Doc. N° 2214
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
107 - 2007/3
Temas em debate
Panamericanismo e Europa História cultural em contextos internacionais e história diplomática
Pelos 100 anos da Terceira Conferência Panamericana no Rio de Janeiro (1906)
Antonio Alexandre Bispo
Antigo Palácio Monroe, Rio de Janeiro A Academia Brasil-Europa desenvolve, entre os seus programas permanentes, uma série de estudos e eventos dedicados às relações e à interdependência de processos culturais interamericanos e transatlânticos. Vários aspectos dos trabalhos realizados e em andamento já foram tratados por esta revista em números anteriores. A concepção fundamental que orienta os estudos diz respeito à necessidade de uma consideração conjunta, não isolada, de processos culturais que se desenrolam dentro do continente com aqueles que dizem respeito aos elos recíprocos com a Europa. Segundo a orientação básica desse programa, o Interamericanismo não pode ser considerado, nos estudos culturais, independentemente dos estudos das relações culturais dos países da Américas com a Europa. Por outro lado, também as relações transatlânticas, euro-americanas ou euro-afro-americanas na cultura não devem ser consideradas somente sob perspectivas bilaterais entre os países do continente ou deles com o Velho Mundo. Deve-se dar a atenção devida à inserção dessas relações em processos mais amplos, numa dinâmica cultural que também transcende as fronteiras regionais e nacionais dentro dos continentes.
Nesse intento, a A.B.E. procura superar determinadas delimitações de perspectivas, observáveis sobretudo em alguns programas transatlânticos, atualizando pontos de vista e aportes teóricos para o tratamento adequado de questões hoje prementes, tais como as relativas às migrações latino-americanas e aos processos culturais por elas desencadeados nos EUA e na Europa.
Esse programa da A.B.E., porém, apesar de dirigido sobretudo à análise de contextos culturais da atualidade, pode e deve partir de seus pressupostos históricos, considerando um já longo e complexo processo histórico de ideais e de ações na história da própria entidade e fora dela. Para o desenvolvimento refletido dos trabalhos, torna-se necessário, assim, que se considere diferenciadamente o pensamento e as atividades de representantes de concepções afins no passado, analisando-os de forma contextualizada. Uma atualização teórica de perspectivas apenas torna-se possível a partir do conhecimento daquilo que já foi proposto, discutido e realizado.
Pela sua natureza, o complexto temático em questão dirige as atenções à história diplomática. Se, em geral, coube e cabe à diplomacia a representação dos países no Exterior e em organismos internacionais, cabe a uma ciência da cultura em contextos globais o estudo da história diplomática relativamente às idéias defendidas, às ações desenvolvidas e à influência exercida na difusão cultural, na criação de imagens e no fomento. direcionamento e teorização de relações interculturais.
O Brasil, em particular, possui uma extraordinária tradição de pensamento de relevância para estudos históricos de concepções culturais das relações recíprocas internas entre os países do continente e desses com a Europa. Um marco de excepcional importância dessa história foi a Terceira Conferência Panamericana, realizada no Rio de Janeiro, em 1906.
Por motivo da passagem do centenário desse evento, em 2006, e daquele da publicação de seus resultados, em 2007, pareceu à A.B.E. ser oportuno recordar e discutir os pressupostos, os seus objetivos, os seus resultados e, sobretudo, analisá-los com relação aos temas debatidos no presente, procurando contextualizar e diferenciar o conceito de Panamericanismo. Tornando consciente a historicidade do conceito e de seu desenvolvimento, procura-se contribuir teórico-culturalmente para atualizações conceituais, distância com relação a correntes que talvez tenham sido superadas e abertura de novas perspectivas para as reflexões e ações do futuro.
Estudos de pressupostos
A consideração do Panamericanismo e de suas relações com a Europa, tema de central importância na Terceira Conferência Panamericana, não pode ser realizada sem estudos de iniciativas anteriores. Como ponto de partida das reflexões escolheu-se o contexto da emancipação política dos países americanos a partir de fins do século XVIII e, sobretudo, das primeiras décadas do século XIX. Considerou-se questões da independência de países latino-americanos nas suas relações com acontecimentos histórico-políticos europeus e com os Estados Unidos, procurando inserir os ideais de construção de vínculos e federações entre as ex-colonias dentro de contextos mais amplos, dentro dos quais a situação criada pela Santa Aliança na Europa surge como uma das possibilidades para que se compreenda melhor a doutrina de Monroe. Nessas constelações, as concepções de um Henry Clay e, sobretudo, os ideais e as ações de Simon Bolivar podem ser estudadas com mais profundidade.
