Doc. N° 2051
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
97 - 2005:5
Emigração e retornados na história cultural. Joseph de Maistre e o Brasil
Chambéry. Trabalhos da A.B.E. 2005
No contexto dos trabalhos dedicados ao ano França-Brasil da Academia Brasil-Europa, levado a efeito pela passagem dos 30 anos do encontro da Abadia de Royaumont, marco na reorientação teórico-cultural dos estudos franco-brasileiros segundo a perspectiva da A.B.E., dedicou-se especial atenção a uma região singularmente pouco considerada na história das relações internacionais mas altamente significativa para reflexões interculturais: a Savóia. Pela sua localização geográfica e pela sua história, a Savóia foi durante séculos ponte entre esferas culturais européias. Tendo passado apenas em meados do século XIX a pertencer à França, foi um país independente, de antigas tradições, identidades e imagens próprias. Pertence, assim, ao rol daquele países ou unidades político-culturais submersas na história e pouco presentes na historiografia surgida sob a perspectiva de estados nacionais. Até a sua passagem à França, os estudos histórico-culturais das relações euro-brasileiras necessitam aqui considerar essa situação particular da Savóia. Trata-se, portanto, para o desenvolvimento de estudos segundo perspectivas adequadas, de primeiramente tentar-se uma inserção empática do estudioso em configuração histórico-cultural desaparecida, procurando reconstruir elos entre as várias regiões a partir de pontos de observação pertinentes, determinar os seus centros, suas rêdes sócio-culturais e sua própria história científica e cultural. Sob a perspectiva dos estudos culturais, a Savóia surge como região particularmente instigante pelo papel desempenhado no passado pela emigração e pela força de suas tradições culturais populares. A atual Savóia como departamento francês não perfaz todo o antigo território que era designado com esse nome. Savóia foi, até a sua integração na França, designação de toda a parte do reino da Sardinha situada na vertente ocidental dos Alpes. Tentativas de reconstrução dessa configuração desaparecida necessita assim considerar também regiões que pertencem à Itália, com todos os problemas daqui decorrentes quanto a fontes, museus e diferentes perspectivações. A Savóia francesa pode ser considerada em função de três sub-regiões segundo a qual foi dividida na Geografia francesa após a sua integração. A primeira sub-região seria a Savóia propriamente dita, marcada pelas terras baixas de Chambéry e pelo lago de Bourget, cujas águas correm diretamente ao Rhône. A segunda sub-região seria a Tarentaise, à qual pode juntar-se o antigo distrito chamado de Alta Savóia, marcada pelo vale do rio Isère. A terceira sub-região seria a Maurienne, constituída pelo vale do rio Arc, grande afluente do rio Isère e que corre ao sul dos montes da Tarentaise. A principal cidade da Savóia é Chambèry, antiga capital do Ducado, cidade de privilegiada situação natural, emoldurada por altas montanhas. Além de seu antigo castelo e de sua catedral, Chambéry tem vários edifícios e instituições que testemunham a sua preeminência sobre as outras vilas da Savoia
Joseph de Maistre
Chambéry não está apenas presente na história do pensamento e da cultura do século XIX como cidade onde atuou Rousseau e que foi palco de correntes que prepararam a Revolução Francesa. Foi também cidade que se caracterizou pelo movimento oposto, contra-revolucionário e restaurador reacionário, porém influente no pensamento conservador do Romantismo. O seu principal vulto foi Joseph-Marie, Comte de Maistre (Chambéry1753/54-Turin 1821), cuja estátua se ergue hoje ao lado do antigo castelo. Formado pelos jesuítas, estudou direito e tornou-se membro do Senado de Savóia - então parte do Reino da Sardinha - em Turim. Inicialmente influenciado pelo pensamento de J.