Doc. N° 2232
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
108 - 2007/4
Tópicos multilaterais
Comparatística cultural e teoria cognitiva em situações de complexidade cultural Dimensões e diferenciações do Eurocentrismo
Bratislava, Eslováquia. Debates contextualizados da A.B.E.
A.A.Bispo
Bratislava. Trabalhos da A.B.E. Fotos de A.A.Bispo A cidade multilingual de Bratislava (Presburg, Pozsony, Presporok), uma das menos conhecidas capitais e centros cosmopolitas da Europa, localizada, assim como Viena e Budapeste às margens do Danúbio, caracteriza-se pela multiplicidade de influências que recebeu durante a sua história e a sua posição em campos de tensões determinados pela mudança de predomínio de diferentes nações e correntes de povos e culturas no decorrer das épocas. Bratislava apresenta-se, assim, como uma cidade privilegiada para reflexões relativas à multiculturalidade em suas diversas acepções e diferenças, assim como para o tratamento de questões relativas à identidade em situações complexas de formação populacional e de mudança de predomínio de determinados grupos da população. Os eslovacos, no passado pouco considerados, reprimidos juntamente com os alemães numa época de hungarização, assumiram nova posição de influência após a Segunda Grande Guerra; dentro dessa variável constelação étnico-cultural mais ampla, subgrupos de judeus, ciganos, búlgaros, croácios, tchecos e outros manteem características culturais diferenciadoras e influenciam-se mutuamente. Além do mais, situada entre as grandes cidades de Viena e Budapeste e tendo por detrás as regiões montanhosas do interior eslovaco, surge como campo de especial interesse para estudos de interações de influências metropolitanas em regiões intermediárias e de questões de cosmopolitismo e provincialismo. A questão da provincialidade pode ser colocada ainda sob outras perspectivas, uma vez que, durante o recente passado comunista, em tentativas de transformação de estruturas etno-sócio-culturais, populações rurais foram deslocadas para a área da capital enquanto que representantes alemães e húngaros da burguesia - e de círculos intelectuais - foram transplantados para o Interior. Por essas razões, a A.B.E. escolheu em 2003 a cidade de Bratislava para ser visitada no âmbito de estudos dedicados a esses complexos temáticos e, agora, para a consideração contextualizada de questões de natureza teórico-cultural, sobretudo aquelas relacionadas com a necessidade de um aguçamento da sensibilidade por problemas de enfoques e sobretudo de uma maior diferenciação dos conceitos críticos de etnocentrismo e eurocentrismo.
Bratislava
Textos referentes a Bratislava sempre salientam a sua posição junto ao Danúbio e a função desse rio na constituição etno-histórico-cultural da Europa Central e da Europa Centro-Leste. Essa função tem sido vista não apenas no sentido de ter possibilitado o intercâmbio entre povos e culturais do Ocidente e do Oriente, do Sul e do Norte, mas sim também no de delimitação natural de esferas culturais, de separação entre alemães e húngaros, de eslavos e não-eslavos ou outros. Testemunhos dessa função delimitadora seriam os castelos e as povoações que surgiram a seus redores, tais como o castelo de Bratislava, já tomado pelo rei húngaro Estêvão I ao redor de 1030. Um relevância por assim dizer paneuropéia dessa fortificação manifestou-se no fato de ali ter tido lugar o encontro dos participantes da Terceira Cruzada sob a liderança do Imperador Frederico Barbarossa. Foi nesse castelo que nasceu Isabel, filha do rei André II da Hungria, aquela que se tornaria após o seu casamento rainha da Turíngia e que seria santificada, tornando-se um modêlo de vida franciscana pelas suas obras caritativas e sociais (veja relatos de atividades relacionadas com as atuais comemorações de Santa Isabel em edições anteriores desta revista). O franciscanismo na história cultural da cidade e região não pode deixar de ser considerado, e testemunho arquitetônico de sua importância é o convento e a igreja dos franciscanos, edificada entre 1280 e 1297. Os elos da cidade com a esfera cultural alemã, aqui sugeridos com a história de vida de Santa Isabel, são antigos e complexos, tendo sido ampliados com uma expansão de cunho colonisador alemão na Idade Média. Significativo é a estátua de Rolando à frente da Casa de Conselho, representante dos direitos burgueses, levantada à imagem do imperador austríaco Maximiliano II, o primeiro a ser coroado a rei da Hungria, em 1563. Não se pode esquecer, assim, que Bratislava foi a capital da Hungria por mais de dois séculos (1536-1783), e isso devido à pressão exercida pelos turcos e a ocupação da cidade de Buda. Assim, a cidade surge historicamente como sendo um baluarte do Cristianismo ocidental contra a ameaça da islamização. Na catedral local, dedicada a São Martim, realizavam-se até meados do século XIX coroações dos reis húngaros. Essa história religiosa da cidade conheceu momentos de conflito entre protestantização e recatolização. Assim, a Igreja dos Jesuítas, um dos principais monumentos arquitetônicos da cidade, fora edificada por protestantes alemães no século XVII, e essa transformação confessional manifesta-se também em mudanças estilísticas, ou seja, na barroquização. De centro aristocrático húngaro, marcado por representativos edifícios do século XVIII,tais como o palácio Mirbach, com as suas ornamentações barrocas tardias, ou o palácio primacial, classicista, a cidade passou a cidade de próspera burguesia alemã e de ativa vida cultural e científica. Esse desenvolvimento, sob o aspecto arquitetônico e urbanístico, alcançou uma nova fase após a Primeira Guerra Mundial, com a fundação da república tcheca. Tornou-se capital à época da Segunda Guerra (1939-1945) do Estado Eslovaco. A história de Bratislava como centro de estudos é de antigas raízes. Já no século XV, de 1465 a 1486, possuía uma universidade, a Academia Istropolitana, criada segundo o modêlo de Bolonha.
