Doc. N° 2178
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
106 - 2007/2
Laokoon - 500 anos do descobrimento da obra perspectivas interculturais
Laokoon defronte o Museu de Odessa. Trabalhos da A.B.E. Laokoon. Museu Winckelmann, Stendal, Saxônia A motivação para o estudo do Laokoon sob perspectivas interculturais deu-se durante viagem de estudos da Academia Brasil-Europa a cidades da Ucrânia e da Rússia. Um dos objetivos dessa viagem foi ao de estudar in loco as origens históricas da A.B.E., ou seja, a história das correntes que, no século XIX, levaram à constituição do círculo de eruditos de interesses culturais e filosóficos que posteriormente imigrariam para a Europa Central e o Brasil.
As cidades que assumem significado nessa história caracterizam-se por um notável patrimônio arquitetônico e artístico de orientação clássica. Exemplo exponencial de cidade edificada segundo ideais clássicos é Odessa. Considerada especialmente no âmbito do projeto "Poética da Urbanidade", da A.B.E., motivou diversificadas reflexões. Um interesse especial foi dado à reprodução da obra de Laokoon existente em logradouro central da cidade, à frente do edifício do museu. Nas reflexões encetadas, avaliou-se sobretudo o significado simbólico ou emblemático da obra no referente à organização espacial, à ordenação arquitetônica e ao etos da urbe. Questionou-se, também, o sentido do ideal clássico que se associa com a obra escultural do Laokoon para a vida cultural do império russo nas suas relações com a Europa.
As implicações estéticas e éticas do Laokoon foram posteriormente consideradas em vários eventos da A.B.E., em particular no contexto de seminários dedicados ao relacionamento entre a Estética e a Ética.
Em 2006, comemorou-se a passagem dos 500 anos do descobrimento da escultura, um acontecimento que influenciou profundamente o desenvolvimento estético dos séculos seguintes. Para o encerramento do ciclo de estudos realizou-se, em março de 2007, uma visita à exposição de objetos e documentos relativos ao Laokoon na casa-museu de Johann Joachim Winckelmann (1717-1768), em Stendal, Alemanha.
Qual seria porém a relevância de estudos do Laokoon para o Brasil? No passado, em cursos de desenho e artes de orientação acadêmica, copiou-se e estudou-se o Laokoon. Também tem sido considerado em estudos clássicos e de literatura. Na aula inaugural do curso superior de Estética da Faculdade de Música do Instituto Musical de São Paulo, em 1974, considerou-se a obra de Winckelmann na sua relevância para a disciplina e para o país, sendo esta impossível de ser estudada adequadamente sem a consideração de suas concepções relativas ao Laokoon. Como já então sugerido, o significado de Laokoon para os estudos culturais exige considerações mais aprofundadas do edifício de concepções mitológicas e da história intercultural das concepções estético-filosóficas.
Esses estudos, aprofundados nas décadas seguintes, permitem hoje reconhecer com mais fundamentação o significado transcendente do mito, da obra e das concepções relacionadas com a obra.
Segundo o mito, Laokoon foi um sacerdote de Apolo, de Tróia, que reconheceu o perigo representado pelo cavalo de madeira presenteado pelos gregos. Após a partida destes, deixando o cavalo para a deusa Atena de Tróia na cidade, pediu a proteção a Poseidon, fazendo sacrifícios na praia.
Laokoon exigia que os troianos queimassem o presente, a êle atirando uma lança. Duas serpentes vindas da ilha Tenedos, emergindo das águas do mar, envolveram a êle e seus filhos, matando-os. A seguir, subiram ao burgo, enrolando-se aos pés e sob o escudo de Atena. Os troianos viram nesse ataque um sinal divino e um castigo pela atitude de Laokoon. Não deram ouvidos a seus conselhos e introduziram o cavalo na cidade, o que lhes traria então a perdição. Eneias, porém, percebendo o sentido verdadeiro das palavras de Laokoon, salvou-se, juntamente com os seus, no monte Ida. Numa das outras versões do mito, o cavalo já teria sido introduzido no castelo e as serpentes teriam surgido em meio à festa, um sinal da corrupção da casa real troiana e razão da fuga de Eneias.
