Doc. N° 2173
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
106 - 2007/2
Niterói: Caminho Niemeyer Atualidades do Moderno histórico na imagem urbana e a Não-modernidade Ano Oscar Niemeyer
Trabalhos da A.B.E.
A.A.Bispo
O Caminho Niemeyer, em Niterói, é um dos projetos urbanístico-arquitetônicos de maior relevância do Brasil da atualidade. Esse significado não se explica apenas pela grandiosidade do projeto, abrangendo ca. de 72.000 m2, pelos esforços de levantamento dos grandes fundos necessários para a sua realização ou pelo fato de ser considerado como um dos mais importantes da obra do arquiteto, comparável, nas suas dimensões, apenas às obras realizadas em Brasília. A relevância do Caminho Niemeyer reside sobretudo nas suas implicações teórico-culturais, referentes, em primeiro lugar, a questões de imagem e identidade urbanas locais e visões culturais do Brasil no seu todo, de elos entre concepções estéticas e interpretações histórico-culturais que, longe de serem definitivas, são elas próprias resultados de situações e processos históricos.
Não só a obra em si, mas sim o fato de Niterói ter realizado tal projeto surge como de especial interesse para os estudos culturais. Se o estudo das concepções e da obra de Niemeyer exigem uma perspectiva que considere os relacionamentos culturais internacionais na história das idéias do século XX sobretudo franco-brasileiros , também o intuito de Niterói em realizar projeto de tais dimensões deve ser analisado sob o pano de fundo da tendência contemporânea de várias cidades do mundo de renovar a sua imagem, marcando ou metamorfoseando identidades com o objetivo de alcançar projeção supra-regional e internacional. Muitos desses projetos podem ser constatados em cidades litorâneas ou situadas à margem de rios e lagos; a refuncionalização de espaços e de edifícios industriais e portuais através de soluções arquitetônicas avançadas valorizam ou criam o direcionamento das cidades para as águas, para fora, para o exterior, criando novos rostos para o complexo urbano. Em muitos casos, alguns deles já tratados em outras edições deste órgão, não é a obra de um só arquiteto que determina a nova fachada da cidade, mas sim um conjunto de obras de diferentes arquitetos e grupos de arquitetos que são convidados a definir a nova imagem com propostas representativas de diferentes concepções e tecnologias, mas sempre de relevante atualidade. Surgem, em geral, propostas de partituras urbanas ao mesmo tempo multifacetadas e coerentes no cultivo da diferença, politextos plenos de sentidos mas sem ideologia cultural totalizante, apropriadas a situações urbanas caracterizadas pela dinâmica da convivência de vários grupos sociais e culturais.
Com o projeto Caminho Niemeyer, Niterói enquadra-se no rol das cidades que se orientam decididamente às águas, que remodelam a sua face, também à procura de afirmação da auto-estima e projeção. Parece que Niterói, da qual se dizia, segundo lugar comum, que o melhor que possui seria a visão que de lá se descortina do Rio de Janeiro, teria assumido determinadamente tal acepção, metamorfoseando-a no sentido positivo, decidindo-se definir de fato como espectadora de uma das mais extraordinárias vistas do globo. Abrindo-se tal como platéia para a cenografia da baía, a cidade se esquece, talvez injustamente, de que não foi, no passado, isenta de projetos arquitetônicos e urbanísticos dignos de atenção e que as suas zonas centrais são marcadas por edifícios, praças e avenidas que mereceriam maior consideração por parte de estudiosos da história da arquitetura e do urbanismo.
O Caminho, cuja concepção foi desenvolvida pelo arquiteto e o antigo prefeito Jorge Roberto, é definido por obras monumentais de Niemeyer, de funções de alta representatividade cultural e simbolismo. Nele se insere o Museu de Arte Contemporânea, inaugurado em 1996, já transformado quase que em emblema da cidade.
É digno de especial atenção nos estudos culturais, como testemunho das transformações religiosas que o Brasil está vivenciando, o intuito de se incluir não apenas uma catedral católica, mas sim também uma catedral batista no plano urbanístico-arquitetônico do Caminho. Esse edificio - o termo catedral exigiria justificações foi concebido como sendo de dimensões consideráveis, podendo abrigar até 5000 fiéis, incluindo construções adjacentes com auditório, salão de eventos,escola, estúdios, biblioteca, berçário, numerosas salas de aula e de admistração. A catedral católica foi projetada de tal forma a permitir a celebração de missas campais. Além dessa catedral, projetou-se uma capela com a imagem de Nossa Senhora do Líbano, edificada dentro da água, para 40 pessoas.
No Caminho situa-se o prédio central da Fundação Oscar Niemeyer, dedicado a abrigar o acervo das obras do arquiteto. Anexo, um edifício, com auditório e várias salas, destina-se a estudos relacionados com a arquitetura e artes em geral. O "Centro de Memória Roberto Silveira" foi concebido como um núcleo central da história de Niterói, reunindo também um banco de dados. Uma especial consideração, na visita realizada pela A.B.E. foi dada ao Teatro Popular, em fase final de preparativos para a sua inauguração. Também aqui, como no projeto do auditório no Parque Ibirapuera, em São Paulo, o palco pode ser aberto para o exterior, possibilitando espetáculos ao ar livre. O projeto do Caminho nclui a Estação das Barcas e Estacionamento, com uma considerável área para embarque e desembarque, além de centro comercial e salas administrativas. No primeiro andar, um restaurante permitirá uma visão geral do conjunto. Fora do estacionamento subterrâneo, abrir-se-á a Praça Juscelino Kubistschek, onde serão expostas obras de Niemeyer. O Museu BR do Cinema Brasileiro, um edifício cilíndrico de três pavimentos, incluie uma sala de projeções, um andar para o museu e outro para o arquivo.