Entre as etapas de um desenvolvimento histórico na América Latina que, em geral, se consideram em estudos dessa natureza, salientam-se, entre outras, as convocações (1822, 1824) e a realização de um congresso no Panamá (1826), assim como os tratos entre a Colombia com o México, Argentina e Chile (1822/23). o congresso em Lima (1847), o contrato continental entre o Chile, Peru e Equador (1856), assim como outros contratos entre países latino-americanos (1858), o congresso de Lima (1864) e o trato de Bogotá (1880). Sob o aspecto da ação desenvolvida pelos EUA, sobretudo em fins do século XIX, tem-se considerado o pensamento e as iniciativas de determinadas personalidades, entre outros de James G. Blaines no sentido de convocação um congresso panamericano (1882), a formação de uma comissão de estudos (1884) e a autorização do Congresso dos EUA para que o presidente norte-americano convocasse um congresso (1889).
Com relação à primeira conferência panamericana (1889-1890), do ponto de vista dos estudos científico-culturais, cumpre lembrar que, sob a sugestão da Colombia, formou-se uma Biblioteca Memorial em Washington destinada a colecionar toda a literatura relacionada com as Américas, biblioteca essa inaugurada por ocasião das comemorações dos 400 anos do Descobrimento do continente.
A segunda conferência panamericana (1901-1902), após tentativas do México em convocá-la, foi precedida por acontecimentos políticos que a dificultaram (por exemplo o conflito americano-espanhol) e por outras iniciativas, também de relevância científica e cultural. Salienta-se, aqui, o II° congresso científico latino-americano realizado no Uruguai, em 1901. Entre os resultados da segunda conferência, menciona-se, do ponto de vista dos estudos histórico-culturais, a iniciativa de formação de uma comissão internacional arqueológica para a pesquisa e conservação de monumentos e fundos da pré-história americana, assim como para a edificação de um museu internacional americano como centro da pesquisas da Antiguidade das Américas, de particular significado foram também as propostas e iniciativas relacionadas com o vir-a-ser do intercâmbio de publicações entre as nações do continente e o da realização de um congresso geográfico no Rio de Janeiro, proposta esta assinada pela Argentina, Bolívia, Colombia, Equador, Paraguai e Uruguai.
Um dos objetivos das reflexões atuais reside no reexame do quadro histórico assim traçado, detectando e procurando superar possíveis particularidades de perspectivas. Na consideração da literatura que se ocupa com o estudo desse desenvolvimento histórico, sente-se, por exemplo, a falta de uma maior atenção às concepções e às atividades dos representantes do Brasil do período do Império. Estudos mais pormenorizados a respeito dos grandes vultos da diplomacia e de personalidades da história cultural do século XIX surgem como de necessidade para a superação de uma possível unilateralidade de visões e de tentativas de reconstrução histórica. O extraordinário papel de diplomatas brasileiros na Terceira Conferência não pode ser entendido sem a consideração de correntes de pensamento e de ações do passado brasileiro, uma vez que entre êles se salientaram homens formados na era de Pedro II° e a ela vinculados. Não se trata aqui apenas de questão de justiça histórica para com nomes esquecidos do passado. Sobretudo para os estudos dos vínculos do continente com a Europa, esses exames prometem resultados que aprofundarão os conhecimentos, abrirão novas perspectivas de análises e, possivelmente, colocarão sob nova luz os debates relativos ao Panamericanismo nos estudos culturais.
A Terceira Conferência Panamericana no Rio de Janeiro
A terceira conferência panamericana foi inaugurada no dia 23 de julho de 1906. 19 nações estiveram nela representadas: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colombia, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equado, Guatemala, Honduras, México, Nicaragua, Panamá, Paraguai, Peru, El Salvador e Uruguai. Ausentes estiveram o Haiti e a Venezuela. A realização desse evento na antiga capital do Brasil foi vista pelo próprio país como marco histórico de um desenvolvimento que deveria ser contínuo, como uma etape de um processo voltado ao futuro. Tratava-se sobretudo de criação de uma atmosfera, de reflexões conjuntas em ambiente propício, de demonstração de convívio e de respeito, de estabelecimento de imagens e de caminhos para procedimentos posteriores, ou seja de ações de cunho acentuadamente simbólico e cultural. Esse caráter da conferência, o prestígio que a ela se procurou dar, a importância que nela os seus organizadores reconheciam, manifestavam-se nos aspectos exteriores que a marcaram: no dia da solenidade da abertura, os edifícios principais e as avenidas do Rio de Janeiro encontravam-se iluminados feericamente e as entradas do local da conferência flanqueadas por guarda de honra. Esse significado que o Brasil emprestou ao evento foi até mesmo concretizado pelo extraordinário fato da edificação do monumental palácio construído especialmente para sedia-lo e que, por décadas, marcaria a imagem da cidade do Rio de Janeiro: o Palácio Monroe.