Multiculturalidade na Europa e a questão de etno- e eurocentrismos
A situação de diversidade étnica e cultural de Bratislava e as transformações ocorridas com relação ao predomínio de diferentes esferas definidas étnicamente ou sócio-culturalmente no decorrer da história demonstra as dificuldades - e a necessidade - de precisão de conceitos muito usuais em estudos culturais e que possuem em geral uma conotação negativa. Trata-se do conceito de etnocentrismo e o de eurocentrismo, sendo este muitas vezes e de forma inprecisa utilizado como sinônimo daquele. Quais seriam as perspectivas etnocêntricas numa situação multicultural como a de Bratislava? Aquela de eslavos que viriam o desenvolvimento histórico-cultural de uma perspectiva eslava, ou de alemães que a considerariam de um ponto de vista alemão, ou de judeus ou ciganos? Qual seria a influência dessa questão de identificação interna na consideração de outros povos e culturas? Um intelectual que considerasse o desenvolvimento cultural de outras culturas a partir de identificações etnocentralizadas no seu próprio complexo cultural, procederia etno-e eurocentricamente? Ele não poderia tentar assumir um ponto de vista de um complexo cultural distinto daquele com o qual se identificaria, apesar da sua diversidade multicultural, e agir assim "não-eurocêntricamente"? A dificuldade de precisão desses conceitos, debatida sob diversos aspectos, leva necessariamente à discussão de questões de processos de identificação, não tanto do objeto de estudo como muito mais do próprio observador. O problema de perspectivações eurocêntricas nos estudos culturais tem sido considerado sob diversos aspectos e vem sendo criticado há muitos anos. Somente gradativamente, porém, vem-se percebendo que também tendências atuais do debate teórico-cultural não são livres de focalizações eurocêntricas, nelas se constatando até mesmo posições e concepções que teriam sido evitadas há alguns anos e que agora surgem sob novas aparências, apesar de todas as afirmações em contrário. Tais problemas e o seu alcance já foram considerados em relação ao Cultural Studies de tradição inglesa. Contextos temáticos nele particularmente considerados, focalizações e conceituações teóricas não apenas contribuem positivamente para a inovação do pensamento e de métodos mas sim, também, quase que de forma hegemônica, ao esquecimento de outros complexos de questões culturais e sua reflexão (A.A.Bispo, "Musicologia, Cultural Studies e Cultural Analyses: Novos problemas de eurocentrismo na era da globalização", UniCiências 8, Universidade de Cuiabá, 2004, 11-22) Áreas de estudo e problemas que até há poucas décadas haviam sido ignorados e que, de fato necessitavam receber mais acentuada atenção dos estudiosos, assim como renovações de perspectivas teóricas e de métodos para a superação de limitações em parte condicionadas pelo desenvolvimento histórico de disciplinas particulares não podem, agora, amparados por aspirações supra- ou metadisciplinares, e através de caminhos certamente inconscientes, atuar de forma limitadora ou reducionista. Constata-se, por exemplo, em alguns centros europeus, a tendência a que disciplinas de cunho etnológico se preocupem com tal intensidade com questões da cultura pop, subculturais ou de fenômenos de uma cultura global ou mundial que o tratamento de complexos culturais anteriormente considerados nesse âmbito disciplinar surja como expressão de posicionamentos superados. No debate desse problema, tem-se tornado claro que muitas vezes os estudiosos não se conscientizam de que, nessa orientação, dirigem a sua atenção a aspectos do próprio universo cultural, ou seja, com a esfera cultural com que se identificam, assumindo posições, embora renovadas, de um outro ramo disciplinar, o da hoje tão criticada ciência do Folclore. Disciplinas, que deveriam ter a sensibilidade de seus representantes dirigida sobretudo a complexos culturais distintos daqueles que constituiram a sua própria identidade cultural, com suas normas e práticas simbólico-mediais, por mais complexas e multiculturais que sejam, se transformam pelo direcionamento predominante das atenções a aspectos subculturais ou da cultura popular, a estudos culturais do próprio universo. A modificação do termo