Doc. N° 2202
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
107 - 2007/3
Tópicos multilaterais Dinamarca-Alemanha-Brasil
D. Buxtehude. Significado, questões e perspectivas para os estudos euro-brasileiros
Lübeck: Jornada de estudos da A.B.E. 300 anos de falecimento de D. Buxtehude
A.A.Bispo
A passagem dos 300 anos de morte do compositor Dietrich Buxtehude (ca. 1637 - 9 de maio de 1707) dá ensejo à realização de numerosos concertos, eventos científicos e publicações, sobretudo, naturalmente, nos países do Centro e do Norte da Europa e, mais especialmente, no âmbito das comunidades evangélicas.
Coincidindo com o ano de comemorações de Paul Gerhard, grande nome da hinologia evangélica, as igrejas protestantes vivenciam, no ano de 2007, uma intensa programação de natureza musical, trazendo à consciência o significado da música no culto e na vida quotidiana da história das confissões reformadas, do papel desempenhado por esse desenvolvimento na história geral da música e sugerindo questões referentes ao relacionamento entre a música e a teologia.
Essas comemorações de 2007 não deixam de ter relevância para outras partes do globo, sobretudo para aqueles países que receberam imigrantes europeus no passado, que demonstram marcantes influências alemãs na sua vida musical ou que possuem comunidades evangélicas desenvolvidas.
Essas condições conjugam-se de forma particularmente intensa no Brasil. Considerando esse fato, a Academia Brasil-Europa decidiu dar especial atenção às comemorações de Buxtehude, não apenas no sentido superficial de incluir o Brasil no rol dos países que se unem aos eventos, mas sim como ensejo para reflexões de natureza teórico-cultural.
Nesse sentido, realizou-se, em maio de 2007, uma jornada de estudos euro-brasileiros na cidade alemã de Lübeck, local onde atuou a maior parte de sua vida e onde faleceu: a sua sepultura na Igreja de Santa Maria permaneceu intacta até a Segunda Guerra. Com essa visita, a A.B.E. retomou também trabalhos relacionados com essa cidade, iniciados já em fins de 1974.
Lübeck e seu papel-chave no intercâmbio cultural do Norte da Europa
Lübeck, situada no Norte da Alemanha, no estado de Schleswig-Holstein, foi uma das mais importantes cidades alemãs e um dos grandes centros culturais da Idade Média e dos séculos que imediatamente se seguiram. A sua fundação remonta ao ano de 1158/9, época de Henrique, cognominado de O Leão.
A sua fundação e o seu desenvolvimento econômico e urbano estiveram intimamente relacionados com o comércio e as relações marítimas com outras regiões do Norte da Europa. Comerciantes das regiões mais ocidentais da Alemanha, em particular da Renânia e da Vestfália, para lá se dirigiram com a intenção de aproveitar as oportunidades que a cidade pela sua posição estratégica oferecia para o mundo que se abria através do mar do Norte e regiões do Báltico.
A cidade transformou-se em importante centro de trocas comerciais, onde matérias primas das regiões mais afastadas eram adquiridas e para onde eram exportados artefatos produzidos nas cidades ocidentais.
Lübeck foi o centro cultural de todo o litoral norte e nordeste da Alemanha, a sua própria legislação foi vigente em várias cidades da Pomerânia e transformou-se em elemento de diferenciação cultural no interior dessa região e dessa com relação a outras áreas. Esse período de apogeu foi aquele em que Lübeck assumiu a liderança da Hansa (1356), transformando-se em principal centro urbano alemão, ao lado de Colonia, esta às margens do Reno. Com a decadência da comunidade hanseática de cidades, Lübeck conseguiu manter uma certa posição privilegiada, em particular devido à construção do canal de Stecknitz, destinado à exportação do sal.
O período de florescimento da cidade marcou profundamente a sua imagem, ainda hoje caracterizada por exemplos monumentais de arquitetura religiosa e profana na técnica construtiva de tijolos de cerâmica vermelha. Como em geral também observado em outras cidades e regiões, a decadência econômica não afetou imediatamente a vida cultural da cidade. Pelo contrário, a ela seguiu-se primeiramente um período de afirmação da auto-consciência obtida nos anos de florescimento, no qual a riqueza da vida cultural substituiu a riqueza econômica. Numerosos artesãos, artistas plásticos e músicos contribuíram para a manutenção e intensificação da vida religiosa e cultural local. Entre os grandes monumentos de Lübeck salientam-se várias igrejas que alcançaram no passado extraordinário nível da prática musical e que foram ornamentadas com retábulos de grande valor artístico.
