Doc. N° 2052
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
97 - 2005:5
Retórica napoleônica sob a perspectiva dos estudos culturais em contextos transnacionais
Gap. Trabalhos da A.B.E. 2005
No âmbito dos estudos euro-brasileiros da A.B.E. no Sul da França, em 2005, uma sessão foi dedicada a reflexões contextualizadas na cidade de Gap.
Essa cidade é conhecida nos meios científico-culturais sobretudo pela Universidade do Mediterrâneo e pela Escola Nacional de Música ali instaladas, ambas instituições organizadoras de eventos internacionais. A cidade, porém, além de seus monumentos históricos, entre êles a catedral, oferece sobretudo sob o ponto de vista de uma história cultural em relações transnacionais possibilidades para estudos de contextos. Esse significado de Gap reside na sua localização e condições geográficas marcaram a sua história. De origem em povoado gaulês, foi elevada à cidade pelos romanos, sob o imperador Augusto, no ano 14, com o nome de Vapincum. A via de ligação com a atual Itália, através das grandes montanhas, é a do desfiladeiro aberto pelo rio Durance. O significado militar dessa via através da história é demonstrado pelas construções de defesa que ali se encontram a partir de Briançon. A integração de Gap à França data de 1512. O valor estratégico interno da localidade residiu no fato de ali próximo ter-se uma das passagens mais fáceis para a região dominada pelo rio Isère, através do vale do Drac. Também as montanhas que rodeiam a cidade não oferecem tantas dificuldades para serem transpostas como aquelas em direção a Briançon. Gap surge, assim, como ponto de passagem e de mediação natural entre Grenoble e as cidades do Baixo-Rhône. Essa situação estratégica e logística favorável surgia, no século XIX, como promissora para o desenvolvimento comercial da cidade: "En descendant de degré en degré les ressauts à travers lesquels la Durance s'est ouvert un chemin par une succession de défilés, la route vient passer au pied de la forteresse de Mont-Dauphin, puis à Embrun, autre place fortifiée, devenue comme Briançon chef-lieu d'arrondissement. Ce n'est d'ailleurs qu'une bourgade, dont le principal édifice est une prison et que dominent des montagnes nues, sillonnées de couloirs d'avalanches. Gap, le chef-lieu du département, la seule ville de quelque importance qui s'y trouve, semble aussi au premier abord être fort mal située, car elle est bâtie dans un cirque élevé (800 mèt.) à une dizaine de kilomètres de la Durance; mais précisément au nord s'ouvre un des passages les plus faciles vers l'Isère par la vallée du Drac, et Gap, devient en conséquence un intermédiaire naturel entre Grenoble et les villes du bas Rhône. Si les montagnes environnantes n'opposaient pas tant d'obstacles aux transports, surtout pendant l'hiver, Gap pourrait être aussi un grand entrepôt de mines et de carrières, car il existe dans les environs de riches veines de métal et des couches du plus beau marbre blanc." (Elisée Reclus, Nouvelle Géographie Universelle II Frances, Paris: Hachette, 1870, 529)
Napoleão retornado
Um dos fatos mais lembrados da história local foi a chegada de Napoleão, a 15 de março de 1815. Tendo abandonado Elba em fevereiro daquele ano, passou pela cidade com os seus homens. Tinha ali impresso milhares de exemplares de sua proclamação. Salienta-se sempre que toda a população o acompanhou ao deixar a cidade. Gap surge, assim, pelo seu papel de ponto de passagem, como um dos momentos significativos da história napoleônica. Levanta-se, naturalmente, a questão dos motivos mais profundos, culturais, que possibilitaram o apoio da comunidade e da sociedade que guarda a lealdade ao imperador. Quais seriam as razões culturais que permitiram o fenômeno Napoleão? Quais as suas repercussões na América Latina, ou melhor, quais os contextos globais que permitem compreender a singular ascensão de um homem "vindo do nada" à posição que alcançou?
Napoleão nos estudos culturais
O período de Napoleão tem sido estudado sob os mais diversos aspectos histórico-culturais, em particular no referente à história das artes. Há, porém, uma obra já antiga da História da Literatura Francesa a partir de 1789 (até 1935), a de Albert Thibaudet (+1936), que levanta um aspecto que necessitaria ser retomado sob perspectivas teóricas atuais: o do "clima" criado por Napoleão. (Histoire de la Littérature Française de 1789 à nos jours, Paris: Stock Delamain et Boutelleau, 1936; aqui cit. segundo a edição alemã Geschichte der Französischen Literatur von 1789 bis zur Gegenwart, 2a. ed. Freiburg/Munique: Karl Alber, 1954) Parece ser singular o fato de Napoleão ser considerado num capítulo especial da História da Literatura Francesa. Como literato Napoleão não está em geral presente em panoramas histórico-culturais traçados a partir da visão da América Latina. Thibaudet, porém, lembra aqui de opiniões de autores do século XIX: "Thiers disse - e Sainte-Beuve com êle concordou -, que Napoleão teria sido o primeiro escritor do seu tempo. Até mesmo afirmou-se paradoxalmente que o seu verdadeiro talento residia no terreno literário. Não se deve exagerar, mas certo é que a sua personalidade, mesmo se observada de diferentes pontos de observação, dominou a literatura de sua época. Se Victor Hugo, nos Orientales, diz que Napoleão se sobressaiu no horizonte do século como o vesúvio no horizonte de Nápoles, então essa imagem vale tanto para o século literário quanto para o político. Como Luís XIV, êle criou, com muito mais energia e menos sorte um clima, o clima de uma literatura fiscalizada e controlada. Apesar disso, não se deve responsabilizar o seu regime pela mediocridade da literatura sob Napoleão. Apenas matou o que não era capaz de viver! Se o período imperial foi apenas uma época de transição, isso somente por razões literárias. Por acaso as más relações de Chateaubriand e de Madame de Stael para com o senhor e mestre prejudicaram a sua obra? A má relação parece até mesmo tê-los incitado, para Chateaubriand significou a ocasião de seu Bonaparte et moi. O govêrno imperial é o único que colocou no alto de todo o sistema de ensino, da Université de France, um puro representante da literatura: Fontanes. Foi uma espécie de comissário permanente da literatura junto a Napoleão (...). A influência de Napoleão propriamente dita na literatura iniciou-se após a sua morte, quando o romantismo nas suas diversas formas viveu e escreveu uma Imitation de Napoléon." (op.cit. 17-18, trad. A.A.B.)
