Doc. N° 2205

Revista Brasil-Europa

Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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107 - 2007/3


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Alemanha-Brasil

Natureza como fundamento de reflexões filosófico-culturais e filosofia intercultural
Harz e Caparaó: relendo o "O Granito" de J. W. Goethe

Brocken/Harz - Caparaó/Espírito Santo. Trabalhos da A.B.E. pelo Ano Goethe 2007

A.A.Bispo

Caparao
Parque do Caparaó, Espírito Santo
Harz
Parque Nacional Harz. Schierke am Brocken
No âmbito dos trabalhos em desenvolvimento por motivo da passagem dos 175 anos da morte de J. W. Goethe, a A.B.E. retomou debates sobre as relações entre a filosofia e os estudos interculturais desenvolvidos sobretudo em seminário especificamente dedicado ao tema em 2005. Nessa discussão, trata-se não apenas da necessária consideração da tradição filosófica de culturas não-européias no estudo da filosofia, superando-se uma orientação eurocêntrica nas reflexões. Trata-se, sobretudo, da questão da possibilidade de uma filosofia comparada, ou melhor, de uma filosofia intercultural, proposta defendida por vários estudiosos. No âmbito dos trabalhos da A.B.E., realizados sobretudo sob a perspectiva euro-brasileira, discutiu-se nesse contexto os problemas teóricos do relativismo na reflexão filosófica que possam resultar dessa proposta. A filosofia, se considerada como elemento ou expressão de uma cultura, perde o caráter de disciplina-guia que ocupou tradicionalmente no sistema das ciências humanas, passando esse papel à ciência da cultura. Entretanto, considerando-se as dificuldades de conceituação do termo cultura e as suas diferentes acepções, debateu-se a propriedade, a conveniência e até mesmo a lógica da proposta. Nesse debate, em aberto, levantou-se a necessidade de uma modificação da proposta de uma filosofia intercultural através de uma reconscientização dos elos da reflexão filosófica com a natureza. Numa época em que se generaliza a certeza da crescente destruição do planeta pela ação do homem, e portanto pelas suas "culturas", surge como necessário não apenas analisar as relações entre os conceitos de cultura e natureza, reorientando teóricamente os estudos culturais, como também repensar as relações entre a natureza e as reflexões filosóficas na sua história e no presente. Com esse direcionamento das atenções à natureza, ultrapassar-se-ia o problema de uma relativização cultural da filosofia, ou melhor, ao lado do aspecto da diversidade de edifícios de pensamento ter-se-ia novamente o momento da unidade de fundamentos. Tem-se salientado, aqui, que não se trataria necessariamente de uma unidade em dimensão ontológica ou metafísica na tradição do pensamento da Antiguidade e do Ocidente, tradição essa criticada por diversos pensadores das últimas décadas. Tratar-se-ia primeiramente de fundamentos no sentido de pontos de partida das reflexões.

As questões a serem aqui debatidas, aqui apenas delineadas, fazem parte do escopo do programa "Cultura, Natureza e Música" da A.B.E. No âmbito desse projeto, tem-se desenvolvido estudos referentes à relação entre Natureza e Cultura e/ou Natureza e Filosofia em diferentes pensadores.

Caparaó e Harz

Por motivo do Ano Goethe 2007, procurou-se tratar desse tema a partir do pensamento do grande pensador e em situações comparáveis de contacto com a natureza em diferentes contextos culturais.

O início das reflexões deu-se com uma viagem realizada em janeiro de 2007 à serra de Caparaó, Espírito Santo, com uma excursão ao Pico da Bandeira. As informações obtidas por aqueles que muito lutaram pela proteção desse parque natural, o seu histórico, as circunstâncias atuais, e sobretudo as impressões obtidas com a natureza do local ofereceram os pressupostos para as reflexões encetadas em maio de 2007 na região do Harz alemão, visitadas por Goethe pela primeira vez em 1777.

A estadia de Goethe no Harz já foi e vem sendo estudada, sob diversos aspectos, pela literatura específica. No caso, porém, escolheu-se um escrito especial, por considerar-se que demonstra mais diretamente o vínculo entre a contemplação da natureza e o desenvolvimento de idéias de significado filosófico e cultural, ainda que por associações e pelo uso de metáforas.

Além do mais, esse escrito abre caminhos para a compreensão de desenvolvimentos arquitetônicos no âmbito de determinadas correntes da história das ciências do espírito, também de influência no Brasil, e questionados durante uma visita da A.B.E. ao Goetheanum de Dornach, Suíça.

