Doc. N° 2204
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
107 - 2007/3
Tópicos Multilaterais Alemanha-Brasil
Hermenêutica bíblica e resgate de sentidos de imagens em contextos reformados: "O moinho sacramental"
Tribsees: Igreja de São Tomás Circuito de estudos euro-brasileiros de Mecklenburg e Pomerânia Ocidental. A.B.E.
A.A.Bispo
Dando continuidade a seus trabalhos relativos à Hermenêutica Bíblica e seu significado nas análises da ordenação simbólica da cultura, em particular nas suas relações com a música (veja o número anterior desta revista), e relacionando-os com os estudos pomerano-brasileiros em andamento, a A.B.E. realizou, em maio de 2007, uma visita à cidade de Tribsees.
Pequena cidade da Pomerânia ocidental
A pequena cidade de Tribsees na Pomerânia Ocidental, no interior da região litorânea do Mar Báltico, a 30 km de distância da cidade de Stralsund, nos limites com a região de Mecklenburg, situa-se numa pequena colina às margens do rio Trebel.
O primeiro documento histórico da comunidade data de 1136. Foi elevada à categoria de cidade na jurisdição de Lübeck em 1285. Em 1702, um incêndio destruiu a maior parte de suas casas. Entretanto, a configuração urbana da Idade Média mantém-se praticamente inalterada. Esta se caracteriza por uma planta oval, cortada pela rua principal, de apenas um quilômetro de comprimento, que atravessa dois portais góticos de tijolos de cerâmica construídos no antigo muro, a leste e a oeste: o portal da pedra e o portal do moinho. Grande parte de suas casas é de tijolos de cerâmica vermelha com estrutura de madeira.
Tribsees possui na sua igreja de S. Tomás um dos principais exemplos de arquitetura gótica "vermelha" da região. Trata-se de uma construção em forma de sala, com três naves e coro poligonal. A fachada ocidental culmina com uma alta torre de base quadrada, marco da cidade. No seu interior, a igreja possui um rico mobiliário de madeira, com galeria e frisas para as principais personalidades locais, perante o púlpito, e um órgão de considerável valor cultural e organológico do século XIX. Trata-se de um órgão de K. A. Buchholz, de Berlim, que soou pela primeira vez em 1831. Foi restaurado recentemente (1995/6), após a união das duas Alemanhas.
Altar Moinho e Moinho Sacramental
A principal obra de arte no interior da igreja é o altar em madeira esculpida, policromada, do século XV, proveniente de artesãos de Rostock. Trata-se do Altar-Moinho de Tribsees, único na repreentação escultural de um Sacramento-Moinho. Esse altar apresenta medidas consideráveis: 5,50 metros de largura, 2,12 metros de altura. O altar sobreviveu à época das destruições iconoclastas, ao incêndio do século XVIII e às guerras.
No centro do relicário central encontra-se o Sacramento-Moinho. Os quatro evangelistas despejam os grãos no funil, tirando-os de sacos de ouro. No cálice, os quatro doutores da igreja recebem o Menino-Deus. Os apóstolos canalizam os quatro rios do paraíso para o moinho. Acima dos evangelistas, Deus-Pai abençoa-os com a mão direita e traz o globo com a cruz na esquerda. Junto a êle, podem ser vistos os anjos, o sol e a lua, personificados, e Adão e Eva, à esquerda, na bôca do inferno. À direita, vê-se representada a Anunciação a Maria; na parte inferior do relicário a comunhão de religiosos ao lado da comunhão dos leigos.
Problemas de compreensão
Essa representação simbólica do Altar de Tribsees é em geral incompreensível para os observadores com poucas noções da Bíblia ou que partem apenas do seu sentido literal. Numa comunidade evangélica, como a de Tribsees. a representação surge também como um resquício de um passado católico, medieval, sobretudo de interesse histórico-cultural. Foi visto como prova de uma concepção superada, singular do mundo e da Sagrada Escritura.
O primeiro caminho que se procura para a compreensão dessa representação é, em geral, superficial. Parte-se, por exemplo, da importância dos grãos e do cereal na vida agrícola e comercial da comunidade na Idade Média.
Refletindo-se mais profundamente, e levando-se em consideração a hermenêutica bíblica histórica, percebe-se que o Altar de Tribsees representa uma composição admirável de alegorias e parábolas, uma verdadeira lição visual de simbologia para os modestos habitantes da localidade na Idade Média.
Para os fiéis de hoje, a única imagem mais compreensível é a do grão, conhecida das leituras dos evangelhos. Tem-se em mente a interpretação freqüentemente elucidada da imagem do grão que cai na terra, morre, dele nascendo uma nova planta que trará novos grãos. A imagem é assim compreendida, de forma em geral vaga, no sentido de alegoria da Encarnação e da Ressurreição. A coerência da representação geral, porém, permanece obscura.
Pressuposto fundamental para a compreensão da composição é, naturalmente, a natureza antitipológica da cultura cristã, de modo que a análise de referências ao Velho e ao Novo Testamento devem partir sempre do relacionamento entre Tipos e Anti-Tipos. No Altar, o Velho e o Novo Testamento estão representados pelas pedras do moinho. São essas pedras que trituram os grãos despejados pelos evangelistas. Essa relação tipológica está claramente representada na contraposição de Eva/Maria, dos quatro rios do Paraíso e dos quatro Evangelhos e evangelistas.
As discussões foram desenvolvidas à luz de similares imagens constatadas em expressões culturais tradicionais do Brasil. Para as diferentes alegorias foram oferecidos exemplos da linguagem visual de tradições religiosas brasileiras. Ao mesmo tempo, salientou-se mais uma vez os êrros de interpretação que cometem estudiosos - sobretudo daqueles de cultos de cunho místico e sincretístico - por falta evidente de conhecimentos da hermenêutica histórica cristã.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).