Doc. N° 2106
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
102 - 2006/4
Identidade cultural e sustentabilidade ecológica Visita à Fundação César Manrique, Lanzarote
No âmbito dos trabalhos relativos a processos migratórios e suas repercussões na estética, a Academia Brasil-Europa dedicou particular atenção à vida e à obra de César Manrique (Arrecife 1919-1992), estudioso interdisciplinar e artista de múltiplas faces, pintor, arquiteto, urbanista, paisagista, ecologista, conselheiro cultural e de educação, o grande criador de espaços e defensor da natureza que marcou de modo profundo a identidade de sua terra natal, a ilha de Lanzarote. A obra de César Manrique é de projeção e relevância internacional e merece ser considerada de forma privilegiada no âmbito dos estudos teóricos em contextos interculturais que dão particular atenção à relação entre desenvolvimentos culturais e a ecologia. Com a intenção de estudar in loco as suas obras e as suas intervenções na paisagem, assim como os trabalhos da fundação que leva o seu nome, realizou-se uma visita a Lanzarote em março de 2006. Com essa viagem deu-se prosseguimento também ao programa de pesquisas Cultura-Natureza-Música e que vem incluindo a consideração de vários centros de estudos, salientando-se a sessão levada a efeito no Sítio Burle-Marx em Guaratiba, no âmbito do Colóquio Internacional Poética da Urbanidade, em 2004. César Manrique Cabrera nasceu em família de classe média em Lanzarote; o seu pai, comerciante, era proveniente de Fuerteventura. Uma de suas avós era de Sevilha, a família originária de Castela. Embora sendo apenas outra ilha do mundo canário, a vinda para Lanzarote de seu pai significou mudança para um ambiente de cultura similar mas não totalmente idêntica. Esse fato pode explicar em parte o apego de César Manrique pela sua ilha natal, uma vez que experimentara o fenômeno comum em famílias de migrantes, ou seja o da identificação particularmente acentuada da segunda geração pela terra onde nasceu. A ilha, marcada por erupções vulcânicas do passado, é caracterizada por suas paisagens áridas. Nada mais compreensível, portanto, que César Manrique, na processo de sua formação, fosse guiado sobretudo pela natureza da ilha, marcada pela austeridade de sua paisagem e pela pureza das praias. As condições sociais de sua família e do meio em que cresceu, o seu idealismo juvenil e o entusiasmo pela sua terra facilitam entender certas tendências políticas que parece ter tido quando jovem, uma vez que chegou a lutar como voluntário do lado franquista na Guerra Civil espanhola. Extremamente desapontado com a sua participação na luta, tentou esquecer esse episódio desde o seu retorno à ilha, em 1939. Matriculou-se no curso de Arquitetura técnica da Universidade de La Laguna, abandonando porém os estudos. Em 1945, entrou na Academia de Belas Artes de San Fernando, em Madrid, alcançando a graduação. Em 1953, inicia as suas experiências pictóricas não figurativas. Em 1954, juntamente com outros artistas, encontra-se na vanguarda de arte abstrata espanhola, abrindo a primeira galeria de arte não figurativa da Espanha. Em 1955, toma parte na III° Bienal Hispanoamericana de La Habana, Cuba. Em 1959, obras suas são expostas em eventos dedicados à jovem pintura espanhola, exposições estas também apresentadas no Rio de Janeiro. Em 1963, participa da VII Bienal de São Paulo. A vida de César Manrique continuou a ser marcada pelo ambiente de migração tão próprio da história e da cultura canárias. Um de seus primos, Manuel Manrique, vivia em Nova Iorque, onde atuava como psicólogo e escritor. A seu conselho, dirigiu-se aos Estados Unidos, onde permaneceu até 1966. Em Nova Iorque, conviveu com migrantes da América Central e do Caribe que ali formavam uma grande colonia e que tanto contribuiram, nessa época, para o desenvolvimento de uma cultura de identificação latina na América do Norte e de repercussões nos seus próprios países. Viveu em casa do pintor cubano Waldo Ciaz-Balart. Com uma bolsa que recebeu para o Institute of International Education, conseguiu meios para dedicar-se à sua obra de pintura. Foi nesse ambiente multicultural tão influenciado por migrantes e intelectuais de língua espanhola de Nova Iorque, sempre saudosos de suas terras e dispostos a dar expressão criadora às culturas com que se identificavam, que César Manrique passou a reconhecer mais conscientemente o valor das características de sua ilha natal, o desnudamento de sua paisagem e a pureza de sua gente, contrastando-a com o universo metropolitano de Nova Iorque. Assim, tomou a decisão de, ao regressar, aproveitar as possibilidades de Lanzarote e transformar a sua ilha num dos lugares mais belos do planeta. Uma de suas metas era a luta contra as etiquetas, os padrões culturais e a homogeneidade. Um de seus primeiros grandes sucessos foi conseguir divulgar e impor a sua convicção de que a arquitetura da ilha deveria guiar-se pela tradição, porém em respeito à matéria natural. Conseguiu, entre outros projetos, erradicar o emprêgo de placas e cartazes de propaganda nas estradas. Em parte com o apoio de Pepín Ramírez, então responsável pela administração insular, realizou várias obras a partir de fins da década de 60, entre elas a casa-museu El campesino, a escultura Fecundidad, as obras do El Restaurante El Diablo, Timanfaya, Mirador del Río, Jameos del Agua, residência Taro de Tahiche, o Jardín de cactus e sua casa em Haría. A orientação interdisciplinar de César Manrique manifestou-se na criação de um centro cultural denominado El Almacén. A Fundação César Manrique foi constituída em 1982 e inaugurada em 1992. Está hoje instalada na residência do artista, de concepção arquitetônica admirável pela sua inserção na natureza, em terreno de 30.000 metros quadrados de lava vulcânica, incluindo 5 crateras naturais, edifício esse adaptado ao museu e à galeria de quadros pelo próprio fundador. Renovando as convicções de César Manrique no concernente à conservação da singularidade e dos valores naturais, culturais e territoriais de Lanzarote, lançou-se o Manifesto pela Sustentabilidade de Lanzarote, no qual se requer a aplicação efetiva de uma moratória com a finalidade de interromper a construção turística desenfreada, abrindo um parênteses de reflexão e debate tendentes ao estabelecimento de um modêlo de sustentabilidade local. Esse manifesto pela sustentabilidade de Lanzarote salienta que a sensatez, a responsabilidade e a solidariedade intergeracional recomendam uma redefinição do atual modêlo de desenvolvimento. O Manifesto se refere explicitamente ao Brasil. Os esforços de construção de uma nova cultura deveriam incorporar como orientação central o princípio terceiro da Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), no qual se salienta que o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de forma tal que responda equitativamente às necessidades de desenvolvimento e às necessidades ambientais das gerações presentes e futuras.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).
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