Doc. N° 2122
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
103 - 2006/5
Da correspondência
Paratinga - Bahia. Levantamento do Acervo Musical Obra de Damião Barbosa de Araújo
Assunto: Cartas de Carlos Fernando Filgueiras de Magalhães e Maria Augusta Calado Rodrigues anunciando o término de um grande trabalho de levantamento de documentos musicais conservados em Paratinga/Bahia, incluindo o descobrimento de uma obra do compositor Damião Barbosa de Araújo. Envio de materiais para início de uma cooperação na solução de algumas questões relativas à identificação e à difusão das obras.
Da resposta do editor deste órgão, de 18 de outubro de 2006:
(...) Antes de mais nada, quero expressar a minha admiração e dar-lhe os meus cumprimentos pelo monumental trabalho que desenvolveu e que espero possa ser lançado em breve. Posso avaliar o que essa obra de 900 páginas (!) exigiu de esforços e o heroísmo que exigirá para a sua edição. É emocionante saber o que significará para a sua cidade ter uma obra dessas realizada por um de seus próprios filhos. Que o seu trabalho vai ser de grande importância para a tão pouco conhecida história da música da Bahia, disto tenho absoluta certeza. Infelizmente, não conheço Paratinga, embora já tenha ouvido falar há muito da Sociedade Filarmônica 13 de junho, entidade que sei que está bem instalada em bela casa de fins do século XIX ou do início do século XX. Quanto estive pela primeira vez na Bahia para realizar pesquisas em filarmônicas, no início da década de 70, apenas estive no litoral Sul e no Recôncavo; do Rio São Francisco, apenas pesquisei o Baixo São Francisco, sobretudo Penedo. Talvez o amigo conheça os relatos desses trabalhos publicados em números antigos da revista-online Correspondência Euro-Brasileira. Nos arquivos alagoanos de cidades do S. Francisco, já desaparecidos quando ali retornei no início da década de 80, não encontrei obras de Damião Barbosa de Araújo. Tive a oportunidade, de ouvir dele a Novena do Bonfim, de ver obras suas nos arquivos de Cachoeira de São Felix (Sociedade Minerva Cachoeirana) e de ouvir obra de autor de sua geração executada com grande orquestra e participação popular em novena vivenciada em Santo Amaro da Purificação, em 1971. Pouco posso agora dizer a respeito dessas obras ouvidas, pois para isso precisaria rever as minhas anotações (...).
Apenas tenho no ouvido - e no coração - a extraordinária impressão que me causou o estilo exuberante da música e o seu poder de motivação dos fiéis para uma participação ativa nas respostas da ladainha. A alternância coro-orquestra e povo, correspondendo à alternância homofonia-gregoriano deixou-me profundamente surpreendido e comovido pela compatibilidade singular de estilos aparentemente incompatíveis, linguagens e práticas de execução tão diversas, numa convivência harmoniosa de épocas e de posições litúrgico-musicais, do moderno do século XIX e do a-temporal do gregoriano, do tonal e do modal. Uma impressão similar pude apenas observar naqueles anos em outra cidade, em São João del-Rei.