Barão do Rio Branco: Harmonização de interesses e o pensamento a serviço do desenvolvimento comum
O Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores, proferiu a conferência inaugural. Transmitiu as saudações do govêrno do Brasil, do seu povo, e agradeceu à honra de o Brasil ter sido escolhido como sede da conferência. Esperava-se, segundo o Ministro, que a conferência levasse a resultados que, confirmados por medidas práticas, permitissem antever uma época de real confraternização internacional. Segundo êle, essa esperança poderia fundamentar-se num espírito do tempo: sentia-se, na época, uma tendência geral do pensamento em direção a uma harmonização de interesses contrários, ou aparentemente opostos, assim como também o desejo de se colocar esse pensamento a serviço do ideal de um progresso geral. A singularidade das conferências panamericanas residiria, para êle, no seu cunho fundamentalmente pacífico. Em tempos passados, os assim-chamados congressos de paz ter-se-iam reunido para a regulamentação dos resultados de guerras, onde os vencedores ditavam a sua vontade em nome de uma futura amizade com os vencidos. Os congressos panamericanos, porém, eram convocados em tempos de paz, sem coerções, com claras intenções de traçar caminhos para a ação pacífica das nações. O direito dos fracos seriam tão considerados como o dos fortes. Eles dariam forma e prestígio ao Direito Internacional que, cada vez mais respeitado, representava um grande progresso na história da civilização.
Os congressos teriam a sua origem na harmonização da opinião pública, alcançada pela divulgação da cultura espiritual, pela importância crescente dos interesses econômicos e pela propagação de sentimentos pela Humanidade e pela concórdia. Em lugar de sessões duras e cruéis, nas quais um dos partidos implorava por justiça ou magnânimidade, e o outro impunha a lei de sua própria vontade, ter-se-iam, agora, debates tranqüilos e amigáveis, nos quais todos os partidos contribuiriam com as suas concepções relativas a questões práticas de interesse geral. Neles, concessões representariam verdadeiras conquistas da razão, atos de compreensão e harmonização, resultantes de interesses recíprocos. Neles apenas se escutariam palavras amigas, características da cortesia sincera que deve existir no tratamento entre iguais. Nesses encontros diplomáticos, nos quais não haveria nem vencidos nem vencedores, a dignidade nacional se fortaleceria. A idéia de que um grupo humano apenas se constituiria em oposição a um outro seria um resquício lastimável de um passado. Tinha-se acreditado que o pessimismo seria a única lição a ser tirada da História. A convocação da conferência poderia dar margens a suspeitas de que se estaria criando uma liga internacional contra interesses daqueles que ali não se encontravam representados. Seria necessário, portanto, declarar decididamente que todos os interesses deveriam vir a ser respeitados. Com relação à discussão de assuntos políticos e comerciais, não se pretendia agir contra ninguém; a única tarefa seria criar elos mais estreitos entre as nações americanas e promover o bem-estar e fomentar um progresso mais rápido. Esses esforços trariam resultados positivos também para a Europa e para o resto do mundo.
Os países americanos e a Europa
Como nações jovens, os países americanos não poderiam esquecer, segundo o Barão do Rio Branco, o quanto deviam àqueles que haviam fornecido o capital com o qual participariam na competição internacional. Os territórios imensos, em parte não conhecidos e povoados, e a certeza de que se possuiria meios para uma população dez ou vinte vezes maior, deveriam aconselhar a que se fortalecesse cada vez mais as relações amigáveis e se procurasse desenvolver os interesses comerciais com aquele mundo inesgotável de homens e fonte abundante de energias produtivas que a Europa representaria. Os países americanos tinham vindo da Europa; a Europa fora o seu mestre, de lá tirariam contínuos apoios e incentivos, a luz da ciência, os produtos da indústria e as doutrinas úteis ao progresso. O que poderiam dar em contrapartida a essas dádivas morais e materiais, através do crescimento e progresso, seria a contribuição à abertura de ainda maiores possibilidades de intercâmbio. A essa saudação respondeu o representante de Costa Rica, Ascension Esquivel, o qual agradeceu em nome dos congressistas, manifestando o apoio geral às expressões de Rio Branco relativas à Europa.
