Doc. N° 2092
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
101 - 2006/3
Modernidade e representações de estruturas de fundamentação ontológica Reflexões em Barcelona Comemorações Gaudí
Por motivo da passagem dos 80 anos do falecimento de Gaudí (Antoni Gaudí y Cornet, 1852-1926) e das comemorações de cem anos da Casa Battló (2004-2006), festejadas com exposições e publicações várias, realizou-se, em março de 2006, uma viagem de estudos a Barcelona no âmbito do projeto "Poética da Urbanidade" da Academia Brasil-Europa. Esses estudos in loco vieram completar observações de viagens anteriores, quando se considerou outras obras do arquiteto, sobretudo o Parque Guell. No corrente ano, procurou-se retomar as reflexões à luz dos debates dos últimos anos concernentes à questão de processos de formação de identidades, no caso catalã, da ordenação simbólica de fundamentação ontológica da cultura cristã-européia e de suas relações com o modernismo. A consideração da obra de Gaudí sob a perspectiva dos estudos culturais justifica-se por fatos de singular atualidade e que ultrapassam, no seu significado, a esfera meramente regional ou disciplinar no âmbito da história da arquitetura. Como a imprensa brasileira divulgou há alguns anos, chegou-se a cogitar a concretização de um projeto do arquiteto de 1910 para um hotel em Nova Iorque, cujos esboços são conservados no Centro de Estudios Gaudinistas de Barcelona, no contexto das discussões relativas à reedificação do espaço deixado livre pela destruição das torres gêmeas. O edifício projetado por Gaudí teria a considerável altura de 310 metros, e que o teria feito o mais alto prédio da cidade na época de sua idealização. Uma tal edificação na atualidade teria conotações simbólicas evidentes: ao potencial simbólico da destruição do World Trade Center contrapor-se-ia a força de uma linguagem arquitetônica profundamente vinculada com a ordenação simbólica da cultura de fundamentação cristã do Ocidente. A religiosidade do arquiteto e de sua obra levou até mesmo à abertura de um processo de beatificação, autorizado pela Santa Sé no ano 2000, um intento iniciado no ano de 1992 por admiradores vinculados à organização Opus Dei e que constituíram a Associació pro Beatificació d'Antoni Gaudi. A análise da obra de Gaudí, portanto, não pode se resumir à consideração de aspectos estéticos exteriores ou construtivo-estruturais, devendo incluir obrigatoriamente o estudo adequado de princípios hermenêuticos transmitidos pela tradição e a ela inerentes. A extraordinária relevância da simbólica cristã-ocidental na obra de Gaudí faz com que a sua análise prometa novas possibilidades de interpretação diferenciada dos movimentos estéticos da passagem do século e na discussão teórica do modernismo. Para tal, tem-se como pressuposto o estudo desse simbolismo transmitido sobretudo pela tradição popular ibérica e que vem sendo analisado sobretudo no vasto repertório de expressões culturais ainda vivo na América Latina. No decorrer das observações in loco foram discutidas várias possibilidades de leituras e interpretações de sentido das obras consideradas. A obra que permite uma aproximação hermenêutica mais segura é certamente, pelo seu caráter evidentemente religioso, a catedral da Sagrada Família e que, embora longe de estar terminada, já é um dos monumentos mais visitados da Península Ibérica. O próprio Gaudí desejou que o seu projeto, que substituiu um anterior de outro arquiteto e que saberia que não seria completado durante a sua vida, fosse continuado segundo princípios apresentados em uma das fachadas do edifício, a fachada do Nascimento. Já na distribuição simbólica das três fachadas e na sua orientação segundo pontos cardeais fica evidente o enraizamento das concepções na tradição mística. O arquiteto se orienta segundo os mistérios da encarnação (nascimento) e da morte e ressurreição, pilares do ano litúrgico e interpretados segundo a tradição nas suas relações com o passado, o presente e o futuro. O nascimento na carne e na humanidade carnal, conteúdo da fachada do nascimento, traz as figuras tradicionais das representações natalinas e da Epifania do acontecimento de Belém, dos