Isso levou-me a refletir muito a respeito da importância da realização sonora na tradição musical brasileira e do êrro que cometemos se apenas transferimos para a nossa "Musicologia Histórica" técnicas, procedimentos e valorações daqui da Europa. Perderíamos, assim, o mais importante do nosso passado musical e da nossa maneira de expressão. Não basta, a meu ver, recuperar e editar partituras segundo modêlos daqui ou internacionais; a pesquisa necessitaria considerar a tradição sonora viva, unido assim o método histórico aos procedimentos próprios dos estudos culturais, à etnomusicologia e à pesquisa do folclore. Essas minhas convicções, geradas pelas impressões baianas, apresentei-as na época no Museu de Folclore de São Paulo, defendendo a aproximação da História e dos estudos culturais empíricos, e o assunto tornou-se quase que um cavalo-de-batalha meu nos anos seguintes. Tive a oportunidade de fazer um levantamento bastante amplo de novenas e ladainhas executadas no passado no interior de São Paulo e constatei elementos similares no repertório paulista, um fato que vejo como indício do significado das ladainhas e do princípio litânico na cultura brasileira, o que tive a oportunidade de salientar no Instituto Pontifício de Música Sacra em Roma. Com a Maria Augusta Calado tive a oportunidade de trocar idéias proveitosíssimas e esse foi um dos temas do congresso que aqui realizamos, em 1999. Percorrendo os olhos agora pelas Trezenas de Santo Antonio, constato com alegria elementos estilísticos conhecidos de grande número de composições. Na parte do Barítono, sobretudo, é com grande contentamento que vejo a observação escrita à mão que reputo como muito significativa relativa à participação do povo e a repetição conseqüente da música orquestral. Do ponto de vista da história da prática musical, essa observação escrita a posteriori na partitura é de interesse e traz à consciência o efeito extraordinário que citei acima, de alternância entre o cantochão do povo, em geral cantado de forma arrastada, e a parte orquestral, de linhas melódicas de fácil memorização, e, em geral, atacada de forma entusiástica. Que várias partes dessa novena tinham cunho brilhante, isso o comprova as linhas dos violinos, repleta de notas repetidas, acordes quebrados e movimentos escalares. No "Domine adjuvando me" depois da entrada marcante inicial, com colcheas pontuadas e fermata no acorde preparatório da tonalidade, tem-se a entrada movimentada da orquestra em Allegro. O acorde inicial na fórmula pontuada ou uma breve cadência era uma prática comum na época, nascida das conveniências práticas. Também comum era a interpretação brilhante do Gloria com um movimento quase que marcial. O mesmo diz respeito ao Veni, que em muitas obras é tão entusiástico que a música, - vista por críticos severos -, quase que se assemelha a um galope. Lembrando-se, porém, que a palavra entusiasmo tem a ver com o Espírito, então se compreende o sentido profundo dessa forma de musicalização do Veni. A modo de contraste, seguia-se em geral partes em 3/4, em andamento moderato, cantabile, e o mesmo acontece nesta obra, no Padre Nosso e na Ave Maria. Eram em geral - como aqui, partes quase que líricas das novenas, emocionantes pela expressividade, e - como parece ser no caso -, às vezes cantadas em português. Tenho certeza que, assim como em outras cidades, também aqui o povo sabia de cor, além das respostas da ladainha em latim, também as várias partes instrumentais e corais da Trezena - talvez o Sr. possa confirmar esse fato. As novenas do passado, devido a essas características, foram de excepcional importância para a identidade cultural das comunidades, transformando-se em verdadeiros "hinos" locais, repletos de conotações sentimentais e muitas vezes guardadas com cuidado para não serem copiadas por mestres de outras comunidades. Ouvi várias estórias contadas em filârmonicas a respeito de "roubos" de músicas por grupos do partido oposto ou de outras comunidades. Considerando o fato de aqui se tratar da Trezena de Santo Antonio, ou seja, comparativamente às novenas de festas marianas ou de outros santos o evento que mais calava no coração da comunidade, por se repetir várias noites, e considerando ser a festa de Santo Antonio de particular importância para Paratinga - pois, se não me engano é santo padroeiro local - tudo indica que temos aqui uma obra de especial significado para a identidade cultural da cidade. Por se tratar de santo eminentemente popular, cuja religiosidade franciscana é essencialmente interiorizante, mística e baseada nas virtudes do coração (mais do que nas da razão), creio que tem-se aqui um caminho para o entendimento do conteúdo expressivo da peça, do peso dos violinos que a torna tão italianizante. Aliás, essa italianidade do estilo totalmente homofônico da obra - não se percebe nenhum traço de trabalho contrapontístico - tem a ver com esse pêso do sentimento sobre a razão, da recepção imediata da música pelos sentidos, da importância da sua realização sonora viva e não da abstração teórico-formal. Não