Doc. N° 2057
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
97 - 2005:5
Vizille. Museu da Revolução Francesa Revolução sob a perspectiva dos estudos culturais em contextos transnacionais
Realizou-se, em julho de 2005, uma visita da A.B.E. ao Museu da Revolução Francesa em Vizille. Essa pequena localidade, situada não muito distante de Grenoble, no Departamento de Isère, na região Rhône-Alpes, na assim-chmada Route Napoléon, é, entre as cidades dos vales do Drac e da Romanche, a única que possui um renome nacional e uma projeção internacional. Situada próxima da confluência da Romanche com o Drac, o seu renome não é devido à sua história mais remota, que leva à Antiguidade do Oppidum Antiquum no caminho de traversia dos Alpes, com o seu forte Castra Vigiliae e com a sua história medieval vinculada à Abadia de Cluny. O seu renome deriva do significado para a História da Revolução Francesa do principal monumento local, o castelo dos senhores de Lesdiguières. Esse castelo foi comprado pelo duque de Lesdiguières, François de Bonne e reconstruído quando se tornou coronel geral da região da Dauphiné. O início da Revolução na região deu-se a 7 de Junho na chamada Journée des Tuiles. No dia 21 de julho de 1788, reuniu-se um assembléia no castelo, na qual tomaram parte 50 sacerdotes, 165 nobres e 276 representantes do Terceiro Estado. Os representantes das municipalidades da Dauphiné recusaram o pagamento de todo o imposto não votado pelos Estados Gerais. O Museu da Revolução Francesa foi criado em 1983 e abriga, ao lado de suas valiosas coleções de obras de arte, um centro de documentação e biblioteca que traz o nome de Albert Soboul (1914-1982). Esse centro foi idealizado, entre outros, por Michel Vovelle, então presidente do conselho científico que levou à formação do museu. Esse centro pode ser considerado como indispensável para os estudos relacionados com o século XIX e as transformações culturais que a Revolução causou na Europa e no mundo. As repercussões da Revolução na criação artística européia são consideradas com especial atenção. As obras apresentadas no museu documentam acontecimentos do período revolucionário, abrangendo o período que vai de fins do Antigo Regime à Terceira República. O escopo do museu não é restrito ao território francês, estabelecendo relações com outros países da Europa. Pinturas e obras de estatuária de diferentes países foram incorporadas ao patrimônio do museu, demonstrando as dimensões e as conseqüências dos impulsos revolucionários. Esses impulsos podem ser analisados através do repertório de alegorias e de representações da pintura histórica. Para o visitante, os grandes quadros com representações históricas do século XIX chamam naturalmente em primeiro lugar a atenção nas escadarias e nos amplos espaços do palácio. Representam sobretudo testemunhos da historização e monumentalização de ocorrências históricas a posteriori, ou seja, permitem visões e sugerem estudos sobre e a cultura memorial da França. O museu procura aguçar a sensibilidade do visitante para o interrelacionamento entre a atualidade política das diversas épocas e a pesquisa histórica. Nas reflexões encetadas, recordou-se o significado da Revolução Francesa e suas conseqüências para a história América Latina. Salientou-se, porém, que a perspectiva dos estudos deveria não apenas englobar questões de recepção cultural, de idéias, de influências e de assimilações. Uma visão histórica dirigida a contextos globais poderia considerar desenvolvimentos surgidos em regiões do mundo extra-europeu que precederam, prepararam ou acompanharam a eclosão francesa. Uma perspectiva teórico-cultural poderia aqui ajudar à historiografia a superar orientações heroizantes e monumentalizantes de um passado que necessitaria ser tratado de forma mais diferenciada e crítica.
História de dentro e revelação de protagonistas
Entre as obras discutidas, considerou-se um exemplo da assim-chamada "história de dentro", o muito difundido livro de Pierre Gaspar L'Ombre de Robespierre (Paris: Gallimard, 1979). Seguindo a tendência historiográfica mais recente de não considerar-se apenas os grandes vultos e os grandes acontecimentos políticos, o autor concentrou-se na sua narrativa popularizante na troca de correspondência entre o agente particular de Robespierre, Marc-Antoine Jullien, e a sua mãe. Procurou, assim, não tanto considerar as grandes ocorrências, mas as premissas mentais de processos, sobretudo a auto-consciência de círculos burgueses influenciados pelas idéias de direito natural de Rousseau. Marc-Antoine Jullien que ainda muito jovem escreveu panfletos, pertenceu a um clube de jacobinos, realizou carreira rápida na política, foi co-responsável pela execução de Girondinos e é visto como em parte responsável pela morte do próprio Robespierre. Foi citado de passagem por Stendhal e outros autores do século dezenove. É, porém, esquecido, ou melhor, silenciado. As razões desse silêncio são vistas pelo autor também no interesse da família em esconder documentos que traria luz negativa sobre os seus descendentes pelos crimes que cometeu. Já no século XIX ouvia-se o que alguns interessados em questões patrimoniais de hoje tanto lamentam: o fato de não terem acesso a coleções particulares e o silêncio de informantes quanto a partes da documentação. O trabalho de Pierre Gaspar levanta também um outro tipo de questões: quando se pensa no redescobrimento ou até mesmo na revelação de nomes esquecidos ou submersos do passado costuma-se mencionar sobretudo a necessidade de justiça histórica. O historiador teria como dever realizar uma justiça póstuma àqueles que não souberam fazer propaganda de si próprios no seu tempo ou que foram silenciados por grupos dominantes ou influentes. No caso do "Sombra" de Robespierre, porém, o caso é diferente. Tem-se aqui, em estudo de caso, uma história que trata de uma pessoa que procurou silenciar sobre as suas próprias atividades políticas e atos questionáveis, e que nisso foi apoiada pelos seus descendentes, com receio de prejuízos para o bom nome da própria família.
