Doc. N° 2181
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
106 - 2007/2
Música na hermenêutica bíblica Implicações interculturais Seminário: abril-julho de 2007 Preparatória de Magdeburgo
A.A.Bispo
Em cooperação com a A.B.E. desenvolveu-se, em abril de 2007, um seminário de 24 sessões dedicado a estudos da Hermenêutica Bíblica sob a perspectiva dos estudos interculturais, com especial consideração da música. O seminário contou com 35 participantes provenientes de várias universidades e disciplinas, entre eles mestrandos e doutorandos em Ciências Comparativas da Religião, em Teologia e em Estudos Latino-Americanos.
Os debates deverão dar continuidade a trabalhos da A.B.E. já realizados no Brasil e em vários países da Europa. O objetivo principal do evento é demonstrar a necessidade de estudos de concepções hermenêuticas do passado para a compreensão de fenômenos e processos culturais transplantados da Europa para o Brasil e das bases conceituais e simbólicas de mecanismos colocados em ação no passado e vigentes até o presente. Também pretende-se tematizar as transformações na interpretação bíblica ocorrida nos últimos séculos e sobretudo as conseqüências culturais de formas de exegese hoje difundidas por grupos das diferentes confissões atuantes no Brasil.
Como preparação ao seminário, realizou-se uma jornada de estudos no contexto da viagem de estudos culturais euro-brasileiros pela "Rota do Românico", no estado da Saxônia-Anhalt.
Centro principal motivador das reflexões foi o antigo Convento "Unser Lieben Frauen" de Magdeburgo, o edifício mais antigo da cidade e um dos monumentos arquitetônicos mais significativos e bem conservados da Rota do Românico. O Convento abriga hoje um Museu de Artes e a igreja a Sala de Concertos Georg Philipp Telemann, compositor originário de Magdeburgo. Nascido de uma fundação do Arcebispo Gero, de 1015, ali se construiu, ao redor de 1070, uma basílica de três naves, dedicada a Santa Maria, um testemunho da relevância da devoção mariana na região central da Alemanha em época de solidificação do Cristianismo. A história da igreja associa-se, a partir de 1129, à da Ordem Premonstratense. Um dos aspectos histórico-arquitetônicos mais significativos do conjunto é uma casa do poço ou da fonte, a mais antiga da Alemanha, uma construção de dois andares, cuja função não pode ser elucidada apenas a partir de sua utilidade prática na vida conventual, exigindo interpretações do sentido simbólico da água e das fontes na tradição bíblica e nas expressões culturais.
Introdutóriamente, discutiu-se o conceito de hermenêutica, partindo-se da crítica atual do têrmo no debate científico-cultural sob a perspectiva pós-estruturalista. Salientou-se, porém, que no caso de contextos culturais de fundamentação bíblica, ou seja de indubitável orientação ontológica das concepções, estudos das concepções hermenêuticas intrínsecas às expressões culturais continuam válidos e necessários nas análises. Salientou-se também a necessária diferenciação a ser feita entre uma hermenêutica como disciplina teológica e o estudo histórico-cultural de concepções hermenêuticas transmitidas pela tradição e por escritos do passado. Além do mais, tratou-se dos diferentes métodos da aproximação científica e das diferentes hipóteses e teses defendidas tanto por estudiosos católicos como protestantes. Levantou-se a necessidade fundamental da consideração de pensadores hebraicos.
A atualidade da discussão foi tratada sobretudo sob o aspecto dos debates relativos à reorientação das ciências humanas no sentido de ciências culturais. O método hermenêutico, voltado ao entendimento de fatos e processos, foi, até há poucos anos, considerado como característico das ciências humanas, ao contrário do procedimento elucidativo, esclarecedor das ciências naturais. Essa distinção, criticada já há muito por filósofos e teóricos, está sendo hoje definitivamente abandonada. Entretanto, sob novas perspectivas, na tendência a se considerar a cultura como texto, a hermenêutica ganha novo interesse, desde que não seja arbitrária, porém aplicada somente em tecidos de complexos culturais de fundamentação metafísica, por exemplo com relação a fenômenos culturais e processos de cunho religioso. Salientou-se, também, que os estudos hermenêuticos não dizem respeito apenas a discursos verbais e escritos, mas sim também ao repertório visual de imagens culturais. Para tal, porém, apesar de sempre considerar-se a hermenêutica bíblica documentada em obras teológicas, a aproximação científico-cultural distingue-se necessariamente da disciplina teológica correspondente. Trata-se, também, não apenas de um assunto da Ciência Comparativa das Religiões, mas sim de uma área das Ciências da Cultura em geral.