A catedral de Lübeck teve a sua origem com a transferência do bispado de Oldenburg, em 1160. Edificada segundo os cânones românicos, foi ampliada e reformada posteriormente. Trata-se de uma das mais representativas obras do gótico nórdico. Entre as outras igrejas, ressalta-se a igreja de S. Pedro, uma basílica de três naves do século XIV, ampliada para cinco naves no século XVI. Destruída na Segunda Grande Guerra, foi reconstruída e é utilizada, hoje, sobretudo como centro de concertos, de conferências teológicas e de eventos meditativos. A temática intercultural e interconfessional determina em grande parte a programação desse centro, que assume assim significado supra-regional.
Burguesia na Hansa e cultura: devoção mariana e a Dança da morte
No âmbito da jornada, uma especial consideração foi dada à Igreja se Santa Maria. Edificada pelos burgueses de posses como expressão e marco de poderio relativamente ao clero, representado na catedral, remonta ao ano de 1200. Essa basílica românica apresentava significativamente dimensões superiores às da igreja matriz. De particular relevância para os estudos culturais foi a representação pictórica da Dança da Morte de B. Notke (1463), uma das grandes obras nessa temática, ao lado daquelas da França e do Báltico.
Em grande parte destruída na Segunda Guerra Mundial, a igreja foi reconstruída, tendo-se recuperado afrescos medievais. Também foi atingido o órgão do século XVI, no qual tocaram D. Buxtehude e J. S. Bach.
Dietrich Buxtehude e a perspectiva intercultural: Dinamarca e a Hansa
No ambiente de intensas relações comerciais e culturais da esfera do Mar do Leste, sempre houve um estreito intercâmbio de repertórios, de práticas musicais e de músicos entre as cidades do Norte da Alemanha, da Escandinávia e dos países bálticos. Essa situação se reflete na vida da família de Buxtehude e na questão da origem e da formação do compositor.
O nome de Buxtehude encontra-se na designação de uma cidade da Baixa Saxônia e, em geral, em cidades do Norte da Alemanha desde os séculos XIII e XIV, espalhando-se por outras regiões pertencentes à rêde de contactos da Hansa. Dietrich Buxtehude nasceu de família de renome local e de tradições musicais; seu pai, Johannes Buxtehude, era organista, tendo atuado na igreja de Santa Maria em Helsingborg, Suécia, então sob o dominio dinamarquês e, desde 1641/2 em St. Olaus em Helsingör, na Dinamarca. Ali se casou - talvez em segundas núpcias, com uma dinamarquesa. Também Dietrich Buxtehude surge nas antigas fontes como sendo dinamarquês, uma vez que tanto a cidade de Oldesloe, na região de Holstein, assim como Helsingborg e Helsingör pertenciam à Dinamarca. Na época, a vida musical na Dinamarca era marcada pela atividade de músicos alemães.
A questão da nacionalidade de Buxtehude tem sido, já há decadas, reconhecida como de interesse secundário, uma vez que as fronteiras dos estados se modificaram com o decorrer dos séculos. Não sem significado, porém, são as questões de identidade que se levantam com a constatação da atividade de músicos alemães em regiões de ambos os lados do mar Báltico.
Na cidade de Helsingör, centro de intercâmbio comercial, D. Buxtehude esteve certamente em contacto com músicos de diversas proveniências. Vários pesquisadores procuraram detectar elos de Buxtehude com a Suécia. De particular significado foram as suas relações com a família Düben, uma família de músicos alemães que atuava na Corte de Estocolmo, em particular com Andreas Düben, um aluno de Sweelinck que atura como organista na Igreja Alemã de Estocolmo e, posteriormente, como mestre-capela da Côrte. A maior parte dos manuscritos de Buxtehude se conservaria para a posteridade na coleção de seu filho, Gustaf Düben., hoje na biblioteca de Uppsala.