Reflexões sobre "O Granito"

O texto de título Sobre o Granito se compôe de dois fragmentos póstumos. O primeiro deles foi escrito em janeiro de 1784, o segundo, em data desconhecida. Goethe tinha a intencão de, numa grande obra cosmogônica, tratar da natureza como a criadora dos fenômenos da rica diversidade natural. Dessa obra, apenas restaram alguns trechos.

Goethe escreveu este texto logo após o seu retorno do Harz, onde tinha subido ao monte Brocken no dia 21 de setembro de 1783. O passeio pelo Harz levara-o a especulações relativas a antigas camadas de terreno do novo mundo.

Do coração humano ao granito: da contemplação do instável à segurança dos fundamentos

O próprio Goethe assinalou a admiração que poderia despertar o seu repentino entusiasmo pelo granito. Até então teria ele se dedicado à consideração e descrição do coração humano, que seria a parte mais nova, mais facetada, mais movimentada, mutável e abalável da Criação. Agora, teria êle passado à contemplação do mais antigo, sólido, profundo e inabalável filho da natureza. Todas as coisas naturais, porém, encontrar-se-iam vinculadas entre si e o espírito de pesquisa não desejaria abster-se de nada que fosse alcançável. Êle, que teria sofrido e sofreria com as mudanças dos sentidos humanos, com os movimentos rápidos dos mesmo em si e nos outros, experimentaria agora a tranqüilidade solene na proximidade silenciosa e muda daquela natureza grandiosa e que falava em voz baixa.

Com essa consciência, aproximar-se-ia daqueles monumentos mais antigos, mais dignos da perpetuidade. Sentado num cume elevado, contemplando um grande panorama, dizia a si próprio: aqui, você descansa sobre um fundamento que chega até as profundezas da terra, não numa nova camada, não sobre restos amontoados, conjugados por aluviões; sob os seus pés acham-se os chãos sólidos do mundo original, você não anda sobre um túmulo como nos vales, embora frutíferos e belos; estes cumes não geraram nada de vivo e não devoraram nada de vivo, êles se originaram antes de toda a vida e estão acima de toda a vida. Naqueles momentos, nos quais as forças de atração e movimentadoras da Terra agiam por assim dizer diretamente, e nos quais as influências do céu pairariam mais proximamente dele, o homem sentir-se-ia levado a contemplações mais elevadas da Natureza, e como o Espírito do homem tudo vivifica, assim sentiria em si uma parábola viva, a cuja grandiosidade não poderia resistir. Tão só, diria para si, enquanto olhava para baixo do cume totalmente liso, tão só se sente um homem que deseja abrir as suas almas aos mais antigos, primordiais e profundos sentimentos da Verdade.

O granito como metáfora e a serviço da conscientização da "essência das essências"

Goethe dizia a si próprio: aqui, sobre o altar mais antigo, eterno, construído diretamente sobre a profundidade da Criação, oferecer-se-ia um sacrifício à essência de todas as essências. Êle sentia os começos primordiais, os mais sólidos da nossa existência; êle contemplava o mundo, os seus vales mais ou menos profundos e seus campos produtivos; a sua alma se elevava acima de si própria e sobre todo o mais, sentindo-se atraída pelo céu próximo. Logo, porém, o sol ardente causaria sêde e fome, chamando o observador de novo às necessidades humanas. Ele contemplava ao redor os vales, êle percebia como os habitantes daquelas planuras produtivas, cheias de fontes, que edificaram as suas moradias felizes sobre "os restos e as ruínas de êrros e opiniões", tiravam o pó de seus antepassados e satisfaziam tranqüilamente as poucas necessidades da sua época.

Comparações com a paisagem do conhecimento humano

Preparada por esses pensamentos, a alma penetraria nos séculos passados, tornando presentes todas as experiências de observadores cuidadosos, todas as suposições de espíritos movidos por fogo interno. Esse abismo, dizia êle a si próprio, elevara-se ainda mais às nuvens quando fora uma ilha cercada pelo mar nas antigas águas; a seu redor soprara o Espírito que frutificou as ondas, e, quando no seu amplo seio as montanhas mais altas se formaram dos restos da montanha primordial e das ruínas, constituiram-se os montes tardios e mais distantes. Já se iniciara o musgue a se reproduzir, já se movimentavam os habitantes do mar, a água se abaixava, os altos montes se tornavam verdes, por todo o lugar a vida começava a se agitar. Logo, porém, essa vida se confrontara com novas cenas de destruição. Ao longe elevavam-se vulcões; eles ameaçavam levar o mundo a seu fim; os fundamentos porém permaneciam inabaláveis, sobre os quais descansava em segurança, enquanto que os habitantes das costas longínquas e das ilhas eram sepultados sob a terra infiel. Retornando dessas divagações, observou as rochas em si, cuja presença elevou a sua alma e a tornou segura. Ele contemplou a massa de contornos diversos elevando-se às alturas, edificada umas sobre as outras, atiradas como montes disformes, e quase que teria exclamado: aqui não se encontra nada na sua antiga situação, tudo é ruínas, desordem e destruição.

