No contexto dos trabalhos dedicados ao ano França-Brasil da Academia Brasil-Europa, levado a efeito pela passagem dos 30 anos do encontro da Abadia de Royaumont, marco na reorientação teórico-cultural dos estudos franco-brasileiros segundo a perspectiva da A.B.E., dedicou-se especial atenção a uma regiãosingularmente pouco considerada na história cultural das relações internacionais: a Savóia.

Pela sua localização geográfica e pela sua história, a Savóia situou-se durante séculos entre esferas culturais européias.

Annecy, a capital da Alta-Savóia, situada ao sul de Genebra, emoldurada por uma cadeia de altas montanhas, com importante patrimônio arquitetônico, é uma cidade que como poucos outras foi marcada pela história dos conflitos confessionais no século XVI. Tornou-se importante centro do Catolicismo na época que, a partir de Genebra, o movimento calvinista se expandia. Assim, de 1535 até 1819, com a sua monumental catedral gótica. foi sede dos bispos de Genebra. Apenas a partir de 1822 foi elevada a diocese própria, como sufragâneo de Chambéry.

Os elos que unem a Alta Savóia e o Brasil devem ser procurados primeiramente nessa situação de Annecy com relação o movimento reformatório centralizado em Genebra e como centro da contra-reforma recatolizadora.

Sabe-se que importante marco na história das relações histórico-culturais entre a França e o Brasil, o projeto da França Antártica, vinculou-se com os calvinistas de Genebra, sobretudo com a vinda de 11 calvinistas em 1556, sob a liderança de Philippe du Pont de Corquilleray e com os pregadores Pierre Richier e Guillaume Chartier.

Pouco tem-se considerado, porém, as repercussões transatlânticas do movimento oposto, do combate à expansão do calvinismo na própria região, dos elos que unem a recatolização regional com a formação religioso-cultural do Brasil.

Sob esse aspecto, Annecy oferece uma situação altamente relevante para estudos contextualizados. Um dos maiores vultos da história contra-reformatória foi filho da cidade e se encontra ali sepultado: Francisco de Sales, santificado em 1665, desde 1877 um dos doutores da Igreja.

Francisco de Sales e a missão recatolizadora da Europa

Francisco de Sales nasceu em 1567 no castelo de Sales, próximo a Thorens, na Savóia. A sua formação foi marcada pelo campo de tensões confessionais de sua região e pelos intuitos de restauração católica através da concretização dos ensinamentos do Concílio de Trento.

Sob esse pano de fundo pode-se compreender que foi um homem que uniu preocupações teológicas com questões de direito, de transformação de mentalidades e de organização. Foi homem de sólida formação intelectual, tendo realizado estudos teológicos e jurídicos em Paris, de 1582 a 1588, prosseguindo-os em Pádua, de 1589 a 1591, onde alcançou o grau de doutor em Direito. Foi porém também um homem de ação, e o seu sacerdócio - a partir de 1594 - , uniu-se a atividades missionárias na sua região.
Sempre se salienta o fato de ter-se voluntariamente oferecido para agir numa das mais difíceis regiões calvinistas da área de Genebra, a de Chablais. Vencendo grandes dificuldades, alcançou sucesso nesse seu empreendimento.

Em 1599, tornou-se coadjutor do Bispo de Genebra, que então residia em Annecy. Seguiram-se outras viagens na Europa. Em Paris, travou conhecimentos com importantes pensadores da história religioso-cultural, entre êles com Barbe Acarie (1566-1618) e Pierre de Bérulle (1575-1629). Em 1602, tornou-se bispo de Genebra, com residência em Annecy. Nessa qualidade, desempenhou ingentes esforços para a realização dos resultados do Concílio de Trento, com contínuas visitações nas igrejas da sua diocese. Para a formação de sacerdotes segundo os preceitos tridentinos e imbuídos do espírito da recatolização, fundou um seminário.

Aspecto de particular interesse histórico-cultural foi a relação espiritual que criou como guia espiritual de Jeanne-Françoise Frémyot de Chantal, (1572-1641) a partir de 1604. Fundou, com ela, a ordem contemplativa da Visitação de Nossa Senhora. Após ter realizado uma última viagem a Paris, em 1618, faleceu em Lyon, em 1622, ano em que, em Roma, se fundava a Congregação da Propaganda Fide.

