Doc. N° 2078
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
100 - 2006/2
Memória do conflito com o mouro e os estudos de Semana Santa na Espanha e no Brasil Observações e reflexões em Málaga
Os debates relativos ao campo de tensões Oriente-Ocidente na cultura, motivados pela trágica atualidade do assunto e pela necessidade de contínuas revisões de seus pressupostos teóricos, levando-se em consideração os aportes críticos do Post-Colonial Studies, motivaram, após observações in loco na África do Norte islâmica em março de 2006, a reconsideração de expressões simbólicas da cultura ocidental, em particular na Espanha. A memória dos conflitos com o universo islâmico continua presente na cultura ibérica. A imagem desse Outro não é resultado de uma construção mais ou menos recente que possa ser enquadrada no conceito de Orientalismo, como discutido com relação aos argumentos de Edward Said. As lembranças desse passado encontram-se fixadas em monumentos e estão estreitamente vinculadas com tradições religiosas continuadamente revividas e até mesmo com imagens veneradas e que desempenham não irrelevante papel na identidade de comunidades e cidades. Em Málaga, tem-se, por exemplo, o culto de uma imagem milagrosa de Jesus Nazareno "cativa, ultrajada" e resgatada pelos padres Trinitários Descalços em Fez, em 1682, e de uma da Virgem Mãe de Jesus como Rainha das Vitórias e da Paz, fato eternizado em lápide gravada de 1961. Em eventos anteriores da Academia Brasil-Europa, em particular na sessão de Paraty do Congresso de Estudos Euro-Brasileiros de 2002, a atenção já tinha sido dirigida às expressões simbólicas da luta entre Cristãos e Mouros na Península Ibérica e no Brasil e a sua importância para a identidade cultural de várias localidades, discutindo-se as diversas possibilidades de seu estudo e análise. Agora, as atenções concentram-se à reconsideração de um conjunto de expressões religiosas e culturais de muito maior relevância pelo papel que desempenha na ordenação do ano religioso e na teologia: o da Semana Santa. Salientou-se, de início, que é surpreendente o fato de que as expressões de Semana Santa não terem sido ainda suficientemente consideradas no âmbito do Post-Colonial Studies e em outras tendências dos estudos culturais da atualidade. Nos estudos referentes a repertórios simbólicos e mecanismos performativos de identificação tem-se dado especial atenção ao carnaval e a mascaradas. De fato, a imagem atual que se tem de complexos culturais de vários países de passado colonial é marcada, no presente, sobretudo pelo carnaval e não há dúvidas a respeito do significado fundamental de mecanismos que podem ser subsumidos sob o conceito de carnavalização na análise de processos de performatividade. Entretanto, esses estudos não podem ser realizados apropriadamente sem a sua orientação segundo concepções fundamentais e finais inerentes ao conjunto das expressões, uma vez que representam apenas um Introitus ao período da quaresma e à Semana Santa. A Semana Santa continua a representar o ponto alto das expressões culturais de numerosas cidades e comunidades de países de formação colonial. No passado, desempenhou papel fundamental na vida das missões e dos núcleos de colonização européia. Se as fontes históricas da época das Descobertas transmitem dados a respeitos de folguedos de expressão simbólica, muito mais dizem a respeito do significado de práticas relativas à quaresma e à Semana Santa. A pouca consideração da Semana Santa nos Post-Colonial Studies pode ser explicada pelo fato de serem estes sobretudo marcados por circunstâncias de esferas inglesas ou norte-americanas. Um desenvolvimento das reflexões da perspectiva ibérico-latinoamericana traria certamente novas colocações. Como discutido, a consideração dessas expressões exigiria um certo deslocamento de peso nas abordagens e de procedimentos de análise, uma vez que a atenção não mais se dirige fundamentalmente a expressões lúdicas, aptas a serem analisadas sob o prisma de mecanismos de transformação de identidades pelo instrumentário do grotesco tipológico, mas sim de representação realista do anti-tipológico. Tem-se aqui não monstros, máscaras, figuras mitológicas e outras que incitam ao riso e ao sarcasmo com finalidades educativas, mas sim representações realisticamente comoventes de Cristo na sua via Crucis, de Maria e de santos. Não o rir, embora sempre um tanto amargo, mas sim o chorar, não a comédia, mas sim a tragédia marcariam essas representações de concepções centrais de uma cultura que determinou a formação dos países latino-americanos. Os estudos das expressões culturais da Semana Santa no Brasil não são recentes. Na tradição à qual se vincula a Academia Brasil-Europa, tiveram início com observações in loco e participações em manifestações de