Doc. N° 2215
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
107 - 2007/3
Tópicos multilaterais Itália-Brasil
"Construção de perpetuidades" na identidade cultural Antonio Carlos Gomes nos estudos interculturais
Milão-São Paulo. Trabalhos da A.B.E. 2006/07
A.A.Bispo
O ano de 2006 ofereceu ensejos para reflexões e estudos relacionados com o compositor Antonio Carlos Gomes (Campinas 1836 - Belém 1896): 170 anos de seu nascimento e 110 anos de sua morte.
Considerado no passado como o grande nome da música brasileira, celebrado em publicações e eventos como o maior compositor do Brasil, o interesse pelo criador e sua obra tem diminuido no repertório de concertos e nos estudos musicais. Já há muito ouviu-se a crítica de que a posição privilegiada que se emprestou a Carlos Gomes por muitas décadas do século XX derivaria mais de um vago respeito do que de uma real apreciação de sua obra.
Sob o aspecto dos estudos no contexto das relações entre a Itália e o Brasil, porém, o significado histórico de Carlos Gomes permanece altamente reconhecido. Uma visão teóricamente mais atualizada dos estudos das relações ítalo-brasileiras, dirigindo a atenção a aspectos relacionados com processos de identidade e diferenciação cultural de ambos os lados, nas suas inserções intereuropéias e interamericanas, abre caminhos para novos estudos e para o reconhecimento ainda mais amplo do papel relevante desempenhado por Carlos Gomes numa história da música em contextos globais.
Essas novas perspectivas teórico-culturais, superando ou relativando teoricamente posicionamentos culturais e ideológicos do século XX - que determinaram e propagaram critérios desvalorizadores da sua obra - , permitirão um redescobrimento e uma revalorização de Carlos Gomes, influenciando possivelmeten também a sua presença nos repertórios brasileiros e internacionais. Entre os estudos realizados com relação a Carlos Gomes em 2006, salientam-se aqueles a êle dedicados no âmbito de estudos gerais sobre os vínculos entre concepções estéticas, identidade cultural, colonização e imigração, e das características das rêdes sociais que possibilitaram o seu cultivo e a conservação da memória do compositor através dos tempos.
Reflexões sobre concepções estéticas e culturais de comemorações: Carlos Gomes 1936
Como um dos pontos de partida para o exame das concepções teórico-culturais que orientaram as diversas iniciativas, tomou-se a programação realizada em São Paulo, em 1936, por ocasião da passagem do centenário do compositor. Particular atenção foi dada aqui ao escopo da Instrução Artística do Brasil, entidade que, juntamente com a Academia Paulista de Letras, promoveu um vasto programa em homenagem a Carlos Gomes, colaborando com a Comissão Municipal dos Festejos de Campinas.
Temporalidade e a construção de perpetuidades
Um dos textos discutidos foi o discurso então pronunciado por Menotti del Picchia a convite das entidades organizadoras. O texto, a princípio, para o leitor atual, parece ter significado apenas literário. Entretanto, se examinado com mais cuidado, oferece um produtivo ponto de partida para o exame das idéias diretrizes que justificaram as comemorações de Carlos Gomes em época que a sua obra parecia já não corresponder às tendências estéticas nacionalistas então vigentes.
Um conceito central do discurso de Menotti del Picchia foi o de "construção". Via, entretanto, no processo construtivo de Carlos Gomes um ato de magia. Assim, o núcleo do seu discurso pode ser visto na frase:
"Ahi está quem foi Carlos Gomes: um constructor de Brasil (-) mago que o contaminou com um pouco de eternidade."
Essa frase deve ser considerada como sendo mais refletida e signifcante do ponto de vista teórico do que apenas expressão vaga de pensamentos poéticos. Entendendo-se sob magia - de acordo com antiga tradição de pensamento teúrgico - como um ato de concretização, na realidade perceptível, de dimensões e forças transcendentes, não através de invocações diretas, mas sim através da criação sábia de configurações que forçam, por assim dizer automáticamente a sua manifestação, então abre-se um caminho para a compreensão mais profunda do que o orador quiz dizer. A construção do complexo de sinais para a consecução do ato mágico de concretização de instância incomensurável, de chamamento do grande ao pequeno, de leis , estruturas e forças genéricas no particular, a-temporais na temporalidade, foi visto nessa antiga tradição como um procedimento quase que de ciência ou sabedoria aplicada e de arte. Os sinais, sem relações diretas com aquilo do qual se desejaria a manifestação, eram vistos como resultado de profundos conhecimentos e da capacidade criadora de configurá-los.
Sob o pano de fundo dessas reflexões, percebe-se o alcance do pensamento do orador. A música de Carlos Gomes - representante de uma outra geração - não se utilizava de recursos sonoros explícitos, não recorreria a elementos melódicos, rítmicos, formais e outros do folclore no esforço de criação de uma linguagem de conotação nacional como preconizada e realizada por muitos na época. Utilizando-se da concepção de magia, o orador defendeu a idéia de que a música de Carlos Gomes teria a capacidade de presentificar um espírito de identificação nacional apesar de todas as modificações culturais.
"Passam as gerações; desmoronam architecturas politicas; operam-se cambios sociaes; os oito milhões de kilometros semi-desertos formigarão de titães construindo a futura grande civilização que seremos. Mas ao escutarem em qualquer tempo, a protophonia do Guarany, a patria resurgirá na plenitude da sua virginal grandeza, como evocada pelo sortilegio de um mago."