tenho condições de assegurar definitivamente ser essa uma composição de Damião Barbosa de Araújo, pois falta-me aqui, na Alemanha, materiais comparativos. Não vejo, porém, a necessidade de se duvidar da inserção do seu nome na partitura. O fato de se ter aqui apenas a indicação Damião Barbosa (sem o Araújo), não significa nada de especial, pois o compositor foi assim conhecido. Aliás, a peça pertenceu a um Antonio Barboza, não apenas o copista, mas sim também o possuidor da partitura, ou seja, provavelmente um mestre. Esse nome dá margens a especulações. Talvez o amigo saiba algo a respeito desse mestre, talvez um antigo regente da igreja local. Daqui apenas posso fazer especulações, sem poder comprová-las. Peço-lhe desculpas pelo teor um tanto fantasioso, mas quem sabe não abre algum caminho para pesquisas suas futuras. A mim me parece que o fato de ter-se uma trezena desse compositor para uma festa de tal importância - de padroeiro - indica ter havido laços particularmente estreitos entre Antonio Barbosa e Damião Barbosa, ou até um indício da eventual presença do compositor na cidade. Sabe-se que Damião Barbosa tinha vínculos com a Ordem Terceira de São Francisco de Salvador, e talvez a rede franciscana tenha possibilitado a presença de sua música para a cidade ou até mesmo a sua própria vinda. A história atribulada do impetuoso Damião Barbosa era corrente na tradição oral de várias localidades baianas, como constatei no início da década de 70. Ela também foi registrada por Vincenzo Cernicchiaro na sua Storia della Musica, tão injustamente criticada pelos nossos historiadores. Segundo essas estórias, após a sua vinda de Roma, onde estudara composição na famosa Escola de Santa Cecília, teve de constatar que a sua noiva havia se casado com outro. Cego de ciúmes e despeito, Damião teria assassinado o marido da sua ex-noiva e teria sido obrigado a fugir para o interior da Bahia. Cernicchiaro seguiu aqui uma estória contada pelo crítico musical Rodrigues Barbosa, dizendo que Damião Barbosa atravessara o sertão baiano até chegar em Minas Gerais, vivendo longo tempo na cidade de Paracatú. O próprio Cernicchiaro, não dando crédito a essa informação, pediu notícias a uma senhora culta moradora de Paracatú a respeito de Damião Barbosa. Em carta que publicou em nota de rodapé, essa senhora diz que o compositor nunca esteve naquela cidade. As obras dele ali conservadas resumiam-se a um Gradual, uma Tota Pulchra e uma Missa e Credo considerada como belíssima. Na cidade teria estado algum tempo um professor de música, Antonio Innocencio, provindo da Bahia, onde vivera na intimidade de Damião, seu amigo. Foi ele quem o teria tornado conhecido por obras que ali fizera executar por "distinctos cultores da divina arte." (...) Quanto à "Missa Damião", executada juntamente com o "Credo Capistrano", pertencente a Manoel Dourado e por ele copiado em 1896, pouco posso dizer de relevante, pois seria necessária uma comparação com os manuscritos de missas que dele se conservam (arquivo T. Bastos em Salvador e outros). Também aqui não me parece ser duvidosa a atribuição, uma vez que era comum a denominação de obras conhecidas segundo o prenome de compositores. Trata-se, sem dúvida, de uma obra de efeito e que mostra a capacidade operística do compositor, por exemplo no extraordinário solo do Laudamus. Deveria haver em Paratinga cantores de excepcionais qualidades vocais! O brilhantismo do Gloria, com as exclamações quase que marciais de início corresponde ao estilo do Gloria de missas solenes de outros compositores do passado brasileiro, como Elias Alvares Lobo. Como usual na tradição brasileira, sob "Missa" compreendia-se aqui apenas o Kyrie e o Gloria. O "Credo", de outro compositor, abrangia também o Sanctus e o Agnus Dei. Trata-se aqui, certamente, de uma obra executada em solenidades de particular importância na cidade. Da sua carta tão substanciosa fica clara a importância da vida musical de Paratinga e a diversidade do repertório musical então cultivado. Há, por exemplo, a menção surpreendente da existência de obra de H. Eslava. Trata-se, aqui, provavelmente do grande compositor espanhol Miguel Hilarión Eslava y Elizondo (1807-1878), sacerdote, compositor sacro e de música operística, professor de Conservatório, do qual muito ouví quando estive pesquisando em Sevilha há alguns anos atrás. Foi um compositor que também superou barreiras de gêneros, do sacro e do profano, do erudito e do popular, compondo Villancicos e até bailados para os Seises de Sevilha. Ora, como é que uma obra de Eslava foi chegar a Paratinga? Não encontrei obras desse compositor nem em arquivos do Recôncavo (Feira de Santana, Cachoeira, Santo Amaro) nem no Baixo S. Francisco (Colégio, Penedo, Neópolis). Será por intermédio de um compositor que esteve na Europa, talvez Damião Barbosa? Do maior interesse seria também identificar a parte que traz o nome de M. Garcia, provavelmente o grande Padre José Maurício. Não creio que essa identificação seria difícil com o uso do catálogo da Profa. Cleofe Person de Mattos.
(...)