Folclore (ou Volkskunde, em alemão) a "Etnologia Européia" somente seria justificável, sob esse aspecto, se utilizado por estudiosos pertencentes a outro complexo cultural daquele da cultura européia com relação aos estudos da cultura popular em complexos europeus, caso contrário, representaria uma perda de diferenciação da reflexividade, e, apesar do nome, uma transformação da Etnologia em estudo da cultura popular em prejuízo, por exemplo, das culturas indígenas. Sob o pano de fundo dessas considerações, aqui apenas sumariamente expostas, torna-se compreensível o escopo da A.B.E.: o do desenvolvimento de estudos teórico-culturais em estreito relacionamento com reflexões acerca do posicionamento do próprio estudioso, sobretudo no seu condicionamento sócio-cultural. A focalização sociológica, dentro desse escopo, diz respeito em primeiro lugar ao próprio trabalho científico. Por essa razão, a A.B.E. compreende que a culturologia não pode ser praticada independentemente de uma sociologia da ciência (science of science). Essa focalização diferencia-se, aparentemente de forma sutil, de outros tipos de enfoques teórico-científicos que também salientam o significado da consideração de fatores sociológicos nas reflexões culturais. Este é o caso, por exemplo, da teoria histórico-genética da cultura, tal como desenvolvida por Günter Dux (Veja outros relatos nesta edição), em que o fator sociológico é considerado antes no objeto de estudo. A discussão sobre o "etnocentrismo", ou melhor, eurocentrismo assume aqui especial virulência e tem sido mencionada pelo próprio formulador dessa teoria, que a procura rebater. No debate, foram considerados os vários aspectos dessa discussão, que aqui podem ser apenas esboçados em alguns de seus pontos fundamentais com a finalidade de chamar a atenção para a relevância das concepções em questão para complexos culturais altamente diferenciados como aqueles do Brasil.
Etnocentrismo e teoria cultural histórico-genética de orientação sociológica
Segundo teóricos que recorrem a Piaget, tal como o formulador da Teoria histórico-genética da cultura, estaria fora de questão o fato de que nas sociedades assim-chamadas de primitivas o nível de organização cognitiva não superaria o concreto-operacional. Uma suposta universalidade do nível formal-operacional do desenvolvimento não existiria, portanto. G. Dux vai ainda mais longe e afirma que nessas sociedades ditas primitivas um certo número de ações cognitivas não alcançariam o estágio concreto-operacional. Citando outros estudiosos, diz que. após um exame de material etnográfico, Ch. R. Hallpike teria chegado à constatação genérica de que nessas sociedades a competência operacional teria permanecido na fase pré-operacional. Com base em pesquisas próprias, em parte desenvolvidas entre os indíos Mura da Amazônia, esse autor afirma que a competência operacional se apresenta desenvolvida até o limite de uma competência concreto-operacional. A logicidade interna das respostas nessas pesquisas teria mostrado que o desenvolvimento da competência operacional teria alcançado um ponto relativamente avançado de possibilitar momentos de julgamento no contexto da ação singular. Isso valeria sobretudo para sociedades agrárias simples. O que faltaria, porém, seria a extrapolação da estrutura da ação singular. E. Bates sugeriria a existência de uma fase proto-concreto-operacional antes da fase realmente concreto-operacional. Esses resultados coincidiriam com os relatos de etnólogos sobre as concepções de sociedades que pesquisaram. O estágio da pesquisa, porém, não corresponderia ao estágio da teoria. Isso demonstraria a discussão sobre a competência operacional, tal como desenvolvida em sociedades não-industriais. A teoria psicológica procuraria avaliar as diferenças somente como expressão de "ser diferente", no sentido de "different, but equal". Dux refere-se expressamente à discussão relativa às acusações de etnocentrismo que, para êle, teria afetado o desenvolvimento teórico e imposto o imperativo do ser "politicamente correto". A diferença das culturas, pelos defensores do "diferente mas igual", seria atribuida às próprias diferenças culturais; essas seguiriam diferentes valorações culturais. Para Dux, esse pensamento seria tautológico.
