Doc. N° 2166
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
106 - 2007/2
Medievalística nos estudos europeus sob a perspectiva intercultural Carlos IV° e a época da fundação da Universidade de Praga Pelas novas aquisições da biblioteca de estudos históricos da A.B.E.
Tangermuende, Saxônia-Anhalt
A biblioteca que se encontra à disposição dos estudiosos e participantes de eventos da Academia Brasil-Europa foi enriquecida, em março de 2007, com a aquisição de publicações de interesse para os estudos históricos em geral, ao lado de obras de outras áreas disciplinares. Os estudos históricos europeus realizam-se na A.B.E. prioritariamente sob a perspectiva das relações intereuropéias e interculturais. Os estudos medievais são focalizados sobretudo na análise de processos históricos que representam pressupostos para a melhor compreensão da expansão da cultura européia na época dos Descobrimentos e de suas extensões no Novo Mundo. Uma das questões sempre consideradas diz respeito à necessária profundidade histórica do conceito de Europa - e da posição de Portugal no contexto europeu - , procurando-se superar perspectivas por demais restritas a desenvolvimentos recentes da união européia. Um dos objetivos desses estudos é contribuir ao desenvolvimento dos Estudos Culturais Europeus no Brasil. Como área de estudos de orientação cultural, a Europeística foi proposta pelo editor, nos seus objetivos e princípios teóricos e metodológicos, em cursos superiores ministrados em São Paulo, já em 1974.
Ensejo para uma primeira consideração das novas aquisições foi uma visita realizada por membros da A.B.E. a Tangermuende, na Saxônia-Anhalt, uma das cidades européias que conservaram quase que de forma intacta a sua configuração urbana medieval dentro dos muros que ainda a cercam, contando com construções históricas civís e religiosas de alto valor arquitetônico. A cidade situa-se na confluência dos rios Tanger e Elbe. O castelo que ali se ergue já existia no início do século XI (primeira fonte remonta ao ano de 1009). A seu redor desenvolveu-se um povoamento de comerciantes, que logo progrediu, sendo elevado à categoria de cidade no início do século XIII. A partir de 1368, a cidade tornou-se membro da Hansa, integrando-se, assim, a uma rêde de comércio e tráfego que ligava o Norte da Alemanha a vários outras regiões da Europa. Entre 1370 e 1380, a cidade foi protegida pela muralha que, nas suas linhas gerais, mantém-se até hoje. O apogeu econômico da cidade foi acompanhado por um florescimento cultural e se manifesta nos seus edifícios. A Casa do Conselho, construída ao redor de 1430, hoje abrigando um museu de história e cultura locais, é obra extraordinária de arquitetura de tijolos de argila vermelha, destacando-se pelas estruturas em filigrana da sua fachada. Das igrejas, menciona-se a de Santo Estevão, com a mais alta torre da Altmark, de 94 metros de altura. A esse período de florescimento da Idade Média tardia seguiram-se, com o término da Hansa, séculos de perda de poder político e econômico. "A era da Idade Média tardia apresenta-nos entre trevas e visões que a transfiguram, dois contrastes que permitem intuir as tensões que a determinaram. Elas se manifestaram não apenas no fato de que havia ricos e pobres, dominadores e pessoas sem liberdade, bons e maus; quando é que não os houve? O homem, com as suas duas almas no peito, entrou agora na História, trazendo uma ruptura no seu interior, que duvida de tudo aquilo que até então era inquestionável, cujas estrêlas de guia se apagaram, cujo mundo saiu dos eixos.
(...) sem medida e centro, o homem sente-se entregue às tempestades de uma época, na qual o Velho vacila e o Novo ainda não encontrou a sua forma. E o seu coração é pressionado por um temor inominável daquilo que virá, que deverá vir, o fim do mundo, o Juízo Final.
Paralelos com o hoje? Não seria difícil de traço-los."S. Fischer-Fabian. Der Jüngste Tag: Die Deutschen im späten Mittelalter. München: Droemer Knaur 1985, 10. Impressionantes expressões artísticas das forças culturais e religiosas da cidade ainda vigentes no início do século XVII são o púlpito barroco da igreja principal, de 1619, e, sobretudo, o órgão de 1624, construído por H. Scherer (o Velho), um dos mais importantes instrumentos do gênero de toda a Europa.
A Guerra dos 30 anos, com incêncios e destruições, representou o golpe crucial na história local. Significativo para as tensões internas resultantes dos processos de decadência foi a trágica e desumana execução da jovem Grete Minde, acusada de atos traiçoeiros contra a cidade e a comunidade, um fato mantido vivo pela tradição oral e na literatura (Fontaine), hoje considerado em geral como êrro da justiça.