Retórica napoleônica e a América Latina
A repercussão e a influência a posteriori de Napoleão, ou de uma multisignificativa "Imitação de Napoleão" aqui salientadas não dizem respeito apenas à França ou a outras regiões da Europa. Dizem respeito também à América Latina. Como também salientado, não se trata aqui tanto de recepção de escritos napoleônicos no sentido específico do termo, mas sim de um complexo cultural marcado pela retórica: "A real entrada de Bonaparte no mundo da palavra escrita e permanente ocorreu com o apelo de Nizza à armada italiana: Soldados, Vocês estão nús... É a anacruse solene para o que se poderia chamar de Retórica napoleônica. Não há, deve-se salientar à margem, sem Retórica nenhuma ação de palavras sobre os homens. Mesmo que as proclamações de Napoleão, seus apelos e o seu falar surjam como ôcos por detrás dos lugares comuns, elas tiveram sucesso. Elas pertencem à categoria de manifestações da vida soldática que vence almas e massas." (op.cit. 19, trad. A.A.B.) A Retórica napoleônica nas suas repercussões posteriores à própria vida de Napoleão tem sido pouco considerada na história cultural latino-americana, embora haja indícios suficientes de seu significado. No caso do Brasil, poder-se-ia analisar sob esse aspecto sobretudo a época do Primeiro Império. Entretanto, tudo indica que a Retórica aqui deveria ser entendida numa acepção mais ampla do termo: a de um cunho retórico também de outras expressões culturais, mesmo não verbais. O intuito de convencer os ouvintes, próprio da Retórica, pode ser detectado, entre outros, em representações visuais e encenações. A relevância dessas aproximações para análises histórico-culturais é evidente: bastaria lembrar aqui que do cunho retórico dessas representações resultaria que o homem seria uma espécie de ouvinte, de receptor de mensagens. Tratando-se aqui, como salientado, de um fenômeno a posteriori, ou seja, de uma vigência da retórica napoleônica fora de sua época, mesmo em situações políticas contrárias, ter-se-ia aqui um fenômeno de cunho processual, impregnado de ímpetos retóricos. Quais seriam porém os pressupostos culturais que teriam permitido o surgimento desse complexo cultural de cunho retórico, que parece ser de tanta relevância para a história cultural dos países latino-americanos do século XIX? Também aqui abrem-se muitas possibilidades para estudos culturais abrangentes: o fenômeno Napoleão, a subida de um indivíduo "vindo do nada", de uma região marginal, a Córsica, sem ter o francês como língua materna, a dominador da Europa e a Imperador, surge como caso exemplar para questionamentos e análises relativos a problemas de identidade, de instabilidade social e mecanismos de autoafirmação ou de extremada ambição. Tem-se salientado que a figura de Napoleão atuou na juventude de seu tempo numa intensidade que hoje mal pode ser compreendida. Foi modêlo de uma convicção de que a subida social e o alcance de poder seriam alcançáveis, tudo dependendo da força de vontade. Estaria aqui uma das razões da força da retórica napoleônica em regiões recentemente descolonizadas? Seria essa a razão da permanência de uma linguagem visual napoleônica-cesarista em situações políticas mais recentes, seja a do ex-império central-africano, seja a de reinos insulares do Pacífico? A problemática napoleônica, vista da perspectivas dos estudos culturais, levanta outras questões daquelas relativas à emigração à época da Revolução Francesa e da influência de retornados da emigração em períodos posteriores. Também o Napoleão que voltava de Elba e passava por Gap era um retornado. A retórica da cultura napoleônica, porém, não era a da emigração. Explica-se antes através de mecanismos sócio-culturais relacionados com processos identificatórios de grupos marginalizados. Aqui residiria o interesse dos estudos napoleônicos para situações similares de ascensão na América Latina. Para isso, porém, o estudioso deve procurar outros caminhos de abordagem do que aqueles marcados por imagens francesas heróico-monumentalizantes. (...) G.R.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).