Crítica ao comparativismo cultural e o fator historicidade
Constata-se, portanto nessa argumentação de Dux e nessa crítica à crítica, um conflito latente ou explícito entre a corrente de teoretização que representa e que considera como expressão de um desenvolvimento moderno da concepção do mundo e posições das ciências culturais que êle denomina de Comparativismo mas que é, em geral, as de antropólogos da cultura, etnólogos e outros pesquisadores culturais. Nessa crítica da crítica à acusação de etnocentrismo, reverte-se a crítica com a acusação de que a concepção cultural do que chama de comparativismo cultural seria a-histórica. O caminho da argumentação é o seguinte: a teoria ontogenética da cognição deveria ser inserida necessariamente numa teoria histórico-genética. Para esta, não seria muito relevante se a competência cognitiva em sociedades primárias ou arcaicas chega ou não até a uma protofase da competência cognitiva operacional ou se, pelo menos em alguns aspectos, alcance a fase concreto-operacional.Essa discussão poderia ser superada apenas numa sociologia do Conhecimento, onde se demonstraria de que modo as exigências práticas podem ser consideradas mesmo sem formação de uma competência operacional. Para uma sociologia do Conhecimento, porém, o reconhecimento da dimensão histórica seria conditio sine qua non. Ter-se-ia assim, segundo essa colocação, um conflito entre posições teórico-culturais que se caracterizariam pela visão da diversidade cultural segundo a diretriz "diferente, mas igual", acusada de a-histórica, e aquela teoria histórico-genética de orientação sociológica e que procura a sua vinculação à história natural. Esta seria vista por aquela não como expressão da verdade por excelência, mas simplesmente como expressão de uma fixação de perspectivas, no caso eurocêntrica. Essa situação conflitante parece corresponder, de fato, a posições e concepções que se conhecem de países que possuem grupos sociais que o autor considera considera como arcaicos. Ao lado daqueles - poucos - que procuram encontrar os valores próprios das culturas aborígenes, indígenas e tradicionais africanas, por exemplo, o consenso geral parece partir de uma idéia de desenvolvimento que exige a educação desses grupos segundo critérios de aquisição de competência da sociedade dominante e que implica em considerá-los, de fato, como menos desenvolvidos. A teoria histórico-genética da cultura parece oferecer aqui uma base científicista a essa visão. Tudo indica, porém que o fator de historicidade ou de a-historicidade é colocado aqui de forma não adequada para a diferenciação de posições. Já o interesse pela assim-chamada etno-história, ou melhor, por uma história a partir da perspectiva de complexos culturais diferentes daqueles do observador, mostra que os estudos a que o autor denomina de comparativistas culturais não são, necessariamente, a-históricos. De fato, haveria a necessidade de uma maior consideração do método histórico na Etnologia - em especial em algumas áreas da Etnomusicologia -, uma consideração da história que naturalmente não significa considerar o universo cultural em estudo a partir da perspectiva histórica do próprio observador. Trata-se, entretanto, não tanto de historicidade ou de a-historicidade, mas sim do ângulo de perspectivação, de consideração dos pressupostos culturais do próprio observador e da rêde em que se insere, ou seja, de questões de auto-crítica cultural e/ou de "science of science". Os problemas residem aqui, por último, na conceituação de Cultura do próprio formulador da teoria histórico-genética. O seu uso e a sua inserção na teoria proposta de conectação com a história evolutiva natural representa uma projeção de uma conceituação do termo altamente contextualizada no próprio universo do seu idealizador. Sob esse aspecto, apenas pode-se rebater a crítica da crítica que faz a respeito de ressalvas de etnocentrismo, ou melhor, no caso, de eurocentrismo. Para os estudos culturais deveria continuar a valer a premissa de "diferente, mas igual", e isso não apenas por razões de uma atitude "politicamente correta" mas sim como resultado de uma maior diferenciação teórica a partir de uma auto-crítica cultural dos próprios teoritizadores. Aqui também vale o princípio da A.B.E.: a ciência da cultura necessita ser desenvolvida em estreito relacionamento de reciprocidade com a sociologia da ciência, entendida esta sobretudo como estudo das condições do trabalho científico, inclusive da auto-análise da posição do próprio observador. A discussão é, portanto, de extraordinária relevância para países como o Brasil e, sobretudo, para as culturas indígenas. Devido às suas graves conseqüências, a teoria "histórico-genética da cultura" necessita ser examinada com particular cuidado. As discussões deverão ter prosseguimento
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).