irmandades tradicionais de São Paulo e em São João del Rei, a partir de fins dos anos sessenta. Os resultados desses estudos foram discutidos várias vezes em reuniões no Museu de Artes e Técnicas Populares de São Paulo e em outras instituições. O objetivo das observações agora realizadas na Espanha era o de levar à frente os estudos com a consideração intercultural da situação atual das expressões da Semana Santa na Península Ibérica, estabelecendo comparações e analisando desenvolvimentos diferenciados. É conhecido o significado da Semana Santa na vida das cidades ibéricas em geral, pouco considerado foi porém até hoje nos estudos culturais as características singulares de uma extraordinária valorização que as expressões culturais vinculadas com a Semana Santa estão recebendo na atualidade. O Museu da Semana Santa da confraria respectiva em Málaga, modelarmente instalado, é um exemplo dos esforços de conservação de documentos e de transmissão de conhecimentos. Publicam-se léxicos com termos relativos a objetos e personagens das procissões, procurando-se difundir a terminologia tradicional. Elucidam-se pormenores do acompanhamento musical das procissões, levantam-se históricos de corporações, divulgam-se repertórios. Criou-se um verdadeiro culto dessas expressões culturais, algumas delas relativamentes recentes. Práticas de instrumentação, por exemplo, derivadas em geral de bandas militares e resultado de contingências das últimas décadas são consideradas como características da tradição e, assim, perenizadas. Tudo indica a vigência acentuada de um tradicionalismo que propaga a "Exaltação da Semana Santa", fato também observado em outras iniciativas de forte conservantismo, tais como a "Exaltação da Mantilha". Nas divulgações, fica evidente o aspecto espetacular quase que lúdico e turístico das expressões, não apenas detectado, mas sim explicitamente manifestado em convites para a população no sentido de "desfrutar" a Semana Santa. Sabe-se que no passado, e também na atualidade, em certas regiões brasileiras, a Semana Santa assumia, pela pompa de suas expressões litúrgicas e paralitúrgicas, uma dimensão de exterioridade quase festiva que impressionou observadores de fora e levou a críticas por parte de representantes de outras confissões ou mesmo do clero, que constantemente procurou apontar e coibir abusos. Com isso, singulares tradições de muitas décadas se perderam e somente com muito esforço puderam-se manter práticas musicais tradicionalizadas em alguns centros. É digno de nota, portanto, a naturalidade com que na Espanha se cultiva - e pelo que tudo indica de forma crescente - aspectos de uma exterioridade com expressões culturais às vezes de muito menor relevância histórica do que aqueles que se perderam no Brasil. As bandas de música das procissões de Málaga, por exemplo, são grandes conjuntos formados por instrumentos de sopro de metal e de madeira - flauta, pistões, trombones, tubas, fliscornos, bombardinos, clarinetas, oboes e fagotes, além de cornetas e tambores - que fazem o acompanhamento musical dos pasos de palio. Executamtambém marchas de procissão características dos passos da Virgem. As cornetas e tambores mantém o estilo da antiga banda da Policia Armada e acompanham os passos de Cristo ou de Mistério. Fundamentam-se nas cornetas, incluindo porém também outros instrumentos de sopro. Outros agrupamentos musicais se vinculam com o estilo da antiga banda da Comandancia de la Guardia Civil do quartel de Eritaña e acompanham os passos de Cristo ou dos de Misterio. Tem como base fundamental as trompetas, contando porém com outros instrumentos, tubas, trombones, fliscornos, cornetas e pratos. As bandas caminham em procissão junto aos passos e os acompanham em todo o seu percurso. Algumas delas possuem seções juvenis ou infantis. Sob a perspectiva dos estudos culturais e sobretudo à luz das discussões atuais, esse florescimento do tradicionalismo vinculado com as expressões da Semana Santa não deixa de levantar questões. Percebe-se que há falta de reflexões e aportes teóricos para a análise desse fenômeno cultural que não deixa de ser singular, uma vez que diz respeito à teatralização da, dor, do martírio e da agonia. O fato de que várias das imagens tradicionais levadas em procissões de Málaga são conservadas na igreja de Santiago Maior, o "matador de mouros", levou as reflexões concernentes a um possível relacionamento entre o significado excepcional da Semana Santa no contexto do ano litúrgico da Península Ibérica e as circunstâncias históricas da Reconquista e suas conseqüências. Esse é um contexto que deverá ser discutido mais pormenorizadamente em futuros eventos, considerando-se aspectos teológicos e histórico-culturais. Antonio Alexandre Bispo
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