Doc. N° 2172
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
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Paris cosmopolita dos anos 1909-1913 Relações inter-européias na vida cultural francesa nos anos anteriores à Primeira Guerra e a presença brasileira 85 anos da admissão de Guiomar Novais no Conservatório de Paris
A.A.Bispo
Paris dos anos que antecederam à Primeira Guerra Mundial era o principal centro de cosmopolitismo cultural do globo. Para a capital francesa concorriam artistas e intelectuais de todas as partes do mundo, contribuindo para a dinâmica cultural da cidade e, ao mesmo tempo, recebendo impulsos que refletiram na história cultural de seus respectivos países. A posição relevante de Paris como capital cultural no cenário internacional não era nova na história e a cidade já era procurada há muito por estudantes e artistas do Exterior. No início do século, porém, a vida cultural parisiense alcançou um ponto alto na intensidade de seu cosmopolitismo. Essa situação dos anos que antecederam à primeira Guerra Mundial foi considerada sob uma perspectiva negativa por determinados intelectuais preocupados por uma identidade francesa, sobretudo à luz das animosidades e das feridas causadas pelos acontecimentos bélicos. Essa apreciação, repercutindo na literatura histórico-cultural, tem determinado perspectivas que devem ser revistas para um desenvolvimento mais amplo dos estudos interculturais.
Não se pode esquecer que o Paris dos anos anteriores à Guerra foi um polo irradiador de influências cosmopolitas que marcaram por décadas a vida cultural de várias nações, em particular da América Latina. Tem-se dado atenção, nos estudos histórico-artísticos e musicais, sobretudo à influência que Paris exerceu na formação e na produção de artistas norte- e latino-americanos na década de 20 e 30, no período posterior de entre-guerras. Entretanto, grandes impulsos renovadores ocorreram nos anos de dinâmica vida cultural cosmopolita da época anterior a 1914, todavia sob diferentes condições.
Estudos de caso permitem analisar mais pormenorizadamente os contextos interculturais vigentes em Paris nessa época, as tendências intelectuais e estéticas que se prolongariam no Novo Mundo por artistas que abandonaram as cidades européias com a eclosão da Guerra. Nesse sentido de estudo de caso, escolheu-se, como foco de particular atenção a vinda e as experiências da jovem brasileira Guiomar Novais na capital francesa. Analisou-se sobretudo a estrutura dos concertos por ela assistidos em Paris, tendo-se discutido a composição de repertórios e as iniciativas constatadas. Os trabalhos se inserem num amplo projeto de estudos interculturais a partir da vida e da atuação da pianista que está sendo desenvolvido pela A.B.E.
Guiomar Novais, nascida em São João da Boa Vista (São Paulo), em 1894, chegou a Paris em 13 de novembro de 1909. Foi admitida em primeiro lugar no Conservatório, entre 388 candidatos. Da comissão examinadora faziam parte C. Debussy, G. Fauré e M. Moszkowski. Tornou-se aluna de Isidor Philipp (1863-1958).
Pianistas de diversos países apresentavam-se nas salas de concerto da capital francesa. Entre os principais nomes que atuaram, entre 1908 e 1911 nas séries de concertos Lamoureux, Colonne, Sechiari e Hasselmans encontravam-se os de G. de Lausnay, Margueritte Long, Blanche Selva, M. Dumesnil, Mark Hambourg, I. Malats, Y. Merse, Ethel Leginska, A. Casella, Lucien Wurmser, Ed. Bernard, I. Friedman, H. Schiedenhelm, Alejandro Ribo e H. Kowalski.
No ano de 1911, um dos grandes acontecimentos pianísticos foi a despedida de Jan Kubelik. No dia 11 de maio de 1911, o pianista ofereceu o seu último concerto no Trocadéro, sob a regência de Gabriel Pierné. O programa incluiu obras de Weber, Lalo, Beethoven, Paganini, Saint-Saens, Beethoven, Y. Hubay e Wieniawsky.
Dois meses antes, Guiomar Novais, que ainda não terminara os seus estudos, alcançava a sua consagração com um recital oferecido na Sala Érard.
O Ménestrel, de 4 de fevereiro de 1911, comentou o sucesso nos seguintes termos:
Mlle Guiomar Novais, une enfant de quatorze ans, élève, au Conservatoire, de M. Philipp, qui vient de se faire entendre chez Érard dans un Recital qui a été un enchantement d'un bout à l'autre, est certainement appelée aus plus brillant avenir. Elle a toutes les qualités: une technique féerique, un son et un legato idéals, une aisance exceptionnelle, un style d'une beauté, d'une noblesse et d'une pureté rares, uine mémoire infaillible. Dans un programme composé de pièces anciennes de Couperin, Dandrieu et Martini, de la Sonate op. 53, de Beethoven, de différentes pièces de Meldelssohn (Romance, Scherzo du Songe) et au bord d'une source de Liszt, de Berceuse, ballade et mazurkas de Chopin, de pièces de Fauré (Nocturne n° 4), Widor (Chant du Ruisseau), Philipp (Feux follets, bissés), Th. Ritter (Été) et Oswald (Il neige), elle a su enthousiasmer une salle bondée qui l'a rappelée, à juste titre, sans se lasser, und dizaine de fois. On ne saurait rêver un talent plus complet.