Na fase preparatória do evento, discutiram-se textos relativos à história da hermenêutica bíblica. Consideraram-se, por exemplo, a posição dos estudiosos relativamente a Origines, Agostinho e Jerônimo, à escola de Alexandria com o relêvo dado à alegoria e a concepção dos três sentidos dos escritos (literal, psíquico e pneumático), diferenciando-a da escola de Antioquia e à supremacia do sentido literal. Considerou-se a obra de Cassiodorus, já discutida em eventos anteriores. A hermenêutica na Idade Média foi motivo de particular atenção. Apontou-se criticamente à errônea concepção de que se não constata interesse maior por questões hermenêuticas nos autores medievais. Pelo contrário, a consideração das concepções hermenêuticas explícitas em vários textos medievais e intrínsecas às obras de arte e arquitetura é condição sine qua non para a adequada avaliação da transmissão de conceitos no trabalho missionário e de expressões culturais em épocas posteriores. Bastaria lembrar o significado do método alegórico na obra de um Santo Antonio de Lisboa/Pádua para confirmar a relevância de concepções hermenêuticas na mística e na simbologia religiosa da Idade Média, também no mundo de expressão portuguesa. A restrição demasiada dos interesses dos estudiosos à discussão relativa à hermenêutica a partir da época da Reformação surge como um obstáculo para a apreciação da relevância extraordinária das concepções hermenêuticas transmitidas a outras regiões do globo à época Descobrimentos.
A concepção da existência de um único senso nos escritos bíblicos, característica da Reformação, criou a necessidade, de fato, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, de esforços de elucidação e confirmação da doutrina católica dos diversos sentidos da escritura. Esse fato, porém, não significa que as concepções de cunho hermenêutico não tivessem sido fundamentais nas expressões culturais e na prática exegética da época anterior. O racionalismo do século XVIII e o desenvolvimento da arqueologia e das ciências históricas no século XIX dirigiram posteriormente a atenção dos teólogos sobretudo para o senso literal, para o estudo do texto original, para a conseqüente necessidade de estudos de línguas, para o estudo da personalidade histórica dos autores bíblicos e para a contextualização histórica e cultural dos textos. Entretanto, houve diferenças nas atitudes relativas à hermenêutica por parte dos diversos estudiosos, católicos e protestantes, que devem ser consideradas - de tendências dirigidas à redução de tudo aquilo não compreensível pela razão a um sentido natural aos procedimentos hermenêuticos nas suas diversas orientações, sejam de cunho moral, psicológico, mitológico, ou inseridos em processos dialéticos ou na teoria crítica. O próprio redescobrimento e sistematização da Hermenêutica pelos autores protestantes, por exemplo J. Ch. K. v. Hofmann (Biblische Hermeneutik, Nördlingen, 1880) deve ser considerado dentro de um desenvolvimento histórico e expressão histórica, e portanto relativados.
A questão da "de-mitologização", que marcou a discussão de várias décadas mais recentes, tendentes a libertar o carisma dos autores bíblicos da forma mítica de uma concepção antiga do mundo, surge como intento compreensível para teólogos ou para estudiosos de orientação pragmática, pastoral ou apologética, não pode ser, porém, questão de um estudo da hermenêutica como objeto das ciências culturais. Aqui não se trata, em absoluto, de exegese, de compreensão ou de interpretação da escritura, mas sim do estudo das concepções hermenêuticas no decorrer da história, de suas continuidades e discontinuidades e, sobretudo, das concepções inerentes a expressões culturais transmitidas pela tradição e que não podem ser analisadas adequadamente sem tal consideração.
As reflexões preparatórias ao seminário concentraram-se na diferenciação que se faz necessária para o tratamento da hermenêutica bíblica sob a perspectiva intercultural e nas questões metodológicas que aqui se levantam. O prosseguimento das discussões será relatado nas próximas edições deste órgão.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).