Estudos de Francisco de Sales

A vida e a ação de Francisco de Sales têm sido consideradas compreensivelmente sobretudo por publicações eclesiásticas e estudos de ordens religiosas. O seu esboço biográfico, porém, demonstra a sua relevância para estudos histórico-culturais sob perspectivas transnacionais. A sua vida e ação foram não apenas vinculadas com importantes transformações mentais e culturais em regiões européias em determinado espaço e tempo, mas repercutiram, através de seus elos com outros pensadores da época e de seus multiplicadores em contextos globais e em períodos posteriores.

A vida de Francisco de Sales decorreu em período que, no Brasil, faziam-se perceber as conseqüencias da união pessoal de Portugal com a Espanha. Pertenceu à época imediatamente anterior, preparatória, da fundação da Propaganda Fide, marco da centralização sistematizadora das atividades cristianizadoras em Roma. Uma reestruturação, ainda que gradativa, de sistemas globais até então dirigidos sob a égide do Padroado atingia necessáriamente o Brasil.

Mais do que mudanças institucionais tem-se, aqui, sobretudo, questões de história das concepções e de mentalidades. Os estudos histórico-culturais relacionados com Francisco de Sales, acima de intenções biográficas e hagiográficas, podem trazer elucidações e abrir novas perspectivas para os estudos culturais em contextos globais. Um dos aspectos que podem ser salientados é o da necessária consideração dos vínculos entre a história missionária de regiões extra-européias com a história missionária dentro da própria Europa. Trata-se aqui, nada menos, de vínculos que unem a história da cristianização de povos não-cristãos com a da recatolização de comunidades européias.

Os elos que unem a história da missão indígena e da vida religiosa no Brasil com a Contra-Reforma e suas expressões têm sido considerados sob diferentes aspectos. Pouco, porém, tem-se atentado a seus vínculos com o movimento recatolizador ocorrido na Europa. Em eventos da A.B.E., tais como em sessões do Congresso de Estudos Euro-Brasileiros, de 2002, debateu-se a influência cultural da ação contra-reformatória em regiões do Tirol, da Áustria e do Sul da Alemanha em áreas de missão jesuítica na América do Sul, em particular no Paraguai, e suas conseqüências para o Brasil. A consideração de Francisco de Sales leva, porém, a uma fase anterior do complexo de questões tratados, abrindo novas perspectivas para a consideração de questões de cunho básico do processo histórico colocado em ação.

A atenção dirige-se aqui aos vínculos entre o assim-chamado"Humanismo Devoto" e questões de mentalidade que se levantam em estudos relacionados com o Barroco.

Amar e saber-se amado

Na literatura hagiográfica tem-se salientado que o próprio Francisco de Sales não deixou de ser influenciado pela doutrina da predestinação calvinista, embora mantendo-se fiel ao catolicismo. Crendo estar predestinado à condenação perpétua, apenas teria realcançado a fé na redenção por intermédio de sua veneração mariana: a sua confiança na Salvação teria vindo ao orar o Memorare perante uma imagem de Maria. Já essa menção sugere um contexto pouco considerado nos estudos da história das mentalidades relacionada com o Barroco: a alegria de vida como resultante concreta da difusão de concepções de que o homem não apenas deve amar mas que deve "saber-se amado".

Singular e relevante para o interesse atual na reconstrução de uma história feminina ou de conotações femininas na história é o papel desempenhado pela mulher na Contra-Reforma e no desenvolvimento da espiritualidade francesa do século XVII. Da história de vida de Francisco de Sales salienta-se Jeanne-Françoise Frémyot de Chantal (1572-1641), cuja organização alcançaria grande significado na história religioso-cultural e da ação das salesianas no Brasil. Também deve-se considerar Barbe Acarie (1566-1618), a cujo círculo em Paris Francisco de Sales pertenceu e que se destacou pelos esforços em trazer carmelitas descalças espanholas para a capital francesa.

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G.R.

Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).