A constituição do programa apresentado nesse recital adquire interesse sob a perspectiva dos estudos histórico-culturais. Constata-se a inclusão de peças de autores antigos, fato significativo no contexto do movimento de descobrimento e revalorização do repertório musical do século XVIII que se processava na França já há algum tempo. Constata-se também a inclusão de uma peça de autor brasileiro, a Il Neige, de Henrique Oswald, um dos principais nomes das relações culturais euro-brasileiras da época, com a qual a pianista se encontrava em contacto. Nota-se também a inclusão de obras de compositores franceses contemporâneos, em particular de uma peça de seu professor, Philipp. Entretanto, deve-se dar particular atenção à inclusão da Sonata op. 53 de L. v. Beethoven, uma vez que documenta um dos principais interesses dos anos anteriores à Guerra no ambiente musical francês: o culto a Beethoven e aos compositores alemães em geral.
Na época deste primeiro recital de Guiomar Novais realizou-se, em Paris, um grande Festival Beethoven organizado pela Sociedade Musical G. Austruc & Cie, assistido pela pianista . O festival teve lugar nos dias 2, 5, 8 e 10 de maio de 1911, sob o patrocínio da Sociedade Francesa dos Amigos da Música, no Théatre du Chatelet, Pavillon de Hanovre. O festival incluiu a execução, entre outras obras de Beethoven, de todas as suas sinfonias. Dele participaram, entre outros, Emil Sauer e Georges Enesco. Os coros e a orquestra da Associação dos Concertos Collone e dos Coros da Associação para o desenvolvimento do Canto Coral perfizeram um total de 1000 executantes. O texto relativo a Beethoven, do programa do festival, foi escrito por Romain Rolland. A análise das obras de Beethoven estiveram a cargo de Pierre Lalo.
O programa do concerto incluia o "Testament de Heiligenstadt" do compositor, um texto que serviu quase que como guia de ética para os artistas que então se formavam:
"Divindade, vós penetrais do alto o fundo de meu coração, Vós o conheceis, Vós sabeis que o amor dos homens e o desejo de fazer o bem ali habitam! Oh homens, se lêdes um dia isto, pensais que foram injustos para comigo; e que um infeliz se console encontrando um outro infeliz como aquele que, apesar de todos os obstáculos da natureza, fez tudo aquelo que estava em seu poder para ser admitido no rol dos artistas e dos homens de elite."... "Como seria feliz, se vos pudesse ainda servir do meu túmulo".
Esse festival esteve sob a direção de Félix Weingartner, o principal representante da música alemã na capital francesa.
Ce qui explique et justifie la renommée de Félix Weingartner, c'est son esprit philosophique disposant des connaissances les plus variées, son érudition intelligente sans cesse éprise d'analogie, et ne se laissant jamais distraire, dans l'interprètation des maîtres, de cette idée d'ensemble et d'harmonie qu'un goût fin, délicat, nourri d'études et d'expérience, imprime aux natures élevées. (...) Tel est le grand artiste que va nous faire parcourir le Cycle des Neuf Symphonies de Beethoven...
Na Salle Gaveau, no dia 4 de maio de 1911, realizou-se um Festival Weingartner, com a participação de Lucille Marcel e de F. Weingartner, êle próprio ao piano, com a apresentação de Lieder de sua composição.
Ao lado do "Beethovianismo", deve-se fazer particular menção à valorização e à influência exercida pela música de Wagner na vida musical parisiense como principal testemunho da intensidade do interesse pela música alemã na França no período anterior à Guerra. Assim, a Association Artistique des Concerts-Colonne, ofereceu, no dia 26 de março de 1911, um "Festival Wagner", em récita única, com Tristão e Isolda, e Parsifal. Dele participaram artistas do Teatro de Bayreuth, entre eles a cantora Läffler-Burckhard e o cantor Heinrich Hensel.
