Doc. N° 2050
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
97 - 2005:5
Arquitetura militar sob o aspecto dos estudos culturais transnacionais
Briançon. Trabalhos da A.B.E. 2005
No âmbito dos estudos desenvolvidos na França, pela A.B.E., marcados pelo debate do conceito de historiografia transnacional (veja texto introdutório desta edição), dedicou-se particular atenção a regiões que no decorrer dos séculos apresentaram mudanças quanto à sua inserção em configurações de Estado. Desaparecimento de reinos, ducados, divisão de áreas em estados nacionais, reformulações de fronteiras e limites são ocorrências não apenas de interesse para a história política. Representam fatos de relevância para estudos culturais, pois dizem respeito a questões de identidades e de suas transformações, às imagens das respectivas comunidades e regiões, a migrações, assim como aos pressupostos e às conseqüências culturais de desenvolvimentos. Quando, hoje, constata-se o despertar de interesses para perspectivas transnacionais na historiografia, então deve-se considerar naturalmente questões que dizem respeito à situação de delimitação que se procura transpor. Nesse sentido, não há manifestação cultural mais evidente de tomada de posse de determinada área e de sua defesa do que sistemas de fortalezas e de cidades fortificadas. A atenção aqui é dirigida a uma área de estudos que pode ser tratada sob diferentes pontos de vista disciplinares. Cumpre lembrar, aqui, em primeiro lugar, os antigos elos da Arquitetura com a engenharia militar já manifestados no tratado De architectura libri decem, de M. Vitruvius Pollio, obra básica da história da arquitetura. No âmbito do mundo de língua portuguesa, a A.B.E. já desenvolveu estudos relativos a questões culturais que se relacionam com fortes e fortalezas, seja a de Macapá (1993), à do Rio Branco (1994) ou à de Bertioga (2004). Uma publicação relativamente recente que incluiu diversos estudos de sistemas de defesa no mundo português foi o caderno 28 da revista OCEANOS, da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (Fortalezas da Expansão Portuguesa, Oceanos 28, outubro/dezembro 1996). Cada vez mais tem-se apontado, porém, que o estudo de fortes, fortalezas e cidades fortificadas não pode ser exclusivamente tratado sob pontos de vista da configuração de Estado para a qual serviram. Por demais são as influências internacionais no desenvolvimento da engenharia e da arquitetura. Um aspecto ainda menos considerado é a do vínculo de sistemas de defesa com a história do pensamento e da identidade de estados e nações. Similares preocupações pela segurança e pela criação de estruturas de defesa em vários países em determinadas épocas podem ser resultados não apenas de exigências reais das diversas situações como também expressão de um espírito do tempo, de imitação, concorrência com desenvolvimentos de outros países ou de recepção de impulsos externos. Para a consideração comparada de fortalezas do mundo da expansão portuguesa com aquelas de outros contextos europeus, no caso da França, escolheu-se a cidade de Briançon, um dos grandes exemplos da obra arquitetônico-militar da época do Barroco.
Entre a França e a Itália
As passagens pelos Alpes entre a região da atual Itália e da França foram desde a Antiguidade vias importantes de comércio e de migrações.Elas tornaram-se sobretudo presentes na história através dos empreendimentos militares do século XVI. As suas histórias locais foram marcadas pela passagem de exércitos. Do lado italiano, as localidades com maior significado estratégico foram Pinerolo (Pignerol), Saluzzo (Saluces) e Cunco (Coni). Do lado francês, as cidades que mais se destacam devido à sua arquitetura militar são Embrun, Mont-Dauphin e, sobretudo, Briançon. Do ponto de vista cultural, a inserção de Briançon e de outras cidades no plano estratégico-militar francês levou à integração de suas populações à França.
