Doc. N° 2165
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
106 - 2007/2
Presença do Brasil nos primórdios do movimento internacional de música contemporânea O Terzo Festival Internazionale di Musica Moderna da Camera da Sociedade Internacional de Música Contemporânea em Veneza, setembro de 1925 Pelos 70 anos da vinda de Edoardo de Guarnieri para o Brasil
Em agosto de 1922, um grupo de jovens compositores de Viena, liderados pelo sérbio Rudolf Richard Réti (1855-1957), organizou um festival de música moderna em Salzburg. Réti, que havia executado em 1911 os Drei Klavierstücke op. 11 de A. Schönberg e dedicado à primeira dessas obras um primeiro estudo analítico de título "Os caminhos tonais do Moderno - Sobre o impressionismo na música e no piano" (Die tonalen Wege der Modernen - Vom Impressionismus in der Musik und am Klavier, in: Der Merker II, 1911) é considerado como iniciador do evento que tornar-se-ia um marco no desenvolvimento internacional da música contemporânea. Para colaborarem na Salzburger Musikfest, êle e seus colegas convidaram vários amigos de Londres, Paris, Berlim e outros centros musicais. O significado dessa iniciativa não tem sido suficientemente considerado nos estudos histórico-musicais e nos estudos do Moderno na música. Não se pode esquecer que esse foi o Primeiro Festival Internacional de Música Moderna até então realizado. A sua relevância se manifesta sobretudo sob o aspecto das relações internacionais. Foi a primeira vez que, depois da Primeira Guerra Mundial, músicos de nações anteriormente inimigas se encontravam amigavelmente para o debate de questões estéticas e para a apreciação mútua das produções.
A escolha de Salzburg não fora acidental. A cidade já alcançara renome como um centro de renovação do repertório e de reflexões estético-musicais. Sob a direção de Bernhard Paumgarten, o Mozarteum transformara-se em polo aglutinador das tendências mais avançadas do pensamento e da prática musical da época, organizando concertos de música antiga e de música de autores modernos. A discussão do Moderno na música ocupava o principal centro de interesses, sobretudo e também nas suas relações com as várias culturas. O seu principal discípulo e amigo, Martin Braunwieser, liderava os colegas no movimento renovador. Consideravam-no, porém, muito mais amplo, transcendendo o seu significado estético-musical. Em 1919, fundou, nesse espírito, a academia à qual remonta a atual A.B.E..Com a atuação de Felix Petyrek e com a vinda de Tatiana Kipmann, sua futura esposa, o círculo contribuiu decisivamente para a criação dos pressupostos que possibilitaram a realização do evento liderado por Réti e que passou a ser considerado como o Primeiro Festival de Música Moderna.
Seguindo-se a esse festival, músicos de várias nacionalidades decidiram formar uma Sociedade Internacional que promovesse esses festivais e que, ao mesmo tempo, suscitasse e mantivesse vivo o interesse para a música contemporânea.
Essa nova sociedade foi constituída formalmente em Londres, em janeiro de 1923. Em poucos anos, já possuia seções em todos os paíss da Europa, nos Estados Unidos e no Brasil. Tais seções eram independentes e autônomas.
A Sociedade Internacional de Música Contemporânea possuia um Comitê de Honra, constituído por Ferruccio Busoni, Maurice Ravel, Arnold Schönberg, Jan Sibelius, Richard Strauss e Igor Strawinsky. Como presidente das delegações nacionais foi nomeado o musicólogo inglês Edward Joseph Dent (1876, Ribson/Yorkshire - 1957, Londres), permanecendo nesse cargo até 1938.