O culto de compositores alemães e a apreciação de autores franceses com elos estéticos com a Alemanha se manifestam também em outros concertos freqüentados pela jovem brasileira. Aqui devem ser salientados os Concerts Collone realizados no Théâtre du Chatelet. A programação de 1911/12, em duas séries (A e B), iniciada a 15 de outubro de 1911 e encerrada em 5 de abril (Sexta-feira Santa) de 1912, incluiu 24 concertos. O segundo concerto dessa associação artística, assistido pela pianista, teve lugar no dia 22 de outubro de 1911, um domingo, às 2horas e meia da tarde. O longo programa, em duas partes, incluiu, na primeira, obras de H. Berlioz (Le Carnaval Romain, Ouverture), C. Saint-Saens (Le Rouet d'Omphale, Poème symphonique), R. Wagner (Le Crépuscule des Dieux - Marche funèbre, Mort de Brünnhilde). A segunda parte do programa foi inteiramente dedicada a F. Liszt, pela passagem dos 100 anos de seu nascimento: Dante-Symphonie (La divine Comédie), Danse Macabre (Paraphrase sur le Dies Irae), Deux Mélodies (Die stille Wasserrose, die drei Zigeuner), Deuxième Rhapsodie hongroise (Orquestração de Müller-Berghaus). A orquestra e o coro, com 200 executantes, foi regida por M. Gabriel Pierné. Solistas foram Félia Litvinne (canto) e M. Eugène Wagner (piano).
Esse concerto, organizado pela associação dos Concerts Colonne para festejar o centenário de Liszt, teve lugar no próprio dia do seu nascimento, 22 de outubro. Ao redor do nome de Liszt, o programa reuniu aqueles de artistas que foram por êle apoiados: Berlioz, Richard Wagner, M. Saint-Saens. Liszt é mencionado pelos organizadores como tendo sido o "mais generoso e mais desinteressado dos compositores e dos virtuoses"; o pianista surgia como um exemplo ético, modelar sob o aspecto das relações entre músicos e executantes, fato raro no ambiente musical. Paul Landormy salientava que Liszt contribuíra, com as suas transcrições para piano, mais do que qualquer um para a divulgação da obra de Berlioz e de R. Wagner. Fora amigo íntimo de Wagner, a êle profundamente dedicado, o socorrendo em horas difíceis. Quando foi encarregado da direção do teatro de Weimar, logo possibilitou a apresentação de Rienzi, do Navio Fantasma, de Tannhäuser, assim como do Benvenuto Cellini, de Berlioz. Mais tarde, graças à intervenção de Liszt, deu-se a primeira representação de Samson et Dalila no teatro de Weimar (1877). Liszt lutara com inteira abnegação pelo triunfo das mais nobres causas artísticas, esperando sem impaciência que a posteridade fizesse justiça a seus méritos como compositor.
No domingo, dia 17 de dezembro de 1911, deu-se a apresentação de Parsifal de Richard Wagner (Prélude; Scène des Filles-fleurs; Grande Scène du 2e. acte) e da abertura de Les Maîtres Chanteurs, sob a regência de Gabriel Pierné. A tarde foi aberta com a Symphonie en Ré mineur de C. Franck e o Concerto em lá menor de E. Grieg, executado por wilhelm Backhaus.
Na noite de Natal, de 1911, a Association Artistique des Concerts-Colonne ofereceu a primeira audição da Symphonie antique para orquestra, solistas e coros de Ch.-M. Widor e o Concerto para piano, em mi bemol, de Beethoven, executado por Raoul Pugno.
O ano do primeiro recital de Guiomar Novais em Paris ficou marcado, nos estudos histórico-musicais, pela apresentação do Le Martyre de Saint-Sébastien, mistério em cinco atos de Gabriele D'Annunzio e música de Claude Debussy. A série de 10 representações da obra deu-se de 20 de maio a 2 de junho daquele ano, no Théatre du Chatelet. A coreografia este a cargo de Michel Fokini. Os principais artistas foram Ida Rubinstein, Adeline Dudlay e Véra Sergine. O evento reuniu 100 artistas, 350 executantes e 500 costumes. A regência da orquestra e dos coros esteve a cargo de André Caplet.
Entretanto, para a melhor compreensão das concepções ético-artísticas que exerceriam influência na formação dos artistas e intelectuais estrangeiros e nas suas atividades posteriores nos seus respectivos países parece ser mais relevante dar atenção ao peso dado a determinadas correntes do pensamento e da criação artística alemã em Paris da passagem do século. Com base no Testamento de Heiligenstadt, orientados segundo os procedimentos considerados como modelares de Liszt, salientando-se correntes que emprestavam uma dimensão quase que filosófica à composição e à prática musical, artistas como Guiomar Novais foram impregnados por uma cultura musical que se guiava por altos critérios éticos e qualitativos. A formação do caráter ocupava importante posição no ensino musical, este de forma alguma restrito a aspectos exteriores de técnica e interpretação, e esse fato não deve ser esquecido nos estudos interculturais.
Foi nesse contexto que Guiomar Novais realizou a sua primeira apresentação após a sua formatura, em Paris, nos Concerts Colonnes, sob a regência de Gabriel Pierné. Apresentou-se, também com um concerto de Mozart, no Queen'sHall de Londres, sob a regência de Henry J. Wood e, em 1913, em Berna e Genebra, sob a regência de Bernhard Stavenhagen. Após apresentações em Berlim, retornou ao Brasil.
Os estudos deverão ter prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).