Doc. N° 2053
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
97 - 2005:5
Estudos de Stendhal em perspectivas supranacionais e transepocais Da ambição e da falsidade como questões culturais
Grenoble. Trabalhos da A.B.E. 2005
No âmbito dos trabalhos dedicados ao ano França-Brasil 2005 da Academia Brasil-Europa dedicou-se especial atenção a regiões do Sul e do Sudeste da França. A principal cidade considerada foi Grenoble. Esta cidade da região da Isère, emoldurada por grandiosa cadeia de montanhas, em cuja área confluem os rios Isère e Drac, foi, através de seus vales, desde a Antiguidade, local privilegiado de passagem, de intercâmbio e de migrações. Por ela, a antiga Gratianopolis, o vicus de Cularo dos antigos Allobroges, passaram os exércitos de Hannibal. Grenoble foi, durante séculos, um dos poucos grandes centros intelectuais da região. Já nos séculos XVIII e XIX era conhecida pelas suas bibliotecas, museus e instituições de ensino. Indústria e artesanato contribuíram para o seu florescimento econômico, entre elas sobressaindo-se a da fabricação de luvas, na qual a cidade dominou o mercado francês. A vida social e cultural local seguia, assim, o pulso da moda parisiense. Não distante de Grenoble, a pequena cidade de Vizille, à Romanche, também produtora de tecidos, de lenços e outros produtos de moda, foi, no seu castelo, o local onde se deu um marco importante na história da Revolução Francesa, em julho de 1788, quando as municipalidades decidiram recusar o pagamento de impostos não votados pelos Estados Gerais (veja texto correspondente nesta edição). Assim, a história cultural da região, da qual Grenoble é a capital, surge singularmente marcada por uma cultura da vida social de moda e pela história revolucionária. O visitante atual de Grenoble, impressionado pela magnificência de sua situação natural, pela excelência de sua configuração urbana e pelo seu patrimônio arqueológico e arquitetônico não supõe à primeira vista o significado da região para a compreensão de importantes momentos da história européia - e global - do século XVIII e XIX. Uma das possibilidades de aproximação empática a tais configurações histórico-culturais do passado permite o estudo de um dos grandes nomes de Grenoble: Stendhal.
Stendhal e o Brasil
Através de Stendhal tem-se também o vínculo mais conhecido entre a história cultural de Grenoble e o Brasil. Stendhal foi um dos autores franceses mais lidos no século XIX no Brasil. Machado de Assis, numa das crônicas para A Semana (1 de dezembro de 1895), chegou a falar de Stendhal como moda intelectual, ao lado da de outros modismos: "A moda passará como passou a de Dumas pae, a de Lamartine, a de Musset, a de Stendhal, a de tantos outros, para tornar mais tarde e definitivamente. Às vezes, o eclipse chega a ser esquecimento e ingratidão. (...) A gloria veiu depois da moda, e poz Dumas pae no logar que lhe cabe n'este século, como fez aos outros seus rivaes. Cada genio recebeu a sua palma." (Machado de Assis, A Semana 3, Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: Jackson 1942, 51-52) A consideração de Stendhal pode ir muito além daquela de natureza histórico-literária e nela pode-se exercitar de forma particularmente produtiva enfoques teórico-culturais de relevância para o debate atual. A vasta bibliografia específica dos estudos literários concernentes a Stendhal pode servir aqui de ponto de partida para uma gradual mudança de perspectivas disciplinares e que leva da literatura à ciência da cultura.
Henri Beyle e o mundo napoleônico
Nascido em Grenoble, com o nome de Henri Beyle (2783-1842), teve uma infância marcada por crises afetivas em ambiente caracterizado por ambições de um círculo pequeno burguês. O seu pai, advogado no parlamento local, casou-se com a irmã de sua mãe, falecida muito cedo, e o futuro escritor foi apoiado nos seus estudos pelo avô materno, médico e estudioso. Em 1799, transferiu-se para Paris para estudar na Escola Politécnica. Ali, dedicou-se à vida social e cultural, escrevendo ensaios e peças teatrais. Através de primos afastados, os irmãos Daru, aproximou-se do círculo de Napoleão Bonaparte. Entrando no serviço militar, em 1800, tomou parte na expedição vitoriosa à Itália, uma experiência que marcaria a sua vida. Acompanhando os sucessos dos feitos napoleônicos, realizou carreira. Em 1808, assumiu um alto posto no funcionalismo do Reino da Vestfália, governado pelo irmão de Napoleão, Jérôme. Foi nomeado chefe da administração dos bens imperiais, ou seja, de castelos e de obras de arte. O término do período napoleônico significou também o fim da carreira de Beyle na política e no funcionalismo. Em 1815, transferiu-se para Milão, de onde, perseguido pela polícia austríaca, fugiu para Paris, em 1821. Deixado de lado no período da Restauração, atuou como oposicional bonapartista. Essa vida de ambições frustradas parecia ter chegado a seu fim com a Revolução de 1830. Entretanto, Beyle alcançou apenas o cargo de Consul na cidade de Citavecchia, nos Estados Pontifícios. O pseudônimo de Stendhal foi escolhido em homenagem à cidade alemã em que nasceu Winckelmann, um vínculo singular, pois aqui se tratam de personalidades totalmente distintas. O renome de Winckelmann na Itália parece ser aqui um dos fatores que explicam tal escolha. Na sua atividade como escritor, Stendhal dedicou-se inicialmente a trabalhos de cunho histórico-biográfico de vultos quase que heróicos de sua época (Vie de Napoléon, 1817, Vie de Rossini, 1823). Escreveu também obras de História da Arte (Histoire de la peinture en Italie, 1817) e livros de viagens (Promenades dans Rome, Naples et Florence, 1817 e 1826). Em 1827 lançou o seu primeiro romance (Armance).