Transfiguração do passado
Na sua já clássica "História Cultural da Era Moderna" (1927-1932), Egon Friedel (Kulturgeschichte der Neuzeit: Die Krisis der europäischen Seele von der Schwarzen Pest vis zum Ersten Weltkrieg, Munique: C.H. Beck, 1974), tentando responder à questão das causas de uma Revolução como a francesa, faz considerações que salientam o problema da transfiguração do passado. "O singular fenômeno da história dos povos de nome Revolução não se elucida de forma alguma pelo fato de termos nela tomado parte. Isso parece ser estranho à primeira vista; é porém muito natural. O contemporâneo nunca vê um acontecimento histórico no seu todo, sempre em fragmentos; êle recebe o romance em partes arbitrariamente cortadas, que surgem de forma irregular e muitas vezes não aparecem. Além do mais, a distância na concepção do tempo tem um outro significado do que a do espaço, ou seja, contrária: ela não diminui, mas atua como se fosse uma lente de aumento. Através dela, movimentos que observamos com uma certa distância de tempo ganham uma clareza que aqueles que o viveram não perceberam; parecem-nos porém muito mais rápidos do que foram na realidade, mas também isso facilita a sua compreensão. (...) quanto mais longe se encontra uma ocorrência, mais rápida parece no microscópio do tempo. (...) Se ficamos atônicos com a Revolução européia da atualidade, podemos ao menos nos consolar em saber que também os contemporâneos da francêsa não a compreenderam, mesmo os mais inteligentes. Ninguém ouviu a sua chegada, ninguém sentiu o tremor subterrâneo. (...)" (op.cit., pág. 848 ss.)
Cenografia e imagens
Para os estudos culturais, cumpre sobretudo retomar o pensamento de Egon Friedel quando salienta o papel de fatores culturais, em especial visuais na Revolução Francesa:
"A Revolução Francesa teve, ao lado de várias outras características, uma que salta particularmente à vista. Uma Revolução é em geral destruição sem sentido, algo animalesco-selvagem, terrificamente feio: cavalos mortos, casas atingidas, lojas roubadas, pontes explodidas, corpos humanos carbonizados e dilacerados. A Revolução Francesa porém, surge, apesar de terrível, como algo não feio; ela tem para nós algo de pitoresco-demoníaco. Como é que uma Revolução passa de caos colérico de ambição e loucura, que é a sua aparência física, a ser um fenômeno estético?
Isso tem, cremos, duas razões. Primeiramente, uma geral. Todos os acontecimentos, assim que se tornaram históricos, ou seja, que possam ser vistos à distância, são por nós considerados até certo ponto como fenômenos artísticos. (...)
A isso soma-se uma particularidade da Revolução Francesa: ela reside simplesmente no fato que essa Revolução foi francesa. O francês possui a saber o misterioso e paradoxo talento de fazer de tudo (...) um romance; ele sabe fazer um certo arranjo estético e dar-lhe uma encenação expressiva (...)." (pág. 854-855) "No seu relato sobre a sessão do Convento de 16 de janeiro de 1793, que votou a morte do rei, Mercier fêz a observação: "tout est optique"; uma frase singularmente elucidativa. Parece que toda essa Revolução Francesa foi para muitos um teatro fantasmagórico, tais como o que acontece num caleidoscópio. Essa atmosfera quase que mágica foi por ninguém descrita de forma mais sugestiva do que Carlyle na sua French Revolution (...)." (pág. 856)
O Kitsch da Revolução
No contexto dessas considerações sobre a função da cenografia, da participação de seus protagonistas em representação quase que teatral, na qual componentes imagológicas desempenhavam importante papel na conformação de opiniões e de consciência, o autor fala do Kitsch revolucionário, um conceito que não apenas surge no sentido de mau gosto ou de estética trivial, mas sim como expressão de discordância entre conteúdos e imagens, de inveracidade ou seja, de fenômeno de natureza ética.
"Enfim: quando se observa todas essas eternas festas de liberdade e cortejos em grande estilo, essa pompa esbanjadora de comparsas enfeitados e ruidosos, de máscaras e requisitos simbólicos, de gêsso, papelão e lata, então parece que a Revolução foi concebida pelo povo francês como uma espécie de opereta trágica. Ela está muito próxima à margem do Kitsch. Um dia entra na Assembléia Nacional um camponês de 120 anos e manifesta para a comoção geral os sentimentos republicanos. De uma outra vez aparece Anacharsis Cloots, seguido de representantes do gênero humano, caldeus de longas barbas, chineses de tranças, etíopes de pele queimada, turcos, tataros, gregos e mesopotâmios que saúdam a Revolução; na verdade parisienses mascarados, estatistas pintados (...)." (pág. 858) Seria de interesse retomar esse pensamento na análise de certas expressões da história político-cultural da América Latina.
(...)
G.R.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).