento democrático no qual o compositor pode escolher livremente a sua tendência estética, a linguagem e estilos musicais que melhor aprouver, uma vez que ele saiba manipular com competência todo o material sonoro disponível.
Música brasileira para órgão
Desde o século XVIII, a música litúrgica brasileira tem sido escrita por importantes compositores que viviam nas cidades históricas de Minas Gerais. Em verdade, o órgão é ali tratado como um instrumento de acompanhamento. José Joaquim Emérico Lôbo de Mesquita (1746-1805), Inácio Parreiras Neves (1752-1794), Marcos Coelho Neto (1740-1806), João de Deus de Castro Lobo (1794-1832) e Manoel Dias de Oliveira (1734-1813) são citados dentre os mais importantes autores de Missas e Antífonas para solo, coro e orquestra com o acompanhamento do continuo. No Rio de Janeiro, o padre José Mauricio Nunes Garcia (1767-1830) era o mais famoso compositor de seu tempo e foi organista e maestro da Capela Real durante muitos anos. Entre suas muitas composições, encontramos obras de música sacra e orquestral, um interessante Método de Pianoforte (Rio, 1821), mas não música para órgão solo. As primeiras peças para órgão solo foram escritas no final do século XIX: quatro delas compostas por Alberto Nepomuceno (1864-1920) e uma por Julio Reis (1870-1933), a Marcha Triunfal datada de 1887. Na primeira metade do século XX, os compositores Henrique Oswald (1852-1931), Furio Franceschini (1880-1976) e Ângelo Camin (1913-1986) escreveram várias obras para o instrumento. Graças à criação do primeiro curso de Mestrado em Órgão na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (em 1980), um novo despertar surgiu para o futuro do instrumento entre nós. Os organistas patrícios que por ali passaram, eram incentivados a executar e a pesquisar sobre música erudita brasileira escrita especificamente para órgão, reiniciando-se assim uma feliz retomada da música organística em nosso país. Vários compositores passaram então a escrever para o instrumento, uma vez que - após um longo período em que executavam somente o repertório tradicional - os organistas se voltaram para a música brasileira. Atualmente, dentre outros compositores, Henrique Morozowicz (1934-), João Wilson Faustini (1931-), Edmundo Villani-Cortes (1930-), Calimerio Soares (1944-) e José Carlos do Amaral Vieira (1952-) veem escrevendo regularmente para órgão. A música escrita em estilo sacro e profano, as quais apresentam títulos mais em consonancia com a música tradicional européia são: Tocatas, Prelúdios, Fugas, etc. Se observarmos as obras compostas para órgão solo de estilo mais caracteristicamente brasileiro, poderemos encontrar tal atmosfera nas obras recentes escritas por João Wilson Faustini (Suite para Órgão), por Calimerio Soares (Pequenos Prelúdios Folclóricos) e por Henrique Morozowicz (Toccata super E-taruê), compositores que vêm deliberadamente adotando essa característica.
Do organista, compositor e improvisador:
Improvisar ao órgão é ou, pelo menos, deveria ser - uma atitude natural do organista. A atividade litúrgica de um organista geralmente o impulsiona ao ato de improvisar, uma vez que pode vir a depender dessa atitude em determinados momentos do seu fazer litúrgico-musical. O ato de improvisar muito o auxilia em sua tarefa diária, tornando-o um candidato potencial a tornar-se um compositor. De maneira geral, os grandes organistas costumam ser excelentes improvisadores e compositores. Entretanto, tal atitude pode apresentar-se problemática para um instrumentista técnica e musicalmente não muito bem preparado, o que poderá prejudicar a sua atividade como organista litúrgico. A arte da improvisação é muito antiga. Nos quatro séculos que nos precederam, sabemos que os mais importantes organistas desenvolviam a arte da improvisação junto às demais habilidades de executar e de compor. No caso específico, devemos - mais recentemente - o desenvolvimento desta arte às escolas francesa e alemã de órgão. Os organistas Albert Schweitzer (1875-1965) e Charles-Marie Widor (1844-1937) contribuíram para o desenvolvimento da arte do órgão com a união das duas vertentes organísticas franco-alemã, promovendo o aperfeiçoamento do órgão moderno que conhecemos em nossos dias. Além dos mestres já citados, lembremos-nos de alguns organistas improvisadores dos dois últimos séculos: César Auguste Franck (1822-1890), Alexandre Guilmant (1837-1911), Louis Vierne (1870-1937), Léonce de Saint-Martin (1886-1954), Marcel Dupré (1886-1971), Pierre Cocherau (1924-1984, provavelmente, o mais genial dos improvisadores), Jean Guillou (1930-), Karl Richter (1926-1981), Edouard Commette (1883-1967) e o brasileiro Marcelo Giannini (1958-), dentre outros. Improvisar e compor são duas habilidades que não se distanciam muito. O ato de criar está para com essas duas habilidades. Para ambas implica-se uma substancial gama de conhecimentos em harmonia, contraponto e fuga. Há apenas uma diferença entre uma e outra: uma grande habilidade de execução técnico-instrumental. O compositor não necessariamente precisa ser possuidor dessa habilidade técnico-instrumental. Porém, o improvisador, sim. Ele precisa saber dominar tecnicamente o seu instrumento! Com referência ao estudo da improvisação, o organista britânico Arthur Wills (1926-) assim se expressa: "Quando iniciamos um estudo disciplinado, necessitamos trabalhar com competência em harmonia prática ao teclado, juntamente com o estudo teórico da harmonia, contraponto e composição livre. Consume-se muito tempo com isso, porém trata-se de um compromisso essencial para que se progrida. Mesmo harmonia, contraponto e composição devem ser estudados através dos mais importantes exemplos do passado. Assim, eu creio que o estudo da improvisação é também melhor baseado na imitação estilística." (Wills, 1985: 186-187) O conhecimento das várias formas e estilos musicais por parte do organista é de fundamental importância para o desenvolvimento de suas habilidades como improvisador. Improvisar alguma música, por exemplo, no estilo de Bach ou Handel pressupõe um conhecimento e entendimento formal e estilístico por parte do organista, orientado no sentido de expor idéias melódico-rítmico-contrapontísticas à maneira desses compositores.
Conclusão:
Nos dias atuais em que vivemos, é-nos muito difícil prognosticar o futuro do órgão ou mesmo da criação musical destinada ao instrumento. Quanto ao futuro do organista/compositor/improvisador no Brasil, tudo dependerá de um desenvolvimento mais crescente da atividade organística nas igrejas e escolas de música nos próximos 50 anos. Dentro desta perspectiva, acreditamos que, tanto a música quanto o instrumento órgão, ambos conseguirão trilhar novos caminhos estéticos, no sentido de encontrar o merecido lugar junto às próximas gerações. Será um novo tempo, um novo momento...!
Bibliografia:
HURFORD, Peter. Making Music on the Organ (Oxford: OUP, 1990) MORGAN, R. Twentieth-Century Music: a history of musical style in modern Europe and America (New York: Norton, 1991) PERGAMO, A. M. L. La Notacion de la Musica Contemporánea (Buenos Aires: Ricordi Americana, 1973) SOARES, Calimerio. Compondo para Órgão: uma abordagem técnica, in revista Em Pauta, nº 12/13 (Porto Alegre: UFRGS, 1996/97: 143-150) WILLS, Arthur. Organ (New York: Schirmer Books, 1985)
[1] CALIMERIO SOARES é compositor e professor adjunto da Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em Música pela Universidade de Leeds, Inglaterra. Membro da Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência e conselheiro do Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
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