Os anos de apogeu da cidade estão estreitamente vinculados com a figura histórica do imperador Carlos IV° (1347-78), que nela residiu. O seu castelo, reconstruído segundo concepções historicistas em 1902, sob Guilherme II°, situa-se junto a um parque ornamentado com estátuas de personalidades históricas, entre elas a de Carlos IV°.
O rei da Boêmia e imperador romano-germânico Carlos IV° é vulto histórico que dá ensejo de modo expressivo a estudos mais diferenciados do conceito de Europa e de sua realidade nas relações internas e culturais do continente no passado. Luxemburguês, filho do rei João da Boêmia, nascido em Praga, de nome original Wenzel, educado em Paris, impregnado de espírito do Catolicismo, casado com uma filha de Carlos de Valois, Carlos IV° teve uma formação transnacional, européia.
"Esse rei da Boêmia, que também se tornou 'Rei romano ' e alcançou o título de imperador, era, na sua educação, língua quotidiana e cultura um francês no pleno sentido do termo. Os seus súditos tchecos viam-no, porém, como um soberano nacional. (...) No ano de 1348 fundou em Praga - segundo o modêlo da Sorbonne de Paris - a primeira universidade da Europa Central. (...) Durante o seu govêrno inteligente e frutífero fomentou a economia da Boêmia em espírito de progresso; criou uma burguesia local (...) A esse fato remonta a permanente popularidade de Carlos IV° na Boêmia" (Henri Pirenne, Geschichte Europas: Von der Völkerwanderung bis zur Reformation, Berlin u. Frankfurt a. M.,: Fischer 1956, 417 [do original francês Histoire de l'Europe. Des invasions au XVIe siècle]
Também as suas ações transcendem as fronteiras regionais e culturais. Combateu na Itália, tornou-se marquês da Morávia, assumiu a administração da Boêmia (promulgador da Majestas Carolina), desenvolveu uma política caracterizada por inteligência pragmática e diplomacia nos assuntos alemães, realizou um pacto hereditário com os Habsburgos, foi coroado imperador por um legado papal em Roma, tornou-se rei da Burgúndia, conquistou a Silésia, o Mark Brandenburg e outras regiões, transformou Praga em capital e centro cultural da Europa com a fundação da universidade em 1348, lançou a Bula de Ouro que fundamentou o direito dos Príncipes Eleitores e a escolha até a época napoleônica.
"Esse diplomata de alta cultura e político realista, que dominava várias línguas, unia na sua pessoa a cultura cortês e o espírito de empreendimento burguês, movimentando-se com segurança tanto no meio românico quanto no alemão" (Karl Bosl, Europa im Mittelalter: Weltgeschichte eines Jahrtausends, Bayreuth: Gondrom 1975, 264)
Para os estudos histórico-culturais, a fundação da universidade de Praga assume significado de central importância nas considerações dessa época. Trata-se, aqui, de analisar essa fundação em contexto global europeu, vinculando-a com processos que levaram à criação de outras universidades, diferenciando e aprofundando o panorama a fim de permitir, em especial, o estudo dos pressupostos e características da universidade portuguesa e de suas futuras repercussões fora da Europa.
"Devagar, mas continuamente se deslocam importantes pesos da Europa para o Leste, na Alta Idade Média. As fundações e universidades no Centro e no Leste da Europa salientam esse processo. Até meados do século XIV, os centros intelectuais da Alemanha são Paris e o Norte da Itália. Ainda o imperador Carlos IV foi formado na França. Paris tornou-se modêlo de Praga, a primeira Universidade alemã e tcheca (1348), e para Viena (1365), a primeira universidade no espaço de língua alemã propriamente dito; em ambas as cidades sentiram-se influências de Oxford. Mestres da nação inglêsa em Paris foram os primeiros professores de Viena. Paris tornou-se modêlo ainda para Erfurt (1379-92), Heidelberg (1385) e Colonia (1388), modêlo também das primeiras universidades da Polonia (Cracóvia 1364-97) e da Hungria (Pecs = Fünfkirchen 1367, Budapest 1389-95, Preßburg 1465-1467)." (Friedrich Heer, Mittelalter: Vom Jahr 1000 bis 1350, Teil 2. München: Deutscher Taschenbuch Verlag 1983 [Kindlers Kulturgeschichte des Abendlandes 10], 537-538)
Os estudos deverão ter prosseguimento.
L.H.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).