J.A. Nabuco de Araújo, Elihu Root e as concepções do Panamericanismo
Na primeira sessão do Congresso, elegeu-se o seu presidente, sendo escolhido Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo, então embaixador brasileiro em Washington. Como presidentes de honra, foram eleitos Elihu Root, Secretário de Estado dos Estados Unidos, e o Barão de Rio Branco. O secretariado geral foi confiado a Joaquim Francisco de Assis Brasil. Nas sessões de 24 a 26 de julho, foram eleitas as comissões. Elihu Root, Secretário de Estado dos EUA, foi recebido em sessão solene no dia 31 de julho. Root foi saudado com discurso pelo presidente da conferência, respondendo com um longo pronunciamento. Ambos os discursos foram de grande relevância política, uma vez que trataram das relações entre o Norte e o Sul do continente americano e procuraram estabelecer os fundamentos do Panamericanismo. A presença do representante pela política externa dos EUA na capital do maior país da América do Sul, perante representantes da maioria dos países americanos, foi considerada como um ato de extraordinário significado histórico. Os EUA, por seu lado, viram a recepção de seu enviado como um ato de simpatia e de sentimentos comuns por parte dos países das Américas do Sul e Central.
Os Estados Unidos e a Europa no pensamento de Nabuco de Araújo
Nabuco de Araújo salientou, na sua saudação, o papel que Elihu Roots desempenhou no vir-a-ser da terceira conferência pan-americana e referiu-se às relações entre o Panamericanismo e a Europa. Os encontros periódicos, exclusivos de nações americanas, demonstrava que a América formaria um sistema político separado da Europa, uma constelação com o seu próprio curso. Entretanto, no esforço de criação de uma cultura comum e de uma zona neutra de paz no continente, trabalhava para o bem de todo o mundo. Desse modo, ofereceria à população, ao bem-estar e ao gênio da Europa um campo de ações amplo e seguro nessa parte do globo; esse não seria o caso se fosse fragmentado ou se tomasse partido de um ou de outro lado que dividia o Velho Mundo. Elihu Root salientou primeiramente os elos comuns que uniam as repúblicas americanas no desenvolvimento da forma de govêrno democrática. Considerou os progressos ocorridos nesse sentido na América Latina, constatando que o tempo do combates com os nativos, dos conflitos raciais e das guerras civís estaria superado. Govêrnos estáveis e fortes teriam surgido, a soberania da lei teria substituído a soberania de homens. A propriedade estaria sendo defendida, os frutos do espírito de empreendimento estariam seguros e a liberdade individual respeitada. O progresso não seria igual por toda a parte, mas estaria sempre presente. O movimento na direção certa seria geral e o futuro estaria iluminado pela esperança. Esses resultados não teriam sido alcançados pelo isolamento nacional, uma vez que nenhum nação poderia viver por si só. A grandeza de cada nação representaria uma parcela no desenvolvimento da espécie humana. Poderia haver líderes, mas nenhuma nação poderia estar demasiadamente à frente do desenvolvimento da humanidade e nenhuma nação poderia ficar demasiadamente para trás. Com nações ocorreria o mesmo que com os indivíduos. Sociedade, intercâmbio, controle do egoísmo pela influência do julgamento de outros, ampliação de conceitos pelas mesmas experiências e mesmos pensamentos, aceitação de normas morais de uma comunidade, cuja boa opinião emprestaria sanção às regras de comportamento correto - essas seriam as condições de crescimento da cultura. Um povo, cujo sentido não correspondesse às lições do progresso do mundo, cuja alma não fosse arrebatada pelos esforços e pelas conquistas do mundo no sentido da liberdade e justiça ficaria necessariamente para trás no desenvolvimento contínuo da cultura. O objetivo da conferência, aos olhos dos EUA, segundo E. Root, estaria no fomento do intercâmbio entre as repúblicas americanas que teriam a mesma tarefa, que estariam se movendo em direção aos mesmos objetivos e que confessariam os mesmos princípios básicos. Não existiria nenhum país que não pudesse ser útil aos demais e que não pudesse tirar proveito desse convívio e dessa reciprocidade, nenhum que não pudesse apenas ganhar do progresso, da paz e da felicidade de todos. Segundo o programa da conferência, esta não deveria realizar nenhum acontecimento específico, grandioso, impressionante. Ela não deveria tratar de questões políticas, nem tentar superar conflitos ou fazer julgamentos relativamente ao comportamento de nações. Ela deveria tecer reflexões sobre muitos fatos que oferecessem possibilidades de superação de obstáculos no relacionamento. Ela deveria tratar de problemas que possibilitassem o conhecimento recíproco e que colaborassem à superação de desconfiança e de mal-compreendidos que levariam a pré-julgamentos, fonte de todos o conflitos.