A Sociedade promoveu, em 1923, o Festival de Música de Câmara em Salzburg e o Festival de Música Orquestral em Praga; em 1924, realizou, novamente em Salzburg, um Festival de Música de Câmara. Após o festival de Praga, a pedido da seção italiana, denominada de Corporazione delle nuove Musiche, a Sociedade organizou um festival de música de câmara em Veneza. A escolha dos artistas a serem convidados para a execução das obras coube à respectiva seção. O júri para o ano de 1925 foi constituído por Alfredo Casella, Zoltan Kodàly, Egon Wellesz e André Caplet (falecido antes de atuar). O festival esteve sob o patrocínio de Benito Mussolini, então presidente do Conselho de Ministros.
O festival contou com 5 concertos, realizados no Gran Teatro La Fenice, nos dias 3, 4, 5, 7 e 8 de setembro de 1925.
O concerto de abertura, no dia 3 de setembro, incluiu obras de Heitor Villa-Lobos: Quattro epigrammi ironici e sentimentali e Historieta (Canto). Essas obras foram as penúltimas do programa, seguindo ao Jazzband para violino e piano de Wilhelm Grosz, regido por Louis Gruenberg, e antecedendo o Concerto para piano e orquestra de câmara de Paul Hindemith, regido por Hermann Scherchen. As outras composições apresentadas foram de autoria de Erwin Schulhoff (Quarteto de arcos), Gabriel Fauré (L'horizon chimérique), Hans Eisler (Duo para violino e violoncelo), Henry Eicheim (Nocturnal Impression of Peking e Korean Sketch para orquestra de câmara). Constata-se, na constituição do programa, o intuito dos organizadores em dar um cunho internacional à programação. A inclusão de Heitor Villa-Lobos deve ser vista neste contexto e como um marco de alto significado na carreira do compositor.
O concerto do dia 4 de setembro incluiu obras de Gaspar Cassadò (Sonata para piano e violoncelo), Samuel Feinberg (Três prelúdios para piano), Zoltan Szekely (Sonata para violino solo), Max Butting (Cinco peças para quarteto de arcos), Ladislav Vycpálek (Três canções) e Leos Janácek (Quarteto de cordas).
O concerto do dia 5 de setembro incluiu obras de Erich W. Korngold (Quarteto de arcos op. 16), Jacques Ibert (Dois tempos para duas flautas, clarinete e fagote), Arthur Honegger (Sonata para violoncelo e piano), Albert Roussel (Joueurs de flûte: quatro peças para flauta e piano), Maurice Ravel (Tzigane para violino e piano) e Vittorio Rieti (Sonata para piano, flauta, oboé e fagote).
O concerto do dia 7 de setembro incluiu obras de Mario Labroca (Quarteto de cordas), Arthur Schnabel (Sonata para piano), R. Vaughan Williams (Merciless beauty, canto) e Arnold Schönberg (Serenata para orquestra de câmara).
O concerto do dia 8 de setembro incluiu obras de Karol Szymanowsky (Quarteto de cordas), G. Francesco Malipiero (Le stagioni italiche, canto), Carl Ruggles (Angels, para seis trompas), Igor Strawinsky (Sonata para piano) e Louis Gruenberg (The Daniel Jazz, canto e orquestra de câmara).
Grande número de instrumentistas de vários países participaram das execuções. Os regentes foram Louis T. Gruenberg, de Nova Iorque, Hermann Scherchen, de Frankfurt a.M., e Arnold Schönberg, de Viena. Três quartetos tomaram parte: Il Quartetto Veneziano, composto por Luigi Ferro, Vittorio Fael, Oscar Crepax e Edoardo Guarnieri; o Das Wiener Streichquartett, constituido por Rudolf Kolisch, Fritz Rothschild, Marcel Dick e Joachim Stutschewsky; e o Zika Quartett (Praga), formado por Richard Zika, Herbert Zika, Ladislav Cerny e Ladislav Zika.
As obras de Heitor Villa-Lobos foram interpretadas pela cantora Eva Gauthier, de Nova Iorque, acompanhada ao piano por Alfredo Casella. O programa incluiu os textos de Ronald de Carvalho e Manuel Bandeira, com traduções em francês de Ph. Lebesgue:
1. Eis a vida! Uma gotta d'agua que se desvanece, Um pobre grao de poeira que dansa na luz, Dansa e desapparece... Eis a vida!