Le Rouge et Le Noir: Romance emblemático
A sua mais difundida obra foi o romance Le Rouge et Le Noir, lançado em 1830. Designado como "Crônica do século XIX", Stendhal criou aqui um romance de estreito vínculo com a história social e cultural de sua época. O autor, como defensor do "sistema da opinião pública", no qual via a garantia da liberdade, nele encontrava o aspecto negativo da falta de respeito à esfera privada. Aqui residiria a tristeza da América e da Inglaterra. Por essa razão, para não cair no mesmo êrro, fêz com que a ação de seu romance se desenvolvesse numa cidade-fantasia, a de Verrières. A estória desenvolvida trata da vida de um pequeno burguês da província, Julien Sorel, jovem extremamente ambicioso. Inspirado em caso criminalístico real, o autor esboça a figura de um filho de um proprietário de moinho, admirador de Napoleão, que estava decidido a alcançar nome e riqueza. 20 anos antes a sua ambição o teria levado à carreira militar. Na época da Restauração, precisa seguir a carreira eclesiástica. Tendo decorado trechos da Bíblia, onsegue um posto de professor na casa de um prefeito. A sua vaidade faz com que inicie um caso amoroso com a mulher do seu empregador. Para impedir um escândalo, é enviado a um seminário, onde vivencia um clima de hipocrisia, cinismo e falsidade. Julien consegue abandonar esse seminário e recebeu um posto com o Marquis de La Mole, um retornado do exílio. Mathilde, a filha do Marquês, procura conquistá-lo. Nenhum dos dois se amam, Mathilde representa para Julien uma possibilidade de subida social. Para ela, Julien é um homem vindo de classe baixa, de significado apenas enquanto for por êle desprezada. Grávida, consegue do pai que o faça oficial e o eleve à nobreza. Pouco antes do casamento, o Marquês toma conhecimento da verdade sobre as ambições de Julien. Este é condenado à morte. Também algumas de suas obras posteriores mostram estreitos vínculos com desenvolvimentos sociais contemporâneos. Após 1830, Stendhal deu início a Lucien Leuwen, história de um filho de banqueiro que segue a carreira de oficial mas que desenvolve simpatias pela nobreza destronada com a Revolução de Julho. Em 1835/36, Stendhal escreveu a sua própria história de juventude no livro Vie de Henry Brulard. Em anos de popularidade do romance histórico, escreveu novelas sobre a vida na Renascença italiana, que admirava pela energia dos homens da época (Chroniques italiennes, 1837-39). Em 1839, escreveu o romance La Chartreuse de Parme, a história de um jovem nobre da Lombardia que auxilia Napoleão e, na Itália da Restauração, consegue chegar a ser bispo.
Processos sociais na história cultural
A obra de Stendhal - e também a sua história de vida - oferece subsídios para a análise de um período da história do século XIX de particular relevância para o Brasil. O campo de tensões entre configurações sócio-culturais napoleônicas e aquelas da Restauração é tratado de forma altamente sugestiva, sobretudo no romance Le Rouge et Le Noir, e o historiador cultural tem a sua atenção dirigida tanto à ascensão de grupos humanos de classes subprivilegiadas sob o imperador corso como à emigração e ao retorno de emigrados nas suas conotações e conseqüências culturais Na atmosfera restritiva da época da Restauração, dominada pelos nobres retornados e pela Igreja, quando a origem voltou a contar, o ambicioso Julien não consegue alcançar sucessos correspondentes a suas pretensões. Apesar de seus méritos e talentos, não alcança triunfos nem na carreira militar (o Rouge), nem na eclesiástica (o Noir). Um aspecto importante no estudo da obra de Stendhal é a crítica à falsidade e à hipocrisia da sociedade de sua época. Compreende-se que essa crítica parta sobretudo daqueles que, quando jovens, imbuídos de extraordinária ambição de renome, de riqueza e de ascensão social, viram em Napoleão um modêlo e que posteriormente, após o término de sua época, sentem-se desapontados e passam a criticar a corrupção e repressão da sociedade conservadora. Uma das questões que se colocam na tentativa de mudança do paradigma literário ao cultural na consideração de Stendhal é se o campo de tensões tratado diz respeito somente a uma situação válida para a França do século XIX ou se é muito mais abrangente, correspondendo a mecanismos de um desenvolvimento de cunho processual a ser estudado em contextos internacionais. Poder-se-ia, também na América Latina, detectar um similar campo de tensões criado por alternâncias entre momentos de poder de grupos em ascensão e aqueles restaurativos de "retornados" ao poder. Num dos casos ter-se-ia a hora do militarismo, por ter-se aqui a principal possibilidade de subida social, no outro a hora da aristocracia, de retornados do Exterior e da Igreja. Essa estrutura assim delineada não coincide com a visão mais difundida que vê nas épocas marcadas pela ação militar de forma demasiadamente indiferenciada somente o momento de reacionarismo. Tais períodos poderiam talvez ser explicados através de processos por assim dizer bonapartistas ou cesaristas. Em ambos os casos, porém, ter-se-ia uma questão de ética: de um lado a ambição desmedida a renome e a poder, ao imperialismo militarista daqueles que querem subir; de outro, a hipocrisia, a falsidade, a falta de escrúpulos que leva à corrupção e a opressão. Seria possível haver aqui mecanismos em vigência de natureza transepocal? Seriam esses mecanismos explicáveis a partir de análises de processos de formação de identidades?
(...)
G.R.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).