Importância do ethos e do método: o espírito do evento
Na sessão de encerramento, no dia 26 de agosto, Joaquim Nabuco de Araújo pronunciou o discurso de despedida, tecendo considerações a respeito do trabalho desenvolvido. O observador que analisasse os resultados à luz do futuro, reconhecia necessariamente o grande manancial de idéias e resoluções que ali se criara, sobretudo, porém, a manifestacão de um novo espírito, de cujo desenvolvimento dependeria a utilidade real dos congressos panamericanos e do trabalho por esses realizados para a solidariedade americana. A impressão geral que todos levariam seria a da harmonia, a da concordância de sentimentos. Os debates haviam-se concentrado no método, no caminho para o alcance do objetivo desejado e não no objetivo em si. A forma tinha sido particularmente discutida. Por essa razão, poder-se-ia afirmar que o espírito dessa terceira conferência fora muito promissor com relação ao desenvolvimento: não se perceberam vestígios de desconfiança.
Norte-Sul. Simbolismo da denominação do Palácio Monroe
Tratando detalhadamente dos resultados da conferência, Nabuco de Araújo salientou a recepção solene do Secretário de Estado norte-americano e do valor simbólico da denominação do edifício da conferência. Essa denominação deveria demonstrar que em nenhum lugar e nunca mais deveria haver um sinal de antagonismo político entre a América Latina e a União americana, e que os esforços gerais do continente deveriam vir a ser algum dia a formação de uma situação na qual o direito dos povos teria a soberania relativamente a todos os interesses comuns da civilização americana. Na colocação de duas questões importantes à Conferência de Haag, o conclave demonstrava que a América não reconhecia nenhum direito internacional no qual não participasse e não procurava criar nenhuma comunidade separada da Cultura Mundial.
Caráter processual das relações entre o continente americano e a Europa: metáfora da Corrente do Golfo
O representante da Colombia, Uribe-Uribe, na suas palavras de resposta a Nabuco de Araújo, salientou o papel histórico de Bolívar, ofereceu uma análise geral do desenvolvimento do continente, dividindo-o em três fases, a da libertação, da anarquia e da seriedade, culminando com reflexões a respeito das relações dos congressos panamericanos com a Europa. Para a compreensão da essência das relações entre a Europa e a América, poder-se-ia utilizar de uma imagem: a da Corrente do Golfo, um dos mais impressionantes fenômenos do planeta. Essa corrente, saindo do golfo do México, e tocando as costas dos EUA, atravessa o Oceano e leva à Europa o calor das áreas equatoriais. Mudando a sua direção a caminho do Sul, e abandonando o litoral do Velho Mundo, retorna pelo mesmo caminho que as naves de Colombo tomaram e, assim que atinge o Brasil, uma parte da corrente se dirige ao Norte, fechando o círculo, e uma parte se dirige ao sul, ultrapassando os estreitos e atingindo as costas do Pacífico. Nesse caminho, os produtos americanos iriam para a Europa; através desse caminho a Europa pagaria com os seus produtos industriais e suas idéias, e assim todos se moveriam num círculo permanentemente renovador e de intercâmbio recíproco.
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Como o estudo da Terceira Conferência Panamericana do Rio de Janeiro revela, esse evento assume significado extraordinário sob a perspectiva dos estudos culturais em contextos internacionais. A sua programação e os pronunciamentos de então demonstram de modo impressionante a importância de concepções teórico-culturais no seu vir-a-ser. Em perspectiva retrospectiva, conhecendo-se o desenvolvimento histórico que se processou nos anos seguintes, os ideais, as expectativas e as conseqüências da conferência surgem sob nova luz. Análises desse passado poderão contribuir para atualizações teóricas e para o desenvolvimento contínuo das reflexões no presente, evitando-se repetições não refletidas de idéias e conceitos.
Os trabalhos deverão ter prosseguimento no âmbito do programa interamericano-transatlântico da A.B.E.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).