Doc. N° 2229
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
108 - 2007/4
Tema em debate
Guaíra: Prioridade da Natureza e Teoria da Cultura Reflexões pelos 25 anos do desaparecimento das Sete Quedas
A.A.Bispo
Há 25 anos, em 1982, desapareciam para sempre as cataratas de Sete Quedas do Guaíra, submersas nas águas que formaram a barragem da represa hidroelétrica de Itaipú. Sacrificava-se, assim, um dos mais magníficos monumentos naturais do Brasil e do Paraguai, uma dos mais extraordinárias obras da natureza do globo, um patrimônio natural de primeira grandeza da Humanidade. Os saltos haviam marcado culturas indígenas, a história das Missões, do Paraná, do Mato Grosso, emprestado valor simbólico a um território de Guaíra, estivera presente em lendas e na literatura. Já há um quarto de século as novas gerações de brasileiros e paraguaios não podem presenciar uma das atrações exponenciais de seus países, os sul-americanos em geral contemplar uma das maiores expressões da grandiosidade da natureza do subcontinente, o visitante de outras partes do mundo extasiar-se perante o espetáculo oferecido através dos milênios pelo grandioso leque de saltos do Alto Paraná. Contentam-se com as instrutivas exposições oferecidas em Itaipú e com a admiração dessa obra portentosa de engenharia e de empreendimento humano, do seu significado econômico, social e desenvolvimentista, uma prova sempre decantada com orgulho das possibilidades de cooperação internacional na América Latina. E essa será a situação para sempre: nenhuma geração terá jamais a possibilidade de contemplar uma das mais esplêndidas formações naturais do planeta. Não foi sem comoção, é verdade, que muitos brasileiros acompanharam, na época, a destruição das Sete Quedas. A consciência de que aqui se dava um passo irrevogável, que se cometia um atentado, um ato de agressão e prova de desamor pela natureza pátria foi em muitos casos apenas sufocada pela certeza da utilidade do projeto, da necessidade energética, dos incalculáveis impulsos que daria para o desenvolvimento de grandes regiões e para o bem-estar de suas populações. Os discursos justificativos eram múltiplos e convincentes, e não se limitavam a hinos à grandiosidade do projeto e suas conseqüências, à capacidade técnica, à ousadia empreendedora do homem da segunda metade do século XX; havia já o argumento ecológico - o aproveitamento dos potenciais hidrográficos como uma das possibilidades mais naturais, menos riscantes na produção energética. Para a observação in loco e para a reflexão sobre os argumentos legitimadores e os contraditórios estados de espírito, realizou-se, em agosto de 1981, uma viagem de estudos e de despedida às Sete Quedas. Tratava-se, já naquela época, de refletir se a tristeza que causava a condenação das magníficas cataratas não representariam apenas expressão de um sentimentalismo passadista e avesso ao desenvolvimento, e se não seria essa atitude romântica e míope que fundamentava a contradição entre a orientação de responsabilidade ecológica e os princípios conservacionistas. Colocava-se a questão dos limites que o Homem teria ou não teria na consecução de seus objetivos utilitaristas e desenvolvimentistas: estaria êle pronto a tudo sacrificar? O amor pela natureza de sua terra, - apesar de todas as apologias entoadas em cantos patrióticos - era tão pouco que podia ser vencido por considerações pragmáticas, nada deixando do que passageira comoção? Estaria o brasileiro por motivos similares disposto também a sacrificar um Pão de Açúcar, um Corcovado, - uma Amazônia? Após a construção da barragem e da usina hidroelétrica, o local foi visitado pelos mesmos observadores outras vezes, em fins da década de 80 e em fins da década de 90. Os notáveis esforços urbanizadores, paisagísticos e culturais foram considerados, assim como o significado dos empreendimentos, científicos, informativos e turístico-culturais, serviços estes utilizados por milhares de visitantes, entre êles escolares e estudantes. Apesar disso, o mal-estar do início dos anos 80 permaneceu. Percebe-se que no triste desaparecimento das cataratas e na empolgante epopéia de Itaipú está muito mais em jôgo do que questões sentimentais ou tecnólogicas, de poesia ou de engenharia. O estudo da transformação Sete Quedas/Itaipú não pode se restringir a aspectos históricos da expansão, da ocupação e do desenvolvimento regional e supra-regional, do ideário desenvolvimentista, tecnocrático e da constelação política de determinada fase da história do Brasil. Tem-se aqui a possibilidade de tratar-se de questões de cunho básico nas reflexões teórico-culturais e que apresentam hoje relevante atualidade. Trata-se da relação entre a natureza e a cultura na discussão teórica e a análise dessa relação na própria cultura observada pelo pesquisador. O caso de Sete Quedas demonstra que, quando teve-se de escolher entre a natureza e a obra do homem, por muitos considerada como cultural, em todo o caso expressão de processos culturais, a primeira perdeu. Hoje, porém, a questão da prioridade da natureza na teoria da cultura vem sendo muito discutida internacionalmente e tem dado ensejo a construções de edifícios teóricos de considerável amplitude. Em matéria publicada pela revista Manchete, em 4 de setembro de 1982, cita-se que o então prefeito de Guaíra, Kurt Walter Hasper, juntando-se à comunidade, condenara o fim das Sete Quedas: 20 metros a menos na barragem de Itaipu bastariam para evitar o desaparecimento. A reportagem salienta, porém, que, para aqueles que lamentavam, em Guaíra, o fim das Sete Quedas, restaria o consolo implícito nas palavras do General Costa Cavalcanti: "Elas não vão desaparecer, vão ser inundadas e, quem sabe, renascer um dia" (pág. 9). Hoje, uma das questões mais discutidas no debate teórico-cultural é aquela relacionada com o conceito de reconstrução. Não só teoricamente, mas sim na prática constatam-se esforços reconstrutivos em grandes dimensões em várias cidades européias. Um desses projetos de repercussão internacional é o da reconstrução do antigo palácio real de Berlim, para a qual se desmonta ou desmantela o ex-Palácio da República Democrática Alemã. Ali deverá surgir um Forum Humboldt para o diálogo mundial entre culturas e a ciência. Coloca-se aqui a questão da posição da Natureza no debate teórico reconstrutivo e nos intentos de reconstrução de edifícios a serem destinados ao diálogo nos vários fóros mundiais de cultura que surgem na atualidade. Desmantelar-se-ia também obras de engenharia com a finalidade de reconstruções de monumentos naturais destruídos? Aproveitando o ensejo da passagem dos 25 anos do fim das Sete Quedas, e sob a impressão ainda viva da sua magnificência mesmo nos últimos momentos, a A.B.E. se propôs, no âmbito do seu programa de estudos "Cultura, Natureza e Música", dedicar uma série de sessões de reflexões em diferentes cidades e contextos à discussão crítica, sob a perspectiva intercultural, de aportes teórico-culturais da atualidade que procuram partir de uma Prioridade da Natureza nas suas reflexões. A presente edição oferece relatos de alguns dos pontos tratados e das reflexões encetadas.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).