Desde 1667, Buxtehude parece ter-se encontrado em Lübeck. Após a morte do organista da Igreja de Santa Maria, Franz Tunder (+1667), Dietrich Buxtehude assumiu a sua posição, a mais importante de todo o espaço geográfico-cultural do Norte. Casou-se com a filha de Tunder, tornando-se genro de Samuel Franck, Cantor em Santa Maria e no Katharineum.
A pesquisa histórico-musical tem salientado que a vida de Buxtehude desenvolveu-se de forma singularmente estável em Lübeck. Ao contrário de outros músicos da época, dedicou-se inteiramente à composição, à realização de serviços musicais e à administração da vida religioso-musical da região. Uma de suas principais tarefas era a da realização de Vesperais (Abendmusiken), uma prática que parece ter-se desenvolvido das necessidades da classe comercial e que experimentou, sob Buxtehude, uma especial valorização, tornando-se a precursora dos concertos espirituais públicos da cidade. Muitas de suas Cantatas foram criadas para essas vesperais. Em geral, essas realizações eram constituidas por composições de cunho de Oratório, cujas partes eram distribuidas em vários concertos, além de programas mixtos. Tem-se estudado as relações entre o Oratório de Buxtehude e o início da ópera em Hamburg.
Em outubro de 1705, J. S. Bach viajou de Arnstad a Lübeck para conhecer a arte de Buxtehude. Uma inscrição em pedra na Igreja de Santa Maria de Lübeck relembra essa sua presença na cidade. Essa viagem parece que se relacionou também com a questão do futuro preenchimento do cargo de organista em sucessão a D. Buxtehude, com o qual, porém, vinculava-se de forma inoficial, quase que dinástica, o casamento com a sua filha.
Buxtehude e o Brasil
Qual seria o significado para os estudos culturais relacionados com o Brasil de um compositor tão vinculado a determinada esfera norte-européia, tão estável e limitado na sua atuação à cidade de Lübeck? As circunstâncias históricas, religiosas e culturais, os contextos nos quais a sua vida e obra se inserem surgem como particularmente distantes daquele do Brasil da época. Também sob o ponto de vista da recepção de sua obras na época e da influência que exerceu sobre as gerações que o seguiram nada indicam de significativo para estudos relacionados com o Brasil. Os alunos de Buxtehude atuaram sobretudo em cidades norte-européias como Stettin (F. G. Klingenberg), Güstrow (D. Erich), Braunschweig (G. D. Leiding), Husum (N. Bruhn), tão distantes do mundo colonial português, e a recepção de suas obras, além do Norte da Europa, apenas ocorreu mais intensamente na Alemanha Central. A linguagem de suas obras, e sobretudo o mundo religioso e intelectual em que surgiram parecem ser distantes, até mesmo estranhos ao desenvolvimento cultural do Brasil. Qual seria, portanto, a justificativa de um cultivo de obras de Buxtehude no Brasil? Qual o significado de sua consideração nos estudos culturais por ocasião de suas comemorações?
É justamente é essa aparente distância, essa quase que incongruência e/ou incompatibilidade da música de Buxtehude com a cultura musical do Brasil que contribui para o seu interesse no âmbito do tratamento de questões relativas a problemas mais profundos, menos evidentes dos estudos culturais em contextos internacionais. Trata-se aqui, em linhas gerais, da questão complexa da "música antiga" no Brasil e do seu "redescobrimento" no século XX como recepção do movimento correspondente na Europa.
O início do cultivo de Buxtehude no Brasil - e a consideração das questões culturais respectivas - diz respeito a contextos da tradição na qual se insere a A.B.E.. Os primeiros estudos e as primeiras apresentações de obras desse compositor se deram no início dos anos trinta no âmbito da Igreja Alemã de São Paulo e em ensaios e concertos de grupos corais preparados por Martin Braunwieser. Baseava-se, para isso, na experiência que tivera no Mozarteum de Salzburg, onde participara dos primeiros concertos dedicados à revelação da música "de antigos mestres".