2. Inutil epigramma. Brilha um momento, pois, alma desilludida Brilha um momento, em quanto o sol aquece! Bolha de ar! dansa um minuto, dansa... A vida é bella porque é passageira!
3. Sonho de uma noite de verão. Louca mariposa bate na vidraça... Vem da noite enorme, vem da noite morna, cheia de perfumes... Fora tudo dorme... Que silencio enorme. Podam pelas moitas leves vagalumes. Louca mariposa bete na vidraça... Como as horas fogem, como a vida passa...
4. Epigramma. Sobre uma rosa aberta um besouro vem e vae... O vento chega. O besouro foge! E folha a folha a rosa se desfolha, e cae...
Epigrammes ironiques et sentimentales
1. Voilà la vie! Une bulle d'air qui s'évapore, Une goutte d'eau Qui se volatilise, Un grain de sable qui s'évanouit, Voilà la vie!
2. Epigramme inutile. Luis donc un moment, luis, âme desillusionnée, Luis un moment, tandis que le soleil rayonne! Bulle d'air! danse une minute, danse, La vie est belle prce qu'elle est passagère!
4.Epigramme. Sur une rose ouverte un hanneton va et vient... Le vent arrive. Le hanneton s'enfuit! Et feuille à feuille, la rose s'effeuille, et tombe...
Historietas.
Novelozinho de Linha... Poesia de Manuel Bandeira
Para cá, para lá... Um novelozinho de linha... Para cá, para lá... Oscilla no ar pela mão de uma criança (Vem e vai...) Que delicadamente e quasi a adormece o balança. Psio... Pra cá e para lá... O novelozinho caiu.
Historiette.
Le petit peloton de fil. En avant, et en arrière... Un petit peloton de fil. En avant, en arrière... Oscille dans l'air par la main d'un enfant... (Va et vient...) Qui delicatement et presque en endormant le balance. Chut... En avant, et en arrière... Le petit peloton est tombé.
Cumpre salientar a presença de Edoardo Guarnieri como componente do Quarteto Veneziano e como solista de violoncelo ao lado de Gaspar Cassadò (Barcelona), Joachim Stutschewsky (Viena), Wilhelm Winkler (Viena) e Ladislav Zika (Praga). Entre outras atuações, foi solista da Kammermusik N° 2 de Paul Hindemith, para piano obbligato e 12 solistas, op. 36, N° 1, regido por Hermann Scherchen. Edoardo de Guarnieri viria posteriormente a desempenhar significativo papel na vida musical brasileira. Nascido em Veneza, em 1899, e falecido em São Paulo, em 1968, enraizado na vida musical veneziana, tendo ali recebido a sua formação musical, filho do violinista Francesco Guarnieri, aperfeiçoara-se na Schola Cantorum de Paris, tendo estudado violoncelo com Louis Fournier, música de câmara com Louis Serres e composição com Vincent d'Indy. Após o seu retorno, formou o Quarteto Veneziano, o conjunto que desempenharia um papel fundamental no Festival. Edoardo de Guarnieri, estreitamente vinculado coma Sociedade Internacional de Música Contemporânea, já participara do festival anterior de Salzburg, continuando a exercer um papel ativo em concertos da sociedade até a sua vinda para o Brasil, em 1937. Aqui, atuou como regente de várias orquestras sinfônicas e de câmara, tendo sido diretor do quarteto de Mariuccia Iacovino. No Exterior, regeu, entre outras, a orquestra filarmônica do atual São Petersburgo, antigo Leningrado.
Os arquivos da A.B.E. conservam documentos dessa participação, com autógrafos de vários dos mais renomados representantes da música contemporânea daqueles anos, entre eles de V. Riéti, Casella, Wellesz, Zabroca, Malipiero e Petyrek.
A.A.Bispo
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).