Doc. N° 2087
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
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Os "semi-selvagens" entre os povos da terra História das representações e difusão de imagens: caboclos no mundo Uma obra esquecida de Ch. Delon
Um dos temas discutidos nos trabalhos do corrente ano da Academia Brasil-Europa foi o da representação de grupos em fase de transição cultural e de mudança de identidades. Procurou- se levantar e analisar obras que, no passado, trataram não apenas do indígena ou do africano como o Outro totalmente diverso, contrastante do civilizado europeu, mas que deram também atenção a grupos populacionais por assim dizer intermediários, provenientes de mestiçagens e imersos no processo de conversão. Uma das obras que mais influenciaram a formação da imagem do Brasil na França de fins do século XIX e início do XX foi certamente o livro Les Peuples de la Terre de Ch. Delon, incluido na Bibliothèque des Écoles et des Familles e editada pela Librairie Hachette em Paris. O exemplar comentado foi o da quinta edição, de 1905. Trata-se de uma obra ilustrada com 24 imagens em cor e 88 gravuras em preto e branco. O texto é dividido segundo continentes: Europa, Ásia, África, América e Oceania. Na introdução, o autor expõe o seu objetivo: o de fazer "une promenade autour du monde" através de homens e coisas, uma viagem pitoresca, imaginária e real ao mesmo tempo, para mostrar o mundo, os povos de todos os tipos. Após considerações a respeito das suas concepções de raças e da constatação de que a divisão etnográfica não coincide com a geográfica, o autor salienta por fim a sua convicção segundo a qual as raças não seriam confinadas em determinados lugares, dentro de fronteiras. Ao contrário, após tantos séculos, teriam surgido populações provenientes de migrações. O capítulo dedicado ao Brasil traz o título de "Sauvages et demi-sauvages au Brésil". No contexto das discussões, a parte do texto que mereceu maior atenção foi aquela dedicada aos meio-selvagens. O autor salienta que haveria no Brasil, assim como que no Peru e no Paraguai, um fato que seria para os estudos mais interessante do que aquele dos verdadeiros habitantes da floresta e que teriam por todo o lugar características semelhantes. Os semi-selvagens seriam aqueles que se encontravam em fase de se transformarem pelo contacto com os europeus, e seriam eles que os missionários mais se esforçavam em converter. Converter seria o menos, pois esses índios, "simples de espírito", seriam fáceis de serem persuadidos e conduzidos. Civilizar, porém, seria algo diferente, pois civilização representaria trabalho e eles seriam os mais flácidos, os mais indiferentes dos homens, caprichosos, sempre tentados à vida livre da floresta, sem necessidades, amigos do repouso, inimigos do esforço. Em tudo o semi-selvagem permaneceria a meio caminho e seria justamente essa mistura de traços civilizados e selvagens que produziria o efeito mais grotesco, o mais curioso que se pudesse imaginar. Isso se manifestaria nos trajes, por exemplo, umas simples calças para os homens e uma camiseta para as grandes ocasiões, uma saia leve ou uma túnica da cabeça aos pés: isso seria a parte da civilização. Ao lado disso, via-se pernas e braços tatuados ou pinturas na face, ornamentos nas orelhas, no nariz e nos lábios e esses seriam as marcas da selvageria. Nas casas, nos cantos, um ou outro utensílio europeu, uma marmita, objetos bizarros ao lado de potes de pedra e de barro, ao lado de um fusil e de um violão. Que mistura haveria nas mentes entre as crenças novas transmitidas pelos missionários e as antigas superstições seria difícil de saber. Quanto às práticas exteriores do culto, objeto de preocupação dos religiosos, seria compreensível que estes se mostrassem ressentidos. Na falta de melhor, a igreja seria uma grande cabana de paredes de terra batida, com janelas sem vidros, o teto de folhas entrelaçadas e teias de aranha pendendo sobre a cabeça dos neófitos. O sino seria campânulas de gado, os cantores e acólitos seriam jovens selvagens quase nús que se esforçavam na execução medíocre do canto-chão. E, como seria necessário ir em procissão com aquilo que se há, com os objetos existentes, mesmo as mais solenes dessas procissões se arriscariam de dar ao europeu uma impressão de mascarada bem distante das visões ortodoxas dos seus promotores. Poder-se-ia nelas ver a caricatura de espetáculos esplêndidos e fantasiosos, mais profanos do que religiosos que o rei artista francês, o bon roi René organizaria para a alegria maior dos burgueses da Provence. Nas discussões, procedeu-se a uma análise do discurso do autor, comparando-a também com outros textos da época, também publicados em magazines ilustrados. Apesar de certas formulações que manifestam ironia, característica talvez da mentalidade francesa do autor, salientou-se que este possuía, para a época, extraordinária visão realista e aberta com relação à mestiçagem e a culturas híbridas. Os resultados da discussão deverão fornecer subsídios para o prosseguimento dos debates.
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Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).