Doc. N° 2107
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
102 - 2006/4
Paradoxos da recepção cultural em contextos migratórios Reflexões nos jardins do palácio de Sayn- Wittgenstein de Berleburg Ano de comemorações de W.A. Mozart e M. Haydn
No ano das comemorações dos 250 anos de nascimento de W. A. Mozart também se rememora Michael Haydn, falecido há 200 anos atrás em Salzburg. As vidas desses músicos se relacionaram sob vários aspectos; ambos eram instrumentistas da capela da Corte de Salzburg e, quando W. Mozart partiu para Viena, em 1781, Michael Haydn o seguiu como organista da catedral. Michael Haydn ganhou renome já na sua época como exímio contrapontista e como compositor de música sacra. A obra de M. Haydn, no corrente ano tirada em parte do esquecimento através de execuções e gravações, dirige a atenção sobretudo a questões do relacionamento da música de sua época com a religião e a espiritualidade. Sob esse aspecto, adquire o seu estudo relevância particular para estudos culturais. Por motivo dessas comemorações, a Academia Brasil-Europa organizou uma exposição de documentos de seus arquivos referentes à recepção da obra dos clássicos no Brasil. Esses documentos, programas de concertos de diversas associações e grupos, partituras, livros e artigos de jornal foram comentados por ocasião de encontros de estudiosos no centro europeu de estudos brasileiros da instituição. A atenção foi sobretudo dirigida às relações entre o cultivo dos clássicos e os processos identificatórios vivenciados pelos imigrantes de língua alemã no Brasil. Sob essa perspectiva, salientaram-se os aspectos aparentemente paradoxais do cultivo e da recepção de autores clássicos nos diferentes grupos de imigrantes nas colonias e nas grandes cidades, dando-se particular atenção ao complexo relacionamento da obra de compositores tão profundamente vinculados com o universo católico e as diversas correntes protestantes representadas nas colonias de língua alemã. As reflexões tiveram continuidade no âmbito de uma excursão à cidade de Bad Lasphe e Bad Berleburg. O centro do núcleo histórico dessa última localidade é o palácio da família de Sayn-Wittgenstein-Berleburg, um edifício de antiga história, cuja monumentalidade barroca foi determinada pelas reconstruções realizadas a partir do século XVI e ampliações da primeira metade do século XVIII. Esse castelo é hoje um centro de atividades musicais, nele se realizando semanas internacionais de música e concertos. Berleburg apresenta-se, pelo seu passado, como local particularmente sugestivo para estudos relativos à imigração alemã ao continente americano nas suas relações com processos de identificação religiosa. Desde fins do século XVII, grupos de perseguidos, provenientes de várias regiões de língua alemã e também da França procuraram abrigo nos condados de Wittgenstein. Grande número de pietistas, que desde a Guerra dos 30 Anos haviam se separado da linha tradicional do protestantismo com a sua devoção quase que de natureza mística, viveram por mais de 50 anos em Berleburg e na localidade próxima de Schwarzenau. Em eventos e publicações da atualidade percebe-se um crescente interesse pelo Pietismo sob o aspecto cultural, procurando-se desvendar as relações entre ele e os valores da vida burguesa sob o ponto de vista de uma "antropologia histórica da espiritualidade". Trata-se sobretudo da tentativa de uma análise da espiritualização do quotidiano nesses grupos burgueses, sendo que várias traços culturais pietistas são vistos como predecessores da cultura burguesa moderna. Sobretudo a influência do Pietismo nas artes dos séculos XVIII e meados do XIX vem recebendo atenção nos estudos histórico-culturais europeus e transatlânticos. Pietistas de Berleburg desempenharam importante papel na história da imigração, sobretudo aos Estados Unidos. A imigração do grupo de fundadores da "Igreja dos Irmãos" (1708), liderada por Alexander Mack, deu origem à Church of the Brethren nos Estados Unidos, hoje com mais de meio milhão de membros e que mantém os laços com a sua localidade de origem. Entre 1719 e 1819, mais de 12.500 pessoas abandonaram a região de Wittgenstein, um número que representa apenas uma estimativa com base em fontes oficiais. Essa primeira fase da imigração cai num período no qual existiam dois condados na região, o Sayn-Wittgenstein-Hohenstein com Laasphe ao sul e o condado