Digno de especial atenção no discurso, é que a perpetuidade que Del Picchia via no processo construtivo mágico de Carlos Gomes constituía um universo de conotação indígena. Embora sabendo que a música de Carlos Gomes exteriormente pouca relação teria com o mundo sonoro dos índios, defendia a idéia de que nela haveria algo de imaterial que magicamente tornaria perene a sua presença, ou seja, que uma identidade cultural brasileira, na sua idealidade, permaneceria indígena, apesar de todas as suas expressões passageiras. "E os que terão mudado tudo isto numa Babel de aço e de cimento, veiada de trilhos e ouriçada de antennas, ao ouvir esses accordes pararão commovidos e extasiados! Nos seus ouvidos estrugirão os borés atavicos. O pocema selvagem alvoroçará seu sangue em impetos guerreiros. No seus nervos correrá, como o fremito de um vento de floresta, um electrizante arrepio de orgulho e de gloria. A Voz da Raça os conclamará dos suberraneos do atavismo. E todos sentirão, atravez da immortalidade do espirito, que a patria é eterna."
Para o orador, Carlos Gomes teria construido uma imagem do país e, através dela, "a alma" de seus habitantes. As características melódicas de suas obras despertariam associações. Apesar do emprêgo da linguagem musical européia, criara algo de novo. No seu sinfonismo, os recursos utilizados e as associações com o mundo da natureza teriam influenciado a "civilização" colorística orquestral. "Elle modelou, com a greda plastica dos sons, nossa paizagem e nossa alma. A linha melodica das suas partituras tanto embala, como um lyrico flabelar de palmeiras, o corpo mestiço e moreno da terra, como recorta os angulos brutaes dos seus scenarios, desenhados por Tupan para esconder os seus monstros, o trefego matuyu ou o boiatá phosphorescente. Sua riqueza symphonica rasga-se em amplitudes gigantescas, para conter o drama obscuro da terra. São inúbias e borés que estrugem transportando, para o instrumento imitativo, os urros das feras. Coisas e creaturas larvaes se exprimem com os sons que articula o instincto. Esse clangor de pocema, estridor de gargantas repetindo os ruidos tragicos da selva, puzeram um fremito aspero e novo no até então civilizado colorido das orchestras."
"Orpheu creoulo". Carlos Gomes e a mediação cultural
Uma particular atenção foi dada ao uso da imagem de "Orpheu creoulo" no discurso de Menotti del Picchia.
"O genio do creador do Guarany esbanjava, como um deus delirante e prodigo, o sol, a vibração, a estridencia dos tropicos, na formidavel surpreza das suas creações, desnudando assim toda a heroicidade do nosso drama. Portentoso Orpheu creoulo, espalhava Brasil em tempestades de notas." Os significados - e as diferenciações de sentido - do mito de Orfeu, discutidos sob diversos aspectos em eventos e seminários das últimas décadas, apresentam-se como de grande relevância para os estudos de concepções histórico-culturais. Embora não se podendo aqui tratar da ampla gama dos aspectos considerados, deve-se salientar a discussão do papel dessa imagem na caracterização de mediadores culturais. Cada vez mais se vem corrigindo a tendência, em estudos da Antiguidade e das primeiras fases da história cristã, de se vincular de imediato Orfeu a Apolo, concentrando-se antes a atenção nas suas relações com Hermes. As implicações desse resultado dos estudos e reflexões para a interpretação do uso dessa imagem na Antropologia Simbólica, em particular em contextos interculturais, são profundas. Assim, no caso do discurso examinado, Carlos Gomes não deveria ser considerado metaforicamente ou segundo um modêlo de pensamento que o colocaria numa posição do grande luminar, mas sim do guia que abre caminhos, do agente da mediação, daquele que - tal como o inventor da lira a partir de uma carapaça animal - transforma a matéria que encontra em instrumento, em veículo de ordenação. No caso, ter-se-ia uma utilização instrumentalizante da linguagem musical européia. O aspecto de uma lógica subjacente, mercúrica, entra assim inesperadamente nas reflexões relacionadas com Carlos Gomes. Êle viria antes dos luminares do século XX, mas não seria um precursor, seria um guia dos sóis, uma luz das luzes, apenas aparentemente menos significativa.
Sob o pano de fundo dessas reflexões, Carlos Gomes recuperaria a sua posição de alta relevância numa história da música de orientação teórico-cultural no Brasil.
A expressão do orador, porém, não se resume à identificação de Carlos Gomes a Orfeu, mas qualifica mais pormenorizadamente essa imagem, falando de "Orfeu crioulo". Para um estudioso da atualidade, conhecedor dos debates relativos ao Criolismo e ao Mulatismo nos estudos de processos de identificação cultural, essa expressão perde uma possível conotação discriminatória que nela pode causar mal-estar em leitura mais superficial. A atenção é dirigida a questões de análises de mecanismos que parecem estar intrinsecamente vinculados com processos desencadeados em situações de colonização e que, automatizando-se, perpetuam autopoeticamente complexas relações dialéticas entre esforços de auto-superação e comprovação de aptidões com a labilidade decorrente de situações sociais e étnicas.
O emprêgo da imagem de Orfeu em contexto cultural onde se constata a vigência de tais mecanismos, ou seja, a utilização de modêlos tipológicos de interpretação da Antropologia Simbólica no contexto de uma dinâmica performativa de identidades parece abrir novos e promissores caminhos para uma reconsideração de Antonio Carlos Gomes.
Os trabalhos terão prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).