Doc. N° 2054
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
97 - 2005:5
Savoyards História intercultural de migrações e de identidades regionais européias
La Grave. Trabalhos da A.B.E. 2005
No contexto dos trabalhos do ano França-Brasil da Academia Brasil-Europa, dedicou- especial atenção a uma região singularmente pouco considerada na história das relações internacionais: a Savóia. Tendo passado apenas em meados do século XIX a pertencer à França, foi um país independente, de antigas tradições, identidades e imagens próprias. Um aspecto que os franceses freqüentemente procuraram salientar foi o de que a anexação da Savóia à França em meados do século XIX, referendada por um plebiscito, representou a vontade popular. Teria havido já há muito uma mentalidade francesa na região. A justificativa para essa constatação ou suposição foi procurada no movimento migratório de pobres camponeses das montanhas. A pobreza do interior da Savóia foi salientada por estudiosos de questões de geografia humana e cultural e tratada em magazines ilustrados de ampla divulgação. A razão era vista nas próprias condições naturais dos altos montes, com os seus grandes rochedos, nas dificuldades da vida pastoril e agrícola, nos invernos rigorosos e, sobretudo, na grande fertilidade das famílias de camponeses.
Quando os filhos atingiam a idade adulta, eram obrigados a abandonar temporariamente a casa paterna para ganhar a vida em cidades dos vales, mais prósperas pelo comércio e pela indústria. O movimento anual de emigração era tão consideravel que o nome de savoyard foi freqüentemente aplicado na lingua usual a todos os pequenos trabalhadores. Avaliava-se a mais de 5 milhões de francos por ano a soma total que os 25.000 savoyards que se expatriam por um tempo trazem cada verão ao país. "Une partie considérable de la Savoie consiste en cimes couvertes de neiges et en roches infertiles. Les cultures ne comprennent guère que le tiers de la superficie départementale; mais entre les champs cultivés et les pentes à climat polaire s'étend la région des pâturages, dont l'herbe fine et savoureuse, transformée en lait, en fromages, en viande, est l'une des grandes richesses de la Savoie. La population de la contrée s'occupe principalement d'agriculture et de l'élève des bestiaux de la race tarine; en outre, quelques industries prospèrent dans les villes de la plaine (...). Quoique les montagnes désertes occupent une part si notable de la Savoie, les habitants y sont beaucoup plus nombreux que dans les Hautes et les Basses-Alpes: la cause en est à la nature des roches, qui ne s'éboulent pas aussi facilement, à la plus grande humidité du climat, au meilleur aménagement des pâturages et des forêts, et sans doute aussi au rôle d'intermédiaire commercial entre la France et l'Italie, qui appartient depuis tant de siècles à la Savoie. Cependant le pays ne peut nourrir tous ses enfants, et le mouvement annuel d'émigration est si considérable, que le nom de savoyard est souvent appliqué dans le langage usuel à tous les gagne-petit descendus des montagnes dans les grandes villes de la plaine. M. Hudry Menos évalue à 5 millions de francs par année la somme totale que les 25.000 Savoyards qui s'expatrient pour un temps rapportent chaque été dans le pays. Ils emploient ces profits à l'achat de petits coins de terre." (E. Reclus, Nouvelle Géographie Universelle II: France, Paris: Hachette, 1879, 512) A descida desses jovens camponeses que vendiam produtos mas que também aceitavam qualquer tipo de trabalho tornou-se um lugar comum nos textos que consideraram a vida popular da França. Vinham com trajes antigos e singulares, traziam costumes rurais, falavam em dialeto, apresentavam-se como músicos, executantes de instrumentos populares, de conotações pastorís e rurais. Tornaram-se tipos por excelência de um folclore montanhês. Esses campôneos empobrecidos não desciam porém apenas às cidades vizinhas da planície, mas tendiam por último a Paris. E aqui residia a justificativa francesa para o elo profundo dos habitantes da Savóia à França: os montanheses não teriam procurado tanto a outra vertente de sua região, a Lombardia, mas sim teriam sido sempre atraídos pela França, centralizada no longínquo Paris. Apesar de sua rusticidade e de sua condição social inferior surgiam assim com conotações simpáticas e eram vistos com benevolência. "Quand autrefois les pauvres petits Savoyards, forcés par la misère d'abandonner pour longtemps peut-être leur hameau, leur famille, descendaient à l'automne de leurs âpres montagnes afin d'aller dans les villes gagner leur vie en toutes sortes de petits métiers, ramoneurs, rétameurs, joueurs de vielle, montreurs de marmottes, avec une paire de sabots neufs aux pieds et un pain noir dans le bissac; quand les mères les avaient conduits jusqu'à la croix de bois, au détour du chemin de la vallée, et là, pour la dernière fois, les avaient embrassés avec des adieux tout pleins d'angoisses et de larmes et les recommandations suprèmes aux plus âgés, conducteurs de la petite troupe...où allaient-ils, par la longue route sans fin qui s'abaisse vers la plaine et s'enfonce là-bas à travers les arbres gris? En France, à Paris." (loc.cit.) Também em Paris eram os savoyards conhecidos como os rústicos por excelência, representantes da vida montanhesa e pastoril. Procuravam conseguir meios financeiros de todas as formas para ajudar familiares nos seus lugares de origem. Retornando, aplicavam o