-J. Rousseau, foi membro da maçonaria. Entrou na loja Trois mortiers de Chambéry, em 1774, mudando para a escocesa retificada de Willermoz em Lyon. Fundou a liga Le collège particulier de Chambéry, sob o pseudônimo de Josephus a Floribus. Tornou-se um opositor do movimento revolucionário. Em1793, defendeu a maçonaria de críticas devido à Revolução Francesa, negando que ela fosse responsável por todos os atos da Revolução e diferenciando entre maçons não-políticos, martinistas franceses e iluminados. Fugindo em 1796 para Lausanne, tornou-se um dos muitos privilegiados do Ancien Regime que passou pela experiência da emigração. Aqui, publicou ele em 1796 a sua obra Considérations sur la France. Expulso da Suíça e da Itália por força da revolução, foi diplomata da Sardinha em São Petersburgo, onde escreveu, entre outras obras, Essai sur le principe générateur des Constitutions (1814), Du Pape (1819) e De l'Église gallicane dans son rapport avec le Souverain Pontifice (1821). Foi um defensor da monarquia absoluta como fundamento de uma Europa cristã. A Revolução surgia no seu pensamento como uma purgação que levaria à regeneração da Europa e a uma nova missão da França. Foi um dos que defendeu o principio monárquico absolutista na Igreja, preparando o dogma da infalibilidade papal. Ao lado de Louis Gabriel-Ambroise de Bonald foi um dos pensadores da reação tradicionalista, um dos combatentes do racionalismo do século XVIII. Em oposição à teoria do contrato social e da soberania do povo, defendeu a idéia de que a sociedade é uma realidade por assim dizer orgânica, sendo a irracionalidade parte dessa mesma realidade.
Joseph de Maistre e a história do pensamento no Brasil
A influência de Joseph de Maistre no Brasil foi significativa pelas próprias circunstâncias do processo que levaria à emancipação. Não se pode esquecer que a vinda da família real para o Brasil se processou no âmbito de uma fuga perante as tropas de Napoleão. Os elos da história do Brasil com a Restauração européia surgem como particularmente estreitos. Entretanto, a influência mais duradoura de Joseph de Maistre deve ser procurada sobretudo em círculos conservadores e católicos no âmbito do debate sobre a infalibilidade papal. O próprio liberal Joaquim Nabuco, nas suas memórias, diz que, na formação eclética que tivera na sua juventude lera de tudo, não apenas tudo o referente à Revolução Francesa. Lia, também os autores contrários, Donoso Cortez e Joseph de Maistre, tendo escrito até mesmo um pequeno ensaio "com a infalibilidade dos dezessete anos, sobre a Infalibilidade do Papa" (Minha Formação, Rio de Janeiro: Jackson s/d, pág. 12).
Xavier de Maistre e a literatura de viagens
Um outro elo de Chambéry com a história cultural do Brasil ter-se-ia através da obra do irmão de Joseph de Maistre, o Conde Xavier de Maistre (Chambéry 1763-S. Petersburg1852), o autor da Voyage autour de ma chambre (1794). A emigração que experimentaram tantas personalidades e intelectuais no período revolucionário levou ao conhecimento de novos mundos, à vivência da instabilidade existencial no Exterior, à conscientização de próprias raízes e identidade. Cada vez mais salienta-se o significado dessa experiência para o desenvolvimento da literatura de viagens. O romance que se tornaria tão popular de Xavier de Maistre, a "Viagem no meu quarto", é exemplo de um gênero singular de literatura de viagens, o das viagens na imaginação e o de uma filosofia de viagens, ainda que imaginárias. Um dos motivos de sua difusão foi talvez o de vir de encontro ao desejo de grande número de pessoas de realizar viagens sem o poder, tornando-se consumidores de relatos e romances de viagens.Xavier de Maistre escreveu-o durante um período de algumas semanas de permanência obrigada em casa, decidindo-se a viajar em espírito. Para êle, a arte de viajar não constituiria em procurar sempre novos destinos, mas sim de se pesquisar o mundo e o próprio mundo dos pensamentos. A influência da "viagem" de Xavier de Maistre no Brasil tem sido apontada numa das mais singulares obras da história da literatura brasileira, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Assim, José Guilherme Merquior salienta que, possivelmente, o escritor fora levado pelas Viagens na Minha Terra (1846) de Almeida Garrett ao "Voyage autour de ma Chambre" de Xavier de Maistre, e este, por sua vez, a Sterne (De Anchieta a Euclides, Rio de Janeiro: José Olympio, 1977, pág. 166). (...) G.R.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).