Num ditirambo de Bakchylides, fala-se de Laokoon e sua mulher. Alguns estudiosos supõem, aqui, que a morte de Laokoon tenha sico causada pelo sacrilégio da prática sexual no templo de Apolo, ou pelo fato de ter-se casado e eter tido filhos. No Laokoon de Sófocles, a cena parece decorrer no templo de Apolo. Em versão de Vergílio, a mais divulgada e a mais compreensível, foi Atenas aquela que enviara as serpentes. Laokoon irritara a deusa com a sua atitude, e esta produzira um terremoto e chegou a tirar-lhe a luz dos olhos; ao repetir a sua advertência, enviou então as duas serpentes, que devoraram os seus filhos. A história de Laokoon remonta ao epos Iliupersis (Destruição de Ilions), de Arktinos. O trágico episódio envolvendo Laokoon e seus filhos foi motivo de escultura famosa, descoberta em 1506 nas termas de Tito, em Roma, na área da casa dourada de Nero, e conservada no Vaticano. Foi identificada à obra mencionada por Plínio, o Velho, e atribuída aos artistas de Rodos Hagesandros, Polydoros e Athanadores, do século I A.C. O descobrimento da obra foi decisivo para o desenvolvimento do Classicismo e para a discussão estética, influenciando o pensamento de Winckelmann, Lessing e Goethe. Mais tarde, com os estudos que demonstraram o seu caráter tardio, perdeu muito do seu fascínio. Para Winckelmann, nos seus "Pensamentos sobre a imitação das obras gregas, na pintura e na arte escultural", Laokoon tornou-se o fundamento da frase paradigmática "simplicidade nobre e grandeza silenciosa":
A característica geral, privilegiada das obras de arte grega é, por fim, uma simplicidade nobre e uma grandeza silenciosa", tanto na posição como na expressão. Assim como a profundadida do mar sempre permanece calma, ainda que a superfície se agite, da mesma forma demonstra a expressão nas figuras dos gregos apesar de todas as paixões uma alma serena e grande. Essa alma se manifesta na face de Laokoon, e não apenas na face, apesar de todos os sofrimentos. A dor, que se revela em todos os músculos e cartilagens do corpo e que nas contrações dolorosas da parte inferior do corpos se pensa sentir em si próprio se contempladas por si, sem a face e outras partes, essa dor, digo eu, se manifesta em nenhuma cólera na face e na atitude geral. Ele não eleva nenhum grito terrível, como diz Vergílio no seu Laokoon. A abertura da boca não o permite; é mais um suspiro doloroso e abafado, como descreve Sadolet. A dor do corpo e a grandeza da alma são distribuidas pela construção completa da figura com a mesma força e por assim dizer em equilíbrio. Laokoon sofre, mas êle sofre como o Philoktetes de Sofocles: a sua miséria nos atinge a alma, mas desejaríamos também poder suportar a dor como esse grande homem. ("Gedanken über die Nachahumung der griechischen Werke in der Malerei und bildhauerkunst", Winckelmanns Werke, Weimar: Aufbau, 3. ed. 1982, 1-46; 17-18) Como evidente, o mito de Laokoon deve ser interpretado no contexto da guerra de Tróia. A origem dessa guerra residiu no rapto de Helena, de Esparta, por Paris, filho do rei Priamos. Durante a gestação de Paris, a sua mãe sonhara que daria à luz uma tocha ardente que incendiaria a cidade. Devido a esse sonho, Paris foi abandonado no monte Ida, crescendo entre pastores. Nessa época, surgiram a êle as três deusas, Hera, Afrodite e Atenas, incumbindo-o de decidir qual delas seria a mais bela. Conduzidas por Hermes, prometem a Paris diferentes dons: Hera ofereceu-lhe poder, Atenas honras militares, Afrodite a mulher mais bela do mundo. Paris decidiu-se por Afrodite. Com a sua ajuda, seqüestrou Helena de Esparta, trazendo-a para Tróia. Numa análise do mito, pode-se perceber uma estrutura das forças contrárias atuantes no conflito: a luta se dá entre Aphrodite e Ares, por um lado, e Atenas e Hera por outro, juntamente com outros deuses. Laokoon, como sacerdote de Apolo, é figura do grande homem, justo, guia da comunidade, guardião espiritual da cidade. A tragédia de sua vida foi a ter de tomar posição no conflito, caindo no campo das tensões determinado pela força da discórdia e do ódio, ou seja, de Ares.
O papel paradigmático visto na figura de Laokoon não reside tanto na sua atitude e no seu trágico fim, mas sim na representação da forma comedida e resignada, grande e nobre, com que teria enfrentado a sua tragédia existencial. É sob essa perspectiva que se pode compreender e avaliar o significado transcendente das concepções vinculadas ao grupo escultório do Laokoon no pensamento ético-estético. Muitas vezes os observadores da obra surpreendem-se pelo fato de ter sido esta tão relevante para os ideais clássicos, uma vez que se caracteriza por extraordinária dramaticidade, movimentação expressiva de membros e gestos, de uma dinâmica quase que não-clássica, barroca. O clássico, como bem elucidado no texto de Winckelmann, diz respeito ao espírito de Laokoon que se percebe por detrás das aparências agitadas e dramáticas da tragédia exterior. Seria nessa dimensão interior, de espírito e de caráter que se encontrariam os ideais preconizados do Classicismo.
É nesse contexto das reflexões que se percebe a importância do Laokoon para o Brasil. Os ideais clássicos não exigem necessariamente formas exteriores e meios expressivos classicistas, êles podem existir apesar de aparências não-clássicas, de expressividade ou exuberância exterior, em situações trágicas e de sofrimento existencial. A discussão estética leva a questões de caráter e de etos, e o interrelacionamento entre a Ética e a Estética se manifesta aqui em toda a sua complexa profundidade. As reflexões relativas ao Laokoon sugerem que o Clássico, no sentido do normativo, do modelar, do paradigmático qualitativo, diz respeito primordialmente à Ética. É a ela que devem ser dirigidas sobretudo as atenções nos estudos culturais.
Os debates deverão ter prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).