seu dinheiro na compra de propriedades e na construção da própria casa. Continuavam, assim, profundamente vinculados com o mundo das montanhas. Mesmo assim, a estadia em Paris não ficava sem conseqüências. O francês de Paris passava a influenciar a fala regional, as impressões permaneciam vivas e o desejo de retorno levava muitas vezes a outras emigrações. Teria havido assim, segundo os estudiosos do século XIX, um sistemático afrancesamento de mentalidades e de modos de vida na Savóia no contínuo ir e vir dos montanheses. (...) quoique la plaine lombarde étale sur l'autre versant des monts sa corbeille pleine de fleurs et d'épis. Revenus plus tard au village natal, ils rapportent le souvenir de cette autre patrie où ils ont été accueillis, où ils ont trouvé aide fraternelle et travail, et mêlent les idées parisiennes aux moeurs montagnardes, le français parisien au patoi maternel. - C'es pourquoi, depuis des diècles, ils sont Français de coeur; ils l'étaient bien avant que la Savoie fût réunie à la France. Ce splendide et pauvre pays, qui a le Mont-Blanc, la rive du Léman et le lac du Bourget, la percée du Mont-Cenis, - les merveilles de la nature et celles de l'industrie humaine, - et qui ne peut pas nourrir ses habitants, c'est notre Suisse française, comme l'autre ayant ses Alpes, ses neiges, ses glaciers, ses torrents, ses forêts, ses pâturages aux flancs des montagnes et ses chalets, d'étroites plaines de culture au pied des rocs. Ses habitants, les Savoyards, ou, si vous préférez, les Savoisiens, ressemblent aussi tout naturellement, par le costume et les coutumes, aux Suisses des cantos forestiers. Montagnards et bergers également, fabricants de fromages, guides des voyageurs pour les excursions, ce sont les plus braves gens et les gens le plus braves du monde." (Ch. Delon, Les peuples de la terre, Paris: Hachette, 1905, 46)
Questões identificatórias de auto-afirmação
Hoje, à luz dos debates atuais e das análises de processos de integração, poder-se-ia dizer que tudo indica que esses montanhesesse tornavam por assim dizer até mesmo mais franceses do que os franceses, mais parisienses do que os parisienses. De muitas situações de transformações de identidades se conhece o fenômeno relacionado com uma labilidade de posições que leva a exageros auto-afirmativos e demonstrativos de integração. Se mais fundamentado, esse seria um processo de relevância para os estudos das relações entre a França e o Brasil. Sabe-se, no exemplo de alguns nomes relevantes, que alguns franceses que se destacaram de forma excepcional na difusão da cultura francesa no Brasil provinham de regiões afastadas e limítrofes da França. Não provindo de grupos sociais de prestígio e atuando no país inicialmente em posições relativamente modestas de trabalho e do comércio, atuaram singularmente na difusão de atitudes e modos de vida parisienses.
Imagens do montanhês e do mundo pastoril
Haveria também um outro aspecto a ser considerado. A imagem do savoyard, do montanhês rústico mas visto com simpatia, marcou na Europa a imagem da vida pastoral na sua simplicidade e ingenuidade. Dando seqüência a concepções e expressões de enobrecimento da vida simples provindas do século XVIII, o século XIX conheceria uma forma menos aristocrática, mais burguesa dessas representações da vida campestre. Os montanheses da Savóia inseriram-se nesse imaginário rústico-pastoral. É digno de nota , por exemplo, a presença de campôneos e pastores na música de salão da época, e essa música foi conhecida e praticada no Brasil. Não se relacionavam com camponeses brasileiros, mas sim, com os seus títulos em francês, a pastores e pastoras da França. Essas imagens, portanto, que entraram nas casas brasileiras sobretudo pela cultura de salão, assinalam uma transformação da história do universo simbólico pastoril no Brasil. As tradições pastorís, de antigas raízes, constituem até hoje importante elemento na configuração festiva natalícia - e joanina - no país. As representações, com vínculos mitológicos e alegóricos a partir de fundamentação bíblico-hermenêutica, apresentavam no passado linguagens visuais provenientes de outros contextos. Uma reconscientização a respeito dos valores dessas tradições em certos círculos de tradicionalistas e estudiosos do século XIX parece ter estado vinculada com uma cultura burguesa, então de marcante influência francesa. O renovado despertar de interesses pelo pastoril no Brasil poderia aqui estar vinculado a similar processo ocorrido na França, à simpatia pelos savonards à época da integração da Savóia. "No salão repleto de rosas e fantasias, alentado ao sôpro dos cantos dos dias nacionais, o presepe alteia-se majestoso, com suas arcadas vegetais e aromáticas, seu horizonte largo e azul, sua lua transparente e sua estrêla legendária. Adiante de uma paisagem sem arte, de arvoredos de pinho pintado, fileiras de casinhas brancas estendem-se, confinando com duas fortificações encimadas por tropas francesas, guarnecidas de peças de artilheria, tendo aos ângulos atiradores que disparam espingardas ou calam baionetas. As ruas são na generalidade pouco populosas, a menos que algumas figuras, fornecidas pela quinquilharia francesa e alemã, se lobriguem salteadas, mais vulgarmente zuavos e mouros." (Mello Moraes Filho, Festas e Tradições Populares do Brasil, 3a. ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet 1946, pág. 69)
(...)
G.R.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).