Doc. N° 2056
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
97 - 2005:5
Tema em debate
Configurações históricas de Estado na Europa e concepção de história transnacional
A presente edição da revista Brasil-Europa publica relatos de alguns dos trabalhos realizados em 2005 pela Academia Brasil-Europa no Sul da França. A escolha das relações França-Brasil como centro das atenções do ano 2005 justificou-se pela passagem dos 20 anos de encontro realizado na antiga abadia real de Royaumont, não distante de Paris. Naquele encontro, foram debatidos e colocados marcos de renovação teórica dos estudos culturais de contextos franco-brasileiros da A.B.E. O debate, na ocasião, dirigiu-se a questões das relações entre a assim-chamada Antropologia Fundamental e da História Cultural em contextos internacionais. Para o programa a ser desenvolvido na França, em 2005, escolheu-se como principal tema a ser debatido o da historiografia transnacional, com especial consideração da história cultural. Esse conceito, hoje tornando-se lugar comum, exige reflexões mais aprofundadas e críticas construtivas. Já há décadas a A.B.E. vem salientando, nos seus eventos, que a literatura historiografica é em geral por demais presa a perspectivas nacionais. Essa constatação não diz respeito apenas a obras de cunho nacionalista dos diversos países. Mesmo obras não explicitamente nacionalistas, até mesmo de intenções e escopos internacionais ou globais mostram-se mais ou menos condicionadas pelo ponto de observação dos autores, pelo sua formação e inserção cultural ou pelas instituições que as possibilitaram ou promoveram. Como grande parte da literatura historiográfica consultada provém dos últimos 100 ou 150 anos, tem-se em grande parte obras que surgiram no contexto e da perspectiva de estados nacionais. Dos problemas que daqui surgem, alguns podem ser aqui lembrados: Há o perigo de anacronismo na análise de fatos e desenvolvimentos históricos anteriores. Estes tendem a ser tratados na consciência de situações de estado nacional que se desenvolveram posteriormente, como se tivessem sido passos quase que naturais de um vir-a-ser orgânico, predestinados para uma situação futura. Essa história assume um cunho de prolegômeno e o contexto analisado é considerado sobretudo nas suas potencialidades para aquilo que viria a ser. Sob o aspecto da história cultural, procura-se nesse passado sobretudo indícios para o estudo de gênese de formas e expressões que o historiador conhece de épocas posteriores. A situação determinada pela identidade nacional de épocas recentes surge assim como quase que com características "naturais" e essencializadas, não como momento de processos. Toda a produção cultural que não manifesta determinadas características vistas como expressões da identidade nacional - no caso da música ritmos, fórmulas melódicas, gêneros -, são assim muitas vezes consideradas como de inspiração alienígena ou espúrias. Passados alguns anos, percebe-se então que essa produção com características nacionais também esteve submetida à história, também tornou-se expressão de uma época passada, também não esteve isenta de influências internacionais. A projeção de estados nacionais posteriormente surgidos e suas identidades a épocas anteriores impõe critérios seletivos e valorativos na análise de contextos e processos: apenas aqueles que surgem como preparativos ou antecedentes de situações posteriores é que recebem maior atenção. Regiões que pertenciam a outros países ou que eram estados independentes passam a ser consideradas, ainda que de forma inconsciente, sob a perspectiva do estado nacional surgido posteriormente. Supõe-se que este teria sido quase que um desenvolvimento naturalde situações. Esquece-se que poderia ter havido outros desenvolvimentos, surgido outras configurações, e que o resultado foi muitas vezes produtos de circunstâncias e fatores não determinados pela predestinação, apenas de probabilidade no desenrolar de processos. Essa situação não diz respeito apenas ao Brasil e a outros países de passado colonial. Diz respeito também à Europa. Os muitos pequenos estados, reinos, principados, ducados do passado não podem ser tratados apenas como províncias ou regiões da Itália, da Alemanha, da França e de outros países cuja feição de unidade nacional segundo concepções atuais configurou-se no decorrer do século XIX. Esses reinos e ducados foram países ou configurações de Estado com história diferenciada, com símbolos, imagens e identidades mais ou menos definidas. Qual é porém o estudante alemão de hoje que sabe da história de Baden? Qual é o europeu que conhece o passado do Reino de Nápoles e Duas Sicílias? Esses e muitos outros estados submersos são simplesmente subsumidos nos atuais estados nacionais em tópicos de enciclopédias e obras de história geral. Uma região que tinha características próprias de identidade histórico-política e que às vezes por séculos não pertenceu a determinado país é quase que naturalmente enquadrada sob a perspectiva da França, da Alemanha, da Itália ou de outra nação. Se essa situação apresenta dificuldades para análises históricas apropriadas os estudiosos europeus com relação à Europa, muito mais complexa se apresenta quando se considera a história cultural em relações internacionais. Pode-se falar de relações culturais entre a Itália-Brasil quando se considera contexto que não pertencia ao atual estado nacional italiano? Até mesmo as relações diplomáticas e políticas de passado não muito remoto foram desenvolvidas com reinos desaparecidos, tais como o de Nápoles. Como é que se pode considerar adequadamente por exemplo a política matrimonial do Império brasileiro se a perspectiva for determinada pela nação que apagou a existência de um estado do qual provinha a imperatriz? O estudo da história cultural em relações internacionais exige, portanto, a difícil tarefa de inserção do estudioso em situações desaparecidas de Estado e na posição dos historiadores das diferentes nações que consideraram o seu próprio passado segundo perspectivações nacionais de sua época. Sob esse aspecto, pode-se falar em historiografia transnacional, compreendendo-se o termo como uma historiografia que atravessa as várias histórias nacionais e suas perspectivas. O termo, porém, não pode ser entendido apenas no sentido coloquial da expressão transnacional, como se aqui se tratasse de alguma rodovia ou companhia. Nas ciências culturais - e aqui se trata de estabelecimentos de vínculos entre perspectivas antropológico-culturais e históricas - , expressões similares já foram há muito discutidas e foram alvo de questionamento. Esse é o caso, por exemplo, do termo "transculturação", cujas conotações impossibilitam o uso do termo transcultural sem a necessária diferenciação. Uma historiografia transnacional não é o mesmo que uma historiografia internacional. Essa distinção é salientada sobretudo por aqueles que consideram o complexo de sentidos e conotações que em várias regiões e épocas foram vinculadas ao internacionalismo. Uma historiografia transnacional, porém, também não pode ser simplesmente uma média de historiografias nacionais, pois trata-se aqui antes de perspectivações. O termo tem uma carga de sentidos muito mais profunda e complexa, pois pode subentender uma transformação, um processo metamorfoseante de nacionalidades. Nesse sentido, tratar-se-ia de um questionamento altamente instigante e sem dúvida relevante em vários contextos, não é, porém, pela sua especificidade, o intendido por aqueles que defendem o conceito de historiografia transnacional. O problema, por fim, reside na intenção de se querer superar os problemas criados pelas várias perspectivas nacionais na historiografia mantendo-se o conceito de nação, implícito na qualificação transnacional. A Academia Brasil-Europa tem optado, nas suas reflexões, antes pelo uso do termo cultura como condutor do pensamento. Esse conceito traz em si também uma grande complexidade, tem sido visto porém como mais abrangente, podendo englobar os fenômenos e processos intendidos pela assim-chamada historiografia transnacional. Estudos interculturais não significam o mesmo que estudos internacionais e estudos históricos em relações ou contextos internacionais não são o mesmo que estudos históricos transnacionais. Embora considerando de modo crítico a expressão, a A.B.E. procurou discutí-lo em função de determinados contextos da Savóia.
G.R.