animais, boi e burro, dos pastores, dos magos etc. Sabendo-se, dos estudos das expressões culturais populares, que essas representações do presépio também se denominam lapas, ou seja, que na cultura ibérica se manteve a antiga tradição de que o nascimento aconteceu numa gruta ou construção de pedras, concepção claramente simbólica pelas suas equivalências com mitos da Antiguidade tardia, então tem-se um caminho para a interpretação do símbolo da pedra na mística e na obra de Gaudí. O mistério do nascimento é focalizado por Gaudí, além do mais, sob o ponto de vista das três virtudes da Fé, Esperança e Caridade, conceitos que são representados pelos três portais. Fácil de ser compreendida é, também a visão eclesiológica do arquiteto, ou seja, a Igreja, que é a rocha, o pétreo de Pedro ("sobre essa pedra construirei a minha Igreja"), tem como colunas ou - no caso de ser entendida como representação terrena da Jerusalem celestial, como torreões os apóstolos, correspondentes às 12 torres mais baixas da construção. As torres maiores representam significativamente os quatro evangelistas. Acima desses o arquiteto concebeu uma torre de maior diâmetro correspondente a Maria e, por fim, coroando a obra, a alta torre de Cristo. Para a leitura da fachada da Paixão e talvez também para o entendimento de certas concepções estruturais cumpre recordar outro motivo do repertório simbólico da mística, ou seja, o dos ossos e esqueletos. Essa simbologia é conhecida das expressões populares tradicionais e parece oferecer caminhos para a interpretação também de outras obras do arquiteto, mesmo daquelas de função não-religiosa. Essa possibilidade foi discutida também com relação à Casa Battló, agora comemorada, uma vez que a sua fachada freqüentemente tem sido comparada a crâneos e estruturas ósseas. Entretanto, um outro complexo simbólico surgiu como de maior importância para a análise do universo gaudiano sob a perspectiva dos estudos culturais: o do antigo relacionamento da matéria com a água, imagem simbólica de fundamentação na antiga filosofia natural e reinterpretada sob o ponto de vista cristão. A água, sobretudo o mar, assume extraordinária relevância nas expressões culturais tradicionais da Península Ibérica, sobretudo, naturalmente, naquelas de cunho mariano. Discutiu-se se uma profunda espiritualidade mariana não teria influenciado o arquiteto a criar obras que são freqüentemente associadas com visões subaquáticas, com formações corais, grutas submersas ou construções de areia molhada. Uma atenção especial foi dirigida ao edifício denominado La Pedrera, ou seja, a Casa Milà. Essa construção, realizada entre 1906 e 1910 com grandes blocos de pedra talhados no próprio local, é interpretada geralmente segundo a sua denominação popular e derivada da impressão que causa. O edifício é comparado a precipício rochoso ou a uma formação pétrea ondulada, quase que líquida e que abrange a confluência de duas ruas. As ornamentações de ferro forjado das grades dos balcões, criadas por Josep Jujol, um colaborador do arquiteto, sobem pela fachada como elementos vegetais em conjunto rochoso subaquático. Discutiu-se se essa interpretação não seria gratuita e projeção de um sistema de concepções externo à obra. Ela pode, porém, ser confirmada pelo próprio arquiteto, uma vez que pretendia ter colocado na fachada do edifício um conjunto de esculturas em bronze, de 4, 5 metros de altura, representando Maria e o mundo angelical. Se La Pedrera hoje não apresenta esse elemento elucidador do suas conotações marianas é porque o seu proprietário não o permitiu. Por fim, salientou-se que o estudo das expressões culturais de cunho religioso da Idade Média européia mantidas particularmente vivas no Brasil pode contribuir para o desenvolvimento dos estudos gaudianos. Um aspecto inusitado e pouco considerado nas análises da obra de Gaudí, por exemplo, seria o da musicalidade de suas concepções. Essa musicalidade explicar-se-ia pela simbologia da água e corresponderia à definição de música como ciência aquática constatada em antigos teóricos ibéricos, em particular em S. Isidoro de Sevilha.
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