Entretanto, o observador externo levanta questões que dão ensejo a posições antagônicas, em parte polêmicas na apreciação do Caminho. A discussão pode ser aqui apenas exposta de forma resumida.
Que se reconstruam edifícios históricos de épocas remotas em várias cidades européias é um fato que pode ser questionado e criticado, mas até certo ponto compreensível. A concretização, porém, hoje, - após tantas discussões de arquitetura high tech, de experiências pós-modernas, de arquitetura biomimética e de tentativas ecológico-construtivas -, de projetos que revelam vínculos com concepções e com uma estética dos anos cinqüenta e sessenta, resultados de tendências dos anos vinte e trinta, é um fenômeno surpreendente e que pode ser visto como indício de processos e circunstâncias sociais, culturais e políticas que mereceriam ser analisadas. Seria dificilmente concebível que cidades européias, que hoje quase que de forma competitiva procuram recriar as suas imagens, ativar centros antigos e zonas degradadas através de projetos arquitetônicos avançados, representativos de novos impulsos teóricos e artísticos, de tecnologia altamente desenvolvida, investissem na concretização de obras monumentais que não correspondessem a essas tendências da teoria e da prática. Por outro lado, seria inadequado, para discussões de cunho científico-cultural, cair em apreciações e julgamentos estéticos, atestando anacronismos e provincialismos nas variações e seqüências de uma linguagem expressiva tornada não-moderna e popularizada do Moderno. A tarefa que se impõe é considerar se esse projeto, na sua monumentalidade, não corresponde a um marco corajoso de resistência, e se não se transformará em início de um novo desenvolvimento de traços restaurativos, assim como questionar as circunstâncias que explicam tal opção por parte da cidade e suas conseqüências.
O que surge como particularmente singular no intuito de Niterói com relação a outras cidades que se renovam é o fato de transformar a sua face - com todas as suas implicações sócio-culturais - em extraordinário canto de louvor, em hino a um arquiteto. Um fenômeno quase que musical se observa, a cidade se transformando em caixa de ressonância para as sonoridades resultantes de uma ordenação da atmosfera segundo a inspiração de um artista. Tal como um novo Hermes, - o inventor mítico da lira a partir da morte de uma tartaruga o arquiteto surge como inventor de um novo instrumento: Niterói.
A idéia de reestruturação ou de metamorfose de cidades segundo a vontade de um criador não é nova no Modernismo. Como tratado no âmbito do projeto "Poética da Urbanidade", da A.B.E., Le Corbusier propôs há décadas, em arroubos de auto-confiança, planos de remodelação crucial para várias cidades São Paulo, Rio de Janeiro, Montevideo, Paris , em geral - em parte felizmente - não realizados. Tais projetos de construção de novas cidades em substituição às existentes têm sido considerados sob diversas perspectivas pelos estudiosos da obra de Le Corbusier, entre outros por Francesco Tentori, (Vita e opere di Le Corbusier, Roma-Bari, Laterza & Figli Spa, 1979, 1986, 1999), que cita o arquiteto:
"No Rio de Janeiro, cidade que parece definir de modo radiante toda a colaboração humana à sua beleza universalmente reconhecida, tivemos um desejo violento - talvez louco - de testar uma nova aventura humana - o desejo de jogar uma partida a dois, uma partida afirmação do homem contra, ou com, presença da natureza (...).
No avião, tomei o meu caderno de desenho e desenhei a traços rápidos e à medida que tudo se me tornava claro (...).
Do avião, desenhei para o Rio de Janeiro uma imensa auto-estrada que chega à meia-altura dos promontórios que se abrem sobre o mar (...).
Eis: a auto-estrada majestosa, talvez a cem metros sobre o solo da cidade ou ainda mais elevada (...), mantida assim ao alto não com arcos, mas com cubos de construção para os homens (...)."
Tentori considera, aqui, sobretudo as implicações desses intuitos com concepções musicais baseadas em ideais da unidade orquestral sob a ação de um regente e na recepção (parcial) de teóricos do barroco;
"Il passaggio dell'equatore, l'ingresso nell'altro emisfero, gli hanno consentito di vedere, quasi in una parabola, la differenza delle due forme dell'intelligenza umana, quella razionale dell'emisfero Nord, degli USA, e quella istintiva dell'Africa e delle Indie Occidentali; e L-C sente, in questo momento, di aderire soprattutto alla seconda. 'Architettura e musica sono le manifestazioni istintive della dignità umana (...). Architettura e musica sono sorelle molto intime: materia e spiritualità: l'architettura è nella musica e la musica dentro l'architettura. " (op.cit., 82)
Apesar de todas as diferenças, a idéia de uma estrada à beira-mar parece ter sobrevivido as décadas e continuar presente no Caminho Niterói. Entretanto, não se trata aqui de uma via de tráfego, mas de um caminho no sentido metafórico, cultural e, diferentemente das várias "rotas culturais" do Brasil e de países da Europa, expressamente personalizada.
Os debates deverão ter prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).