Essa mesma opinião o homem teria quando, retornando dessa contemplação viva das montanhas à sala de estudos, abrisse os livros de nossos antepassados. Como é que se poderia ver coerência em todas as contradições e nelas encontrar uma diretriz para futuras observações?

Distinções entre pedras na metáfora do conhecimento

Essas observações aparentemente vagas era o que Goethe podia oferecer no momento. Como salientou, se não pudesse ser totalmente feliz nesse intuito, os seus esforços dariam a outros possibilidades de reflexões mais profundas. Em todas as observações mesmo os êrros seriam úteis, pois chamariam a atenção e dariam a oportunidade para o exercício mental a outros.Aqui, porém, fazia uma advertência, sobretudo para os estrangeiros: a da necessidade de se aprender a distinguir bem entre os tipos de pedras. Os italianos confundiriam a lava com o granito de pequenos núcleos, os franceses o confundiriam com o gneis, que chamavam de granito de segunda classe, e até mesmo muitos alemães, embora fossem tão conscienciosos nesses assuntos, teriam confundido o granito com outros tipos de pedras e minerais.

Como queria tratar das situações rochosas na ordem em que seriam encontradas umas sobre as outras e umas ao lado das outras, seria natural que se começasse com o granito. Este seria o tipo mais profundo do solo; todos os demais se encontrariam sobre êle e a seu lado; êle não se encontraria acima de nenhum outro; se não fosse o cerne da terra, ao menos seria a camada mais profunda até então descoberta.

Direcionamento do pensamento às origens da matéria

Segundo Goethe, esse tipo singular de solo rochoso se diferenciaria dos outros pelo fato de não ser simples, mas sim formado de partes identificáveis visualmente; essas partes não estariam unidas entre si por um terceiro meio, mas sim se encontravam ao lado uma da outra, segurando-se mutuamente. Observando-se precisamente essas partes, parecia que aqui não se tratava daquilo que se espera de partes de um todo, elas não pareciam estar combinadas ou colocadas uma ao lado da outra, mas sim originadas juntamente com o todo. O granito seria originado por uma cristalização viva, comprensada na sua origem. Daqui poder-se-ia tirar conclusões relativas à origem da matéria da qual ter-se-ia originado.

Como o homem apenas percebe fenômenos que se originam de grandes movimentos e violências, assim teria a tendência de acreditar que a Natureza usaria de meios violentos para criar grandes coisas, embora pudesse diariamente aprender o contrário. Assim, os poetas criaram a imagem de um Caos cheio de lutas e convulsões. Criou-se a idéia de que massas gigantescas que, despregando-se do corpo do sol, tivessem sido arremessadas no infinito, dando origem, assim, ao nosso sistema solar.

Como Goethe finaliza o seu texto, sentia que o seu espírito não possuia asas suficientemente potentes para elevá-lo até os inícios originais. Ele se encontrava sobre o granito e apenas levantava a questão se, da sua observação, podia ou não tirar alguma lição a respeito da matéria da qual ter-se-ia originado.

Aspectos das reflexões

Nos estudos promovidos pela A.B.E., este texto de Goethe foi considerado sob diferentes aspectos. Entretanto, deixou-se de lado, de início, a questão da validade geológica ou mineralógica de suas observações segundo os conhecimentos do presente. O texto foi sobretudo estudado nas suas dimensões metafóricas de interesse filosófico-cultural. Entre os pontos tratados, salientou-se a questão do conceito e a problemática de fundamentos e de fundamentação de edifícios conceituais, diferenciando a discussão de acordo com as sugestões que o texto oferece. Outro ponto tratado levou a vincular essas reflexões com o seminário então em desenvolvimento dedicado a estudos da mitologia e do sincretismo na Antiguidade e seu significado para os estudos culturais no Brasil. Tratou-se, aqui, em sessões especiais, de conceitos da matéria na filosofia da natureza e de sua permanência em expressões culturais. Uma particular atenção foi dada neste contexto à imagem da Terra-Mãe e da Mater Magna nas suas diversas expressões culturais e à sua presença na cultura brasileira.

As reflexões deverão ter continuidade.

 

Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).