Assim, No dia 20 de março de 1919, participara em concerto onde se executou a Chacona para órgão de D. Buxtehude, obra apresentada por Hans Huber, colega seu, da classe do Prof. Franz Sauer. É digno de nota que, no ambiente católico de Salzburg, compositores da história da música evangélica passassem a ser valorizados sob a égide do redescobrimento da "música antiga". Aqui parece resider um dos aspectos da questão que permite uma consideração mais adequada da introdução do estudo da obra de Buxtehude no Brasil. O nome de F. Sauer, provindo da escola de música sacra de Ratisbona (Regensburg), um dos principais centros da reforma musical católica, do assim-chamado "cecilianismo", indica uma singular ligação estético-espiritual entre a expressão dos mestres norte-europeus protestantes com aquela idealizada pelos católicos que propugnavam por uma recuperacão do estilo severo do passado remoto e pela superação da tradição coro-orquestral da música sacra dos séculos XVIII e XIX ( e isso em Salzburg!).
Também o cultivo de Buxtehude no Brasil deve ser visto nesse amplo e complexo contexto da renovação das concepções e das expressões religiosas da época e que, apesar de todos os seus aspectos particularmente severos sob o ponto de vista teológico, apresentou, na prática, singulares elos transconfessionais.
O programa em que pela primeira vez M. Braunwieser tomou conhecimento mais estreito da obra de Buxtehude, porém, inseria-se numa série de programas que alternava com outra, dedicada a "mestres modernos". A consideração de obras da música antiga, portanto, não era, nessa tradição, manifestação de uma orientação passadista, mas sim expressão de intuitos renovadores.
Também no Brasil, a introdução de obras de compositores europeus mais antigos, ainda desconhecidos, ocorreu em círculos que se dedicavam também à música contemporânea. Procuravam, assim, a superação de formas de expressão consideradas superadas, vinculadas com o século XIX, a renovação do repertório e a transformação das práticas musicais. O cultivo de Buxtehude no Brasil surge, aqui, como parte de um movimento de intuitos renovadores na época, inserido em processos de integração de estrangeiros na sociedade brasileira. Esses processos, que oferecem possibilidades de estudos diferenciados sob diversas perspectivas, tinham função performativa com relação à identidade dos estrangeiros e intuitos educativos para com a sociedade nacional. Entre esses, cumpre salientar aquele relativo ao fomento do canto coral no Brasil, considerado como sendo de grande significado para a formação do sentido comunitário no Brasil. Procurava-se, para isso, considerando o meio cultural predominantemente católico do Brasil, salientar que a prática do canto comunitário seria mais antiga do que a Reformação: ela não seria uma expressão do Protestantismo, mas ao contrário, os protestantes teriam permanecido fiéis pelo emprêgo extraordinário do canto coral nas igrejas evangélicas: "Os coraes, ainda que promessas, são sempre uma justa causa de apoio // Ainda agora, conhecido professor do Collegio São Luiz, me explanava as bemfeitorias da actual reforma do ensino secundario e dizia que a principal dessas bemfeitorias era o ter incluso o canto coral no ensino. // Meu amigo é coincidente com o meu velho pensamento, tantas vezes externado por mim aos meus amigos em notas que mandei a Oscar Lorenzo Fernandes e que li ao maestro Arthur Pereira. Não obstante, é velha essa bemfeitoria no povo allemão. // Nos mais preciosos documentos iconographicos vamos encontrar o nome de Luthero que fez o celebérrimo coral "Ein feste burg ist unser Got", de Oziander, o de Fink, o de Raw, o de Mahu', o de Buxethude, o de Bach. Asseveram os commentadores da historia da musica que o padre jesuita Concennius não errára affirmando que o povo allemão fôra amordaçado pela orthodoxia protestante por causa dos coraes do culto que já eram tradicionaes nesta admiravel constituição etthnica. Os córos eram portanto integrantes desse povo desde que os Meistersinger socializaram os seus cantos. (...)" ("F.M.A., Grande povo", Diário da Noite, 24 de julho de 1931, cit. A. A. Bispo, Martin Braunwieser: (...) Contribuição ao estudo da influência austríaca e alemã na Música do Brasil no século XX, Roma/Colonia 1991, 143).
Tais considerações demonstram que não apenas Buxtehude, mas sim a prática da "música antiga" e a do canto coral no Brasil são expressões a serem inseridas em determinados contextos histórico-culturais. Constituem objeto dos estudos interculturais e deles necessitam para que não sejam praticadas e propagadas de forma pouco refletida.
Os estudos terão prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).