Sayn-Wittgenstein-Berleburg ao norte. Ambos os condes foram elevados à categoria de príncipes, em 1792. Entretanto, já em 1806, os principados perderam a sua autonomia, sendo integrados no Grão-Ducado de Hessen-Darmstadt e, finalmente, na nova província prussiana da Vestfália. A maior parte dos imigrantes saíram da região de Berleburg, fato motivado pelas condições precárias para a agricultura devido aos invernos severos. A imigração não era isenta de impecilhos, e muitos preferiram fugir clandestinamente para não pagarem as taxas ao senhor da região. As dificuldades da pesquisa da imigração já foram salientadas pelos estudiosos, uma vez que faltam materiais nos arquivos locais e, na América, já não se conservam todas as listas de passageiros. Além do mais, essas listas foram feitas pelos marinheiros com base em informações dos imigrantes e, no início, apenas dos passageiros masculinos. A perda da população local foi sensível em algumas aldeias. As fases de imigração mais intensa foram aquelas dos anos 1719-1725, 1795/96, 1818/19 e 1850/1855. Além dos Estados Unidos, sobretudo a Pennsylvania, os imigrantes se dirigiram a outras regiões da Europa e da América. Entre elas, no século XVIII, à Prússia do Leste, à Rússia, ao Báltico, mas também à Austrália, ao México e à América do Sul, sobretudo ao Brasil, à Argentina, ao Chile. As condições das viagens marítima eram em geral péssimas e muitos imigrantes não alcançavam o porto de destino. Assim, em 1855, dos passageiros do navio "Francisca", em viagem de Hamburgo ao Rio de Janeiro, chegaram ao Brasil apenas 24 de 220 pessoas. Dos imigrados e de seus destinos pouco se sabe nas suas regiões de origem. Em geral não mantiveram relações com a terra que abandonaram. Ali tinham pertencido a famílias provenientes de outras regiões, perseguidas por motivos religiosos e que viviam na tradição de uma identidade de grupo determinada pela confissão, não pelas raízes locais. No estudo dos processos de transformação de identidades na adaptação e posterior integração na sociedade brasileira esse fato não pode ser esquecido. É por demais superficial e inapropriado considerar a questão da identidade de grupos imigrados de língua alemã apenas sob a perspectiva de uma identidade nacional alemã ou de língua. A consideração dos elos religiosos na coesão do grupo, na transmissão de normas e na determinação da cultura do quotidiano e dos dias de festa surge como sendo de excepcional importância. O Pietismo tivera, na sua gênese, influência de fora, de correntes inglêsas e até mesmo da mística espanhola. A procura do aperfeiçoamento interior e a espiritualização da vida favoreceu uma cultura de introspecção e de refinamento de sentimentos, uma sensibilidade para variações sutís de estados de ânimo. A partir daqui pode-se entender o alto significado da música, em particular também para a prática musical de câmara em comunidades de cunho pietista. A pesquisa histórico-musical já revelou, para os Estados Unidos, o significado da prática musical nas colonias morávias (United Brethren ou Unitas Fratrum) da Pennsylvania, onde se cultivava obras de Haydn ou de Mozart ao lado de composições de autores vinculados à igreja tais como Johann Friedrich Peter, Johannes Herbst, John Antes e Jeremiah Dencke. Os adeptos tinham vindo de Herrnhut, região sob o domínio do conde Nicholas von Zinzendorf. Conservaram-se nas comunidades morávias norte-americanas valiosos acervos com mais de 10000 manuscritos de música da Morávia e de outras regiões européias do século XVIII e início do XIX. Infelizmente, o mesmo ainda não aconteceu em outras regiões de imigração. Um desenvolvimento maior dos estudos culturais relativos à imigração poderia trazer aqui novos conhecimentos, abrir outras perspectivas para a história da recepção musical no Brasil e dar profundidade histórico-cultural aos grandes segmentos da população que hoje se filiam a correntes religiosas derivadas da Reformação. O complexo temático, discutido sob diversas perspectivas, deixou porém a questão em aberto e que deverá continuar a ser estudada: explicaria uma influência pietista nos grupos protestantes de imigrantes alemães no Brasil a paradoxal abertura desses grupos para a recepção e o cultivo de obras de compositores clássicos no Brasil?
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).
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