Vaudois/Valdenses
Anteriormente, as comunidades tanto da vertente francesa como da vertente italiana constituiam um conjunto cultural com características próprias, ainda que fortemente de cunho francês na língua e nos costumes. Os montanheses dos vales italianos tinham uma outra orientação confessional dos italianos das regiões planas, pois já antes da Reforma constatava-se ali tendências consideradas então como heréticas. A história regional foi, consequentemente, marcada por perseguições religiosas e massacres. Mesmo assim, nas duas vertentes dos Alpes ainda existem os Vaudois ou Valdenses. De nível de instrução superior às comunidades das regiões planas, desenvolveu-se a partir dessas cidades uma singular corrente migratória: nos invernos, habitantes dessas regiões desciam aos vales para atuar como mestres de alfabetização. Calcula-se que, em meados do século XIX, ca. de mil professores temporários das montanhas atuavam nas cidades do vale do Rhône. Após a criação de escolas públicas, muitos deles emigraram para a Algéria. Outros partiram para a América Latina. No México, o comércio de tecidos foi quase que monopolizado por franceses dessa região. Essa emigração foi causada pela pobreza da região e pelas dificuldades causadas pela distância das povoações. "Les deux départements que parcourt la haute Durance sont la région la plus désolée, la plus pauvre, la moins peuplée de la France. Les villes y sont fort éloignées les unes des autres, et l'intérêt qu'elles présentent par leurs monuments on leur histoire est bien moindre que celui des villes rhodaniennes, à cause de l'état de délaissement dans lequel elles se sont toujours trouvées par rapport aux grands faits de l'histoire: plusieur n'ont d'importance qu'au pont de vue administratif ou pour la garde de frontières. (...) C'est le département de France où, par l'effet de la misère et d'une mauvaise hygiène, la vie moyenne est la plus courte." (E. Reclus, Nouvelle Géographie Universelle II, Paris: Hachette, 1879, 529) Briançon é a cidade situada no ponto mais alto do vale da Durance e dos Alpes franceses. É uma cidade fortificada, cujos sete fortes guardam a fronteira da Itália e a via do monte Genèvre. Alguns de seus fortes foram construídos sobre os flancos do Infernet, da outra margem da Durance. São unidos à cidade por uma ponte de um arco, extraordinário exemplo de engenharia do passado. Essa cidade fortificada foi resultado da reconstrução que se tornou necessária após um grande incêndio, em 1692. Considerando-se a sua importância estratégica, foi inserida num sistema fortificado à época de Luís XIV.
Vauban
Sébastien Le Prestre de Vauban (1633-1707), Marquês de Vauban, general e construtor militar de fortalezas de Luís XIV, encontra-se hoje revalorizado através de iniciativas que salientam o significado de suas obras para o patrimônio cultural da Humanidade sob a égide da UNESCO. Edificou, entre outras, a citadela de Arras, a muralha e o forte Griffon em Besançon, a citadela de Blaye e o forte Paté numa ilha da Gironde, a citadela de Cussac-Fort-Médoc, a torre Dorée em Camaret-sur-Mer, a cidade alta fortificada de Longwy, o Mont-Dauphin,o Mont-Louis, Neuf-Brisach, Saint-Martin-de-Ré, Saint-Vaast-la Hougue, Fort Libéria e muralha de Villefranche-de-Conflent. Vauban foi um exemplo daqueles vultos de múltiplos interesses e campos de ação do Barroco. Foi engenheiro real (1655), marechal de campo (1676), comissário geral das fortificações (1678), marechal de França (1703), alcançando prestigiadas honras (cavaleiro da Ordre du Saint-Esprit, 1705). Dentre os seus numerosos projetos incluem-se nada menos que 33 fortalezas, além daqueles destinados à renovação de fortes já existentes. Ocupou-se também com urbanismo, agricultura, viação fluvial, finanças, economia, religião e filosofia. A sua universalidade valeu-lhe a nomeação a membro honorário da Academia de Ciências.
Segurança nacional e pressupostos culturais
Uma das questões que se levantam é a da contemporaneidade do "cinturão de ferro" criado pela França sob Luís XIV e cinturões de defesa em outros contextos histórico-políticos. No caso considerado do sistema de defesa de Vauban, tratou-se de uma questão de cercar o próprio país. No caso das fortalezas do mundo de língua portuguesa, tratou-se da defesa de esfera de influências extra-européia. Uma consideração adequada das duas situações exigiria estudos também dos sistemas de defesa coloniais da França. A modificação de situações geo-estratégicas nas diferentes regiões fêz com que fortes e fortalezas perdessem o seu sentido, se acaso alguma vez os tiveram. Isso tornou-se sobretudo evidente quando antigas colonias se emanciparam e sistemas de defesa criados para situações coloniais globais fragmentaram-se ou foram reorientados nas suas partes. Esses e outros fatores sugerem que estudos culturais mais diferenciados podem abrir novas perspectivas para o estudo de preocupações de defesa e proteção, de segurança nacional e suas